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sábado, 29 de outubro de 2016

DO COMINHO AO VATAPÁ – COMO AS ESPECIARIAS APIMENTARAM A HISTÓRIA


A ruptura do isolamento continental, quando o intercâmbio de produtos de diferentes continentes, ocorrido no bojo a expansão continental europeia, alterou radicalmente a dieta de quase todos os povos do planeta.

Especiarias asiáticas – como pimenta, canela, cravo, noz-moscada – tornaram-se conhecidas na Europa e em outros continentes. As culturas das Américas – como milho, batata, tomate, amendoim, pimentões – foram espalhadas por todo o globo. Gêneros tropicais – como cana-de-açúcar, chá, café, chocolate – criaram um novo padrão de consumo de bebidas excitantes e calóricas que, ao lado do tabaco, tornaram-se hábitos internacionais.

Produtos típicos da Europa mediterrânea, como trigo, uva, fizeram parte do pacote da colonização e o álcool destilado penetrou em todas as partes.

A chegada de produtos asiáticos, como cana-de-açúcar e algodão) à América, por meio da Europa, e o seu cultivo em grande escala, gerou a monocultura de agroexportação, que submeteu povos inteiros aos ditames das grandes corporações multinacionais, condicionando os preços à oferta e demanda do mercado mundial.

A cultura árabe já vinha sendo a responsável por disseminar produtos asiáticos na Europa, desde a baixa Idade Média. Desde especiarias a arroz, sorgo, algodão, frutas cítricas, mangas, cana-de-açúcar e berinjela. As Cruzadas ajudaram essa difusão. Contudo, eram produtos restritos à nobreza, às classes mais abastadas. Quando deixaram de ser bens de luxo e passaram a ser consumidos pelas classes sociais mais baixas, esses produtos deram origem mercados mundiais sedentos por diversas especiarias, como açúcar, bebidas quentes (chocolate, café, chá).

Esses mercados criaram novas formações socioeconômicas, como as plantations nas Américas, acompanhadas do odiável tráfico de seres humanos, que não foi originado mas foi expandido drasticamente no seu âmbito.

O tráfico triplo – produtos asiáticos vão para a Europa; escravos africanos, para as Amércias; produtos das Américas vã para Europa e África – propiciou a acumulação de capitais necessária para a revolução no sistema de produção artesanal existente na Europa. Demanda crescente, algodão e capitais internos disponíveis deram surgimento à indústria têxtil, que culminou na Revolução Industrial.

A avidez por especiarias tem várias motivações possíveis. Especiarias são alimentos e/ou drogas, de consumo gustativo, medicinal ou afrodisíaco. Foram atribuídas origens paradisíacas: teria se originado no Jardim do Éden, forma carregadas pelos quatro rios que lá nascem e corporificariam as virtudes solares das regiões quentes e desconhecidas do Oriente.

Tais especiarias deram origem a impérios comerciais, sendo o primeiro deles Portugal, também chamado de Império da Pimenta. Os portugueses detiveram o monopólio do comércio até serem expulsos pelos holandeses, que tiveram o mesmo destino pelas mãos dos ingleses
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O consumo de especiarias pode ser traçado até Roma. O termo “pimenta” originou-se de pigmenta, ou pigmento. Também passou a referir o vinho enriquecido na cor e no aroma com especiarias. Depois, passou a denominar qualquer especiaria. A pimenta-do-reino (Peper nigrum), original da Índia, onde é denominada pippali, deu origem ao termo pimenta em diversas línguas europeias.

Inicialmente, o consumo se devia `má qualidade da carne; mas Fernand Braudel fala do “psiquismo olfativo”, que ansiava por sabores e aromas fortes e misturados, muitas vezes incentivado por orientação médica, ou por serem afrodisíacos, estimuladores de calor. Essa demanda por sabores e aromas fortes, na Europa, foi reduzida no século XVII, quando houve o retorno de perfumes florais e alimentos menos temperados.

O contato entre as culturas foi bastante amplo. Batata, milho, tomate, amendoim, pimentão, feijão, cacau das Américas difundiram-se. Assim como o chá da China, o café da Etiópia, a canela do Ceilão, o cravo das Molucas, a pimenta do Malabar, a noz-moscada de Banda; enquanto produtos da dieta europeia, como trigo, vinho, álcool destilado espalharam-se mundialmente.

Perguntem-se: o que seria do espaguete sem o tomate? Ou da polenta sem o milho? O pimentão influenciou a páprica do gulash húngaro. O tomate, cujo nome se origina do asteca “jitomate” foi considerado inicialmente um quase veneno, que deveria ser cozinhado por horas. Mais tarde, das mãos de italianos e franceses recebeu o nome de “pomodoro” (maçã dourada) e pomme d`amour (maçã do amor), obtendo ao fama de afrodisíaco.

Um caso singular é o do Peru, ave sul-americana que adentrou a Europa por via otomana, donde vem seu nome em inglês, Turkey.

Quando os holandeses tomaram as rédeas do comércio mundial de especiarias e transformaram Amsterdam em sede europeia da distribuição de mercadorias, passaram a se dedicar a uma atividade sistemática de extermínio de culturas em regiões indesejadas. As plantas de noz-moscada foram restritas à ilhas Amboíno. As de cravo, à ilha de Banda. As de canela, ao Ceilão.

Em nenhum lugar, a mestiçagem de culturas foi mais completa do que na América. O berço foi o Caribe, e os atores principais, piratas: ou filibusteiros, ou bucaneiros. Antes de se tornarem empregados das Cortes inglesa e francesa, eram marginais vivendo à moda dos índios. Bucan significa defumação da carne com lenha verde. Barbecue vem das ilhas Barbacoa.

Esses atores difundiram a pimenta na África, onde se chamou Guinea Pepper. O amendoim, originário das Antilhas, conhecidos entre os astecas como cacau da terra ou como “pistache das ilhas” pelos europeus, tornou-se típico da África Oriental e, de lá, chegou ao Brasil junto com os escravos. Na Bahia, incorporou-se ao vatapá.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Comida e Sociedade: uma história da alimentação”, Cap. 8.
   

   






    

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