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terça-feira, 11 de outubro de 2016

FRANCIS DRAKE, EL DRACO


O maior império que o mundo viu desde o grande império mongol iniciado por Gengis Khan foi o Império Espanhol. Nas palavras de Francisco Ugarte de Hermosa, em 1655: “Desde que Deus criou o mundo, não houve nele império tão extenso quanto o da Espanha, porque, desde a aurora até o crepúsculo, o sol jamais cessa de brilhar por um instante sobre suas terras.” Este foi o primeiro Império onde o sol nunca se põe.

Durante cem anos, de meados do séc. XVI a meados do séc. XVII, especialmente após a União das Coroas Ibéricas, a partir de 1581, em função da morte do rei Sebastião sem que deixasse herdeiros, tendo ambas sido unificadas sob Filipe II, os mares do Atlântico e do Índico foram dominados pela Espanha. A riqueza do Ocidente era transportada sob tal bandeira.

Filipe II e Filipe III viveram o apogeu do grande império. O Tratado de Tordesilhas dividira o mundo entre Portugal e Espanha. Agora, ambas as metades do mundo se reuniam sob uma só bandeira. E esta bandeira era fervorosamente católica.

A família real espanhola era herdeira da Casa dos Habsburg, originária da Áustria e governante de diversos principados alemães e dos Países Baixos (da região onde hoje estão estes países). Sua superioridade econômica e militar era incontestável, mas nem todos aceitaram ser subjugados por um monopólio decidido pelo papa. Porém, questionar essa decisão era questionar a autoridade do papa e da Igreja Católica.

Os primeiros desafiantes foram pessoas originárias das nações marítimas: Inglaterra e Holanda. O primeiro foi o navegante John Hawkins. Ele percebeu que os colonos nas Índias Ocidentais (América) demandavam muitos produtos que eram importados da Europa. Entretanto, o preço que alcançavam quando chegavam nas colônias era estratosférico. A burocracia e a falta de concorrência causadas pelo monopólio comercial que a metrópole tinha sobre suas colônias tornava-os quase proibitivos. Sir John Hawkins percebeu que poderia fazer este comércio diretamente com os colonos, que certamente estavam desejosos por adquirir mercadorias a preços mais módicos. Necessitavam apenas que os colonos aceitassem quebrar as regras da metrópole.

Juntou interessados, neste caso comerciantes de Bristol e Londres, armou seus navios e se lançou aos mares. Partiu com mercadorias inglesas, aportou em Serra Leoa, comprou mais de 300 escravos e navegou em direção à ilha de Hispaniola (atual Santo Domingo e Haiti).

Como a proposta de comerciar com os colonos era interessante também para estes, o plano posto em prática era simples: simulavam uma invasão de estrangeiros, eram dados alguns tiros a esmo, dizia-se que os colonos perderam e realizavam-se as transações desejadas. Ao fim, os oficiais espanhóis elaboravam um relatório no qual constava a batalha “intensamente lutada”, porém perdida.

O governador de Santo Domingo, Lorenzo Bernáldez, recebeu 104 escravos, que mais tarde vendeu. Os ingleses receberam como resgate pelas “prisões” de seus soldados uma valiosa carga de gengibre, açúcar e pérolas.

Os lucros amealhados estimularam uma segunda viagem. Dessa vez o trajeto incluía uma parada nas ilhas Canárias e o abastecimento com escravos na Guiné. Dessa vez o comércio foi realizado por outros locais das Antilhas, como Venezuela. Embora a tática de simular uma invasão inglesa não tivesse sido aceita, agora Hawkins tinha força suficiente para forçar acordos para comerciar com comerciantes locais. Mais uma vez, escravos por mercadorias que poderiam distribuir, amealhando bons lucros.

No seu retorno, usou o Fort Caroline, instalação francesa localizada na atual Flórida. De lá subiu a costa em direção à Terra Nova e voltou para a Inglaterra. O lucro apurado mais uma vez ajudou a pôr o monopólio espanhol sob séria ameaça.

A terceira expedição de Hawkins, em 1567, incluía seis navios e seu primo, Francis Drake – futuramente conhecido como El Draco na Espanha. O modus operandi era o mesmo, porém o contato de Hawkins na África não tinha escravos disponíveis “em estoque”. Juntaram-se ingleses e africanos com o fim de atacar uma tribo e aprisionar os homens como escravos. Após uma luta bastante renhida, 10 ingleses morreram e 450 africanos eram feitos escravos.

Com seu estoque de almas, Hawkins e seu primo atravessaram o Atlântico e se dirigiram a Santo Domingo. Lá, almas tornaram-se panos, alimentos, ferro. De lá foram para Borburata, atual Venezuela, para exercitar o comércio. Porém a situação do monopólio espanhol já havia se tornado cômica. O comércio ilegal com os colonos já se tornara tão comum que os mercados locais já estavam saturados de mercadorias (o que inclui escravos africanos) trazidas por franceses, ingleses e outros.

Nota-se aqui um pouco da cultura ibérica: a burocracia levava ao inflacionamento dos preços, que levavam ao contrabando com estrangeiros, que eram tão lucrativos a ponto de ser suficiente para subornar os oficiais locais. Tudo isso não impedia a escritura de belos e eruditos relatórios, como este trecho: “o governador tinha prestado serviço tão notável que todos ficaram assombrados com sua coragem, porque foi um negócio que hoje, olhando para trás, enche de temor todos os que estavam presentes e os que o ouviram contar”.

A única cidade que não se dispôs a comerciar com os contrabandistas ingleses foi Cartagena, na atual Colômbia. Na volta, em função de uma grande tempestado, foi obrigado a procurar abrigo em porto espanhol: Vera Cruz, atual México. Após um ataque espanhol e, com muita sorte, conseguir salvar três dos seis navios e escapar do porto, Francis Drake tomou o comando de uma dos navios e voltou para a Inglaterra. Hawkins teve de procurar abrigo em uma ilha local. Porém não teve de fugir dos espanhóis, pois eles estavam muito preocupados em abastecer seus galeões de ouro e levá-los para Sevilha.

Hawkins tentou se dirigir a norte, comsua embarcação destruída e apenas com parte da tripulação, pois a outra parte preferiu ficar na ilha a embarcar em mais uma aventura de fim imprevisível. Indo em direção à Terra Nova, muitos morreram de fome e de frio. Conseguindo ventos a leste, terminaram na região da Galícia. Após semanas se escondendo e procurando alimentos – muitos morriam por comer muito rápido, em razão da fraqueza do próprio organismo por longos períodos sem ingerir alimentos -, conseguiu Hawkins retornar à Inglaterra. Em suas palavras: “Se todas as misérias e os negócios penosos dessa triste viagem fossem perfeita e inteiramente escritos, haveria necessidade de um homem laborioso com a pena e muito tempo para escrever sobre a vida e a morte dos mártires”.

Drake procurou, junto à rainha Elisabeth I patrocínio para uma viagem de retaliação contra o ataque dos espanhóis – mesmo estando os ingleses em águas proibidas a estrangeiros. A rainha percebeu o absurdo e o risco de iniciar conflitos com a Espanha. Após exitar um tanto, a rainha concedeu a autorização solicitada. Seu desejo de ver comerciantes ingleses transacionando na região do Caribe era superior a seus temores.

Mesmo antes da autorização concedida pela rainha, comerciantes particulares não paravam de financiar expedições à região caribenha. Muitas entravam em conflito com navios espanhóis. Como retaliação, a Espanha destruiu Fort Caroline.

Se o projeto ultramarino português e espanhol era projetos realizados em bases estatais, ao contrário dos empreendimentos seguintes de ingleses e holandeses, realizados em bases eminentemente particulares, o mesmo não ocorreu em relação às religiões que concediam as bases morais que os justificavam.

A Igreja Católica era uma instituição independente, provavelmente a maior de seu tempo. Esta instituição estava diretamente entranhada com as Coroas ibéricas, as mais ricas da Europa. A Igreja Católica fornecia a autoridade que dividiu a terra em duas metades. Nas palavras do rei da França, tratava-se de um verdadeiro Testamento de Adão.

Para questionar essa autoridade, desenvolveu-se na Europa um movimento conhecido como Reforma. Diversos Estados nacionais recentemente constituídos entraram em conflito com Roma e sua predileção por Portugal e Espanha em detrimento das demais nações. A partir de Lutero e sua rebelião, em Wittemberg, principado localizado na atual Alemanha, deu-se início a diversos protestos, por todo o Continente, em que se punha baixo a autoridade papal em benefício de Igrejas que questionavam diversos dogmas católicos. Grande parte das Igrejas protestantes foram constituídas em bases estatais – como a Anglicana, inglesa, fundada por divergências entre Henrique VIII e sua vontade de divorciar-se.

Com o sucesso da Reforma – somando-se a ela a reação violenta dos eis espanhóis, defensores da fé católica e cientes da legitimidade que sua autoridade dava à famosa linha de Tordesilhas -, o monopólio Espanhol perdeu sua autoridade. Inglaterra, Holanda e França, apoiados em novos dogmas protestantes, sentiam-se confortáveis em quebrar o monopólio católico. Os corsários tornavam-se mais decididos e agressivos em sua luta pelas riquezas espanholas.

Francis Drake usou sua imaginação para ser capaz de atacar frotas maiores usando poucos recursos. Desenvolveu barcaças pequenas que usava para ataques surpresas. Após o ataque corria para a praia, onde as grandes embarcações espanholas não eram capazes de navegar. Usando essa tática, em menos de três meses capturou doze ou treze embarcações na região do Panamá, lotadas de mercadorias e as levou embora. Tinha táticas para atacar comunidades litorâneas também.

Seu sucesso na primeira expedição criou o estimula para um retorno, ainda mais ambicioso.

O correspondente aos quilombolas, no lado espanhol da América, eram os cimarrons. Escravos fugidos das fazendas, formaram comunidades nas florestas que atacavam frequentemente cidades coloniais, tanto por necessidade de sobrevivência quanto para ter mercadorias para comerciar com contrabandistas ingleses, franceses e holandeses – além do desejo de vingança, claro.

Drake se proximou deles e passaram a empreender ataques freqüentes contra tropas espanholas, em geral constituídas por mulas que carregavam os suprimentos de ouro em direção aos portos, de onde eram despachados para a metrópole. Os cimarrons, inicialmente, não tinham interesse em ouro ou prata, haja vista suas necessidades serem relacionadas com sobrevivência. Contudo, após o contato com Drake, os metais passaram a fazer parte de seus interesses, a partir de 1572.

Um dos ataques, contra a cidade de Nombre de Diós, revelou “um imenso monte de prata […] com mais de vinte metros de comprimento, três metros de largura e três metros e meio de altura, empilhados contra a parede” na casa do governador. Na casa do tesouro havia “mais ouro e pedrarias do que nossas quatro pinaças podiam carregar”. Porém Drake havia sido atingido por tiros durante a invasão da cidade e desmaiou pela perda de sangue. Os homens foram obrigados a procurar abrigo numa ilha, não sem antes carregar um navio lotado de barris de vinho.

Atacando embarcações e cidades menores, conseguiram provisões para abastecer o pequeno forte que construíram na região do Panamá, base para seus ataques corsários. O prêmio maior que poderiam conquistar seria atacar o comboio de mulas que transportavam as barras de ouro espanholas. Tal carregamento era levado até os Galleones espanhóis, que aportavam em Cartagena. O ataque seriam empreendido junto com os cimarrons, que àquela altura deixaram Drake impressionado, tanto pela organização quanto pela limpeza de suas aldeias.

Só não foram capazes de evitar as mortes por febre amarela, àquela época desconhecida. Drake inclusive foi o primeiro a ordenar a vivissecção do corpo de um dos soldados mortos com essa doença. Notaram o inchaço do fígado, mas não foram capazes de fazer mais progressos médicos naquelas condições.

A emboscada contra a tropa do ouro foi toda planejada, em sua maior parte, pelos cimarrons, grandes conhecedores da região. Drake ainda teve tempo de subir numa árvores e avistar, de longe, o oceano Pacífico, onde navegaria muito futuramente.

O primeiro ataque, próximo a Venta Cruz, terminou sendo frustrado – provavelmente pelo excesso de cachaça, ou aquae vitae, que Drake dera a seus homens. Naquela mesma época ocorria, na França, o massacre de São Bartolomeu, que envolveu católicos contra protestantes. O número de mortos protestantes inflamou ainda mais o ódio contra os espanhóis. Piratas franceses junatram-se a ingleses e cimarrons.

Dessa vez a história foi diferente. Conforme relatado: Os “aproximadamente 45 soldados […] provocaram trocas de balas e flechas durante um tempo, […] mas no fim os soldados [espanhóis] acharam melhor deixar suas mulas conosco, para ir buscar ajuda fora dali”. Em poucas horas, Drake e sua tripulação despojaram as mulas de seus tesouros mais valiosos, como lingotes e barras de ouro, enterraram “por volta de quinze toneladas de prata” – lembra das histórias de tesouros de piratas enterrados em praias do Caribe ? - e fugiram da cena, tropeçando pela selva sob o peso arrasador de seu fabuloso tesouro recém-conquistado.

O tesouro foi dividido entre os piratas ingleses e franceses, e os navios em “excesso” foram desmontados e queimados para que os cimarrons pudessem recuperar os ferros e pregos. Sensibilizado e admirado pelo esforço dos cimarrons, Drake ainda deu todo o carregamento de tecidos que havia nos porões de seu navio aos novos e valorosos aliados cimarrons.

O sucesso de Drake o fez heróis em casa, odiado na Espanha e fez aumentar enormemente o número de piratas ingleses na região do Caribe. Espanha e Inglaterra ainda não estavam oficialmente em guerra na Europa, mas os enfrentamentos fora da Europa estavam se tornando cada vez mais freqüentes e agressivos.

Em 1577, Drake deixou a Inglaterra em direção à América, dobrou o Cabo Horn, no Estreito de Magalhães, e adentrou o lago espanhol, o Oceano Pacífico que avistara três anos antes, no Panamá. Saqueou cidades desde o Peru até o Panamá, atacou diversos navios espanhóis, virou a Oeste, em direção à Ásia, contornou o planeta e voltou para casa, após três anos de viagem. Abasteceu-se de uma quantidade tão grande de butim que recebeu o título de Sir, tornando-se cavaleiro pelas mãos da rainha Elizabeth.

A reação de Filipe II foi tramar, junto aos católicos ingleses, para que Mary Stuart – escocesa, católica – assumisse o trono inglês em lugar de Elizabeth, filha ilegítima de Henrique VIII. Tentando evitar uma guerra, Elizabeth denunciava os piratas, mas em secreto deficilmente os punia caso a pilhagem tivesse sido contra navios espanhóis. Elizabeth defendia o ataque ao monopólio espanhol nesses temos: “o uso do mar e do ar é comum a todos; concomitantemente, o direito a qualquer oceano não pode pertencer a um só povo ou pessoa”. Seu embaixador William Cecil, na Espanha, argumentava que “o papa não tinha o direito de dividir o mundo e de dar e tomar reinos a quem quisesse”.

Porém o estado de guerra não resistiu à rebelião holandesa contra o domínio espanhol. A Inglaterra enviou tropas em apoio aos holandeses, o que provocou a reação da Espanha contra a Inglaterra, em 1585. A represália espanhola, inicialmente, limitava-se a atacar e apreender mercadorias de navios ingleses. Em resposta, mercadores e comerciantes ingleses exigiam indenizações. A Inglaterra analisava e – evidentemente – concedia Cartas de Represálias, pelas quais o governo autorizava que comerciantes contratassem piratas para pilhar navios espanhóis. Em pouco tempo havia um verdadeiro enxame de piratas ingleses no Caribe. Muitos compravam as Cartas de Represálias e fingiam ter sido previamente atacados. Pelo lado espanhol, se o navio inglês portava ou não essas Cartas era totalmente indiferente: eram mortos por enforcamento ou de outra forma qualquer.

Quanto a Drake ... bem: Drake navegou outra vez para as Índias Ocidentais em setembro de 1585, agora com uma frota de vinte navios, tripulados por mais de 2,3 mil soldados e marinheiros, para atacar Santo Domingo e Cartagena. Mas foram abalados pelo desastre. Setecentos dos homens foram atingidos pela febre amarela no caminho, e a frota voltou.

Drake partiu outra vez em 1587, 1589 e 1595 (quando enfim morreu de doença ao largo da costa de Nombre de Diós). John Hooker, um navegador inglês, escreveu nos anos 1580 que as viagens de Drake “de tal modo inflamaram o país inteiro com um desejo de aventuras nos mares, na esperança de obter sucessos semelhantes, que grande número de pessoas preparou navios, marinheiros e soldados e viajou para qualquer lugar onde pudesse haver lucro”. Muitos navegantes ingleses empobrecidos, sem nada a perder e tudo a ganhar, de boa vontade enfrentaram grandes riscos para melhorar de vida. “Predação” é a palavra que melhor descreve a situação.

Sem dúvidas a fé católica de Elizabeth era um impedimento para por um ponto final na pirataria inglesa. Mary Stuart seria uma rainha melhor para negociar acerca desse problema. Em 1586, no entanto, um plano para o assassinato de Elizabeth i foi descoberto, e Maria foi executada por traição em fevereiro de 1587. A Espanha finalmente declarou guerra à Inglaterra. No ano seguinte, a “Armada Invencível” espanhola partiu para o norte, até a Inglaterra, com resultados desastrosos. Ferozes tempestades e ágeis manobras marítimas inglesas destruíram a maior parte da frota espanhola. A guerra oficial entre as duas nações continuou durante quinze anos, até 1603, quando a rainha Elizabeth i morreu e foi sucedida pelo rei Jaime i, que negociou uma trégua.

No período seguinte, basicamente o ouro e a prata extraídos em quantidades colossais das Américas serviram para que os reis espanhóis pagassem guerras intermináveis por todo o continente europeu, alcançando também as disputas com os turcos otomanos de Constantinopla, que tentavam invadir a Europa. A esse ouro espanhol, em grande parte desse período, juntava-se a riqueza advinda das especiarias trazidas dos territórios portugueses.

O golpe final na Império espanhol foi dado por repúblicas localizadas em parte do seu território, no norte da Europa. As novas Repúblicas holandesas atacariam territórios portugueses, sob a unificação ibérica, ainda – na África e na Ásia.

Mais uma vez, um empreendimento privado poria um império estatal ibérico abaixo.


Rubem L. de F. Auto    







   







   





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