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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

COMO UM NAVEGADOR RESSENTIDO COM UM REI AJUDOU A MOLDAR O MUNDO


Após participação em diversas expedições ao Oriente e tendo realizado contato com reinos e impérios localizados nas recém descobertas regiões produtoras de especiarias, o navegador português Fernão de Magalhães passou a refletir acerca de uma nova rota comercial, navegando para o Oriente.

Sabia-se, já no início do séc. XVI, que o continente descoberto por Colombo não era a Ásia. Sabia-se, por meio de expedição liderada por Vasco Nuñes Balboa, que havia um oceano logo após aquela massa de terra e que aquele oceano era bem extenso, pois não se conseguia avistar sua outra margem, desde o ponto mais alto que encontrara no Istmo do Panamá. Mas quão extenso? Isso ninguém sabia responder. Contudo, parecia bem lógico que havia uma maneira de contornar aquele imenso continente pelo sul.

Ao lado de Rui Faleiro, amigo e cartógrafo, desenvolveu o plano de navegação e os demais detalhes da expedição. De posse do plano, Fernão solicitou audiência com o rei Manuel I de Portugal diversas vezes, com o intuito de convencê-lo a investir nessa sua empreitada. Porém, para sua decepção, na única ocasião em que foi recebido foi vítima de uma sessão pública de humilhação. Teve seus pedidos de uma frota de caravelas e de seu comando negados. Como resultado positivo, recebeu apenas a autorização para oferecer sua proposta ao rei espanhol.

Incompreensivelmente, o rei aceitou que um dos navegadores mais experientes do país, que vivia às voltas com esquemas de segurança que não permitissem que outros países tivessem acesso às informações coletadas por Portugal e suas expedições. Magalhães participou da fundação do Estado da Índia (território português do Oriente, comandado pelo Vice-Rei Francisco de Almeida) e da conquista do estreito de Malaca, com Afonso de Albuquerque.

João II já tinha cometido erro semelhante ao permitir que Colombo oferecesse seus serviços aos reis de Castela, perdendo assim a chance de possuir toda a América.

Ao lado de seu amigo Rui, após desvencilhar-se de todas as suas obrigações em Portugal, tendo perdido recentemente sua esposa, dirigiu-se à Espanha e encontrou abrigo junto à crescente comunidade de portugueses exilados na Espanha.

Lá, aperfeiçoou seus planos e apresentou-os à Casa de La Contratación, em Sevilha, órgão estatal que monopolizava todas as atividades marítimas do nascente Império Espanhol.

Se a proposta, em Portugal, tinha como objeto uma rota alternativa, agora, na Espanha, os argumentos poderiam ser melhor trabalhados. Fernão prometera a possibilidade de os Espanhóis chegarem às Molucas sem passar por mares reservados aos portugueses pelo Tratado de Tordesilhas. Além disso, havia a suspeita de que ao menos uma parte das Molucas ficava na metade Espanhola do mundo, caso estendesse-se a Linha em direção ao Oriente.

Para completar o quadro favorável a Fernão, os espanhóis ainda não estavam satisfeitos com suas novas descobertas, pois a riqueza que drenavam das novas terras ainda não incluía metais preciosos. Carlos I aceitou alocar fundos, afinal precisava de recursos para pagar sua eleição como Carlos V,  Imperador do Sacro Império Romano.

A expedição somente seria possível se, de fato, houvesse uma passagem pelo sul da América do Sul. Tal passagem já havia sido buscada, a pedido do rei Fernando, de Castela, por Jaun de Solís, desertado de Portugal após assassinar sua esposa. Este morreu no Rio da Prata, após contato com índios pouco amigáveis. Mas inspirou outros a tentar o mesmo.

Os termos exigidos por Fernão e aceitos por Carlos, foram: monopólio de dez anos sobre futuras expedições, direito de exercer justiça sumária como líder da expedição e impostos a serem pagos pela coroa, entre outras questões gerais. Porém, Carlos impôs suas condições, nesse caso, temendo eventual conflito com Portugal: “Poderás descobrir nessas partes o que ainda não foi descoberto, mas não poderás descobrir ou fazer coisa alguma na demarcação e nos limites do mui sereno rei de Portugal, meu muito querido e amado tio e irmão.”

O rei espanhol, a bem da verdade, não tinham recursos suficientes para investir no plano de Magalhães. Voltaram-se para a Casa dos Fugger, famosos banqueiros alemães. Simultaneamente, espiões portugueses na Espanha davam a notícia ao rei Manuel I de que seu “filho rejeitado” havia sido contratado por Carlos e de que os planejamentos da expedição estava a todo vapor. Nesse momento Portugal acordou para o perigo que essa viagem representava. Mas já era tarde.

Embora tenha tentado suborná-lo e, sem sucesso, ameaçar sua família, Magalhães manteve seu ressentimento e recusou-se a voltar para casa. Lembrou que já havia mesmo recusado a cidadania portuguesa. Manuel I ainda tentou apelar aos sentimentos familiares de Carlos I, mas sem sucesso.

Circulava um boato de que um dos conselheiros de Manuel, o bispo Vasconcellos, incentivara o rei português a considerar a possibilidade de Magalhães ser assassinado. Alarmado com a possibilidade de que seu esquema fosse facilmente frustrado, Carlos ordenou que Magalhães e Faleiro fossem protegidos por guarda-costas e admitiu-os como Cavaleiros da Ordem de Santiago. Agora, se Magalhães morresse de repente sob circunstâncias misteriosas, isso seria visto como ataque a um dos vassalos pessoais do rei, um ato de grande traição.

O monopólio português como importador de especiarias estava finalmente ameaçado. Afinal, por que um rei iria se importar tanto com meia dúzia de caravelas espanholas velejando em direção ao desconhecido?

O maior temor que estava envolto nessa aventura era que a Espanha desrespeitasse o Tratado de Tordesilhas. Pretendendo apaziguar qualquer desconfiança por parte de Manuel I, Carlos escreveu: “Fui informado por cartas que recebi de pessoas próximas a ti que acalentas algum medo de que a frota que estamos despachando para as Índias sob o comando de Fernão de Magalhães e Ruy Faleiro possa ser prejudicial ao que te pertence nessas partes das Índias.” Continuou: “Para que tua mente possa estar livre de ansiedade, pensei em escrever-te para informar-te que nosso desejo sempre foi, e é, respeitar devidamente tudo concernente à linha de demarcação que foi estabelecida e acordada com o rei e a rainha católicos, meus soberanos e avós.” Finalizando: “Nossa primeira incumbência e ordem aos citados comandantes é respeitar a linha de demarcação e não tocar de modo algum, sob pesadas penas, qualquer região, ou de terras ou de mar, que esteja designada a ti e pertencente a ti pela linha de demarcação”. A demarcação exata do lado Oriental do mundo foi realizada pelo Tratado de Saragoça, em 1529.

Outro fator que influenciou muito no desenrolar da viagem foi a tripulação. Foi difícil contratar marinheiros para a viagem — a jornada era um assustador e aterrorizante mergulho numa vasta extensão de água, e muitos temiam que os navios afundassem em mares desconhecidos ou que os marinheiros morressem de fome, definhassem com escorbuto, padecessem miseravelmente nas mãos de canibais ou sofressem qualquer outra morte violenta e desagradável, que era o fim usual dos que se aventuravam para tão longe de casa em águas não mapeadas. Sua tripulação incluía portugueses, franceses, holandeses, mouros e negros africanos, além de alguns espanhóis. Alguns deles mostraram-se pouco confiáveis. Sofreu diversas tentativas de motim, antes mesmo de achar a tão procurada passagem pelo sul da América. Os relatos da viagem são conhecidos em função do trabalho do cronista italiano, Antonio Pigafetta.

A frota de Magalhães era composta por cinco navios: Trinidad, San Antonio, Concepción, Victoria e Santiago. Essa esquadra, sim, pôs um fim na visão ptolomaica do mundo. Deixaram Sanlúcar de Barrameda em setembro de 1519.

Parou nas ilhas Canárias para abastecimento. Lá, foi informado de que três de seus capitães planejavam matá-lo e que o rei de Portugal despachara navios com a intenção de persegui-lo e matá-lo. Mudou a rota inicial e passou a espreitar melhor o comportamento dos capitães. Ainda na costa da África sofreu tentativa de motim. Prendeu um dos capitães, Cartagena.

Atravessaram o Atlântico, conheceram a famosa “Terra dos Papagaios”. Na altura do Rio de Janeiro, sofreram outra tentativa de motim. Outro capitão liberou Cartagens. Apesar do tumulto, foi contido.

Chegando à altura do Rio da Prata, após certificar-se de que este não era a procurada passagem, parou e esperou que o inverno terminasse para que seguissem viagem. No porto em que estavam, San Julián, ocorreu uma história marcante, que deu origem ao nome da região: “Um dia”, registrou Antonio Pigafetta, “subitamente, vimos um homem nu, de estatura gigantesca, na margem do porto, dançando, cantando e jogando terra na cabeça. Quando o gigante foi levado à presença do capitão- -geral e à nossa, ele se maravilhou imensamente e fez sinais com um dedo estendido para cima, acreditando que vínhamos do céu. Ele era tão alto que só alcançávamos a cintura dele, e era bem-proporcionado.” O homem era um dos seguidores nômades dos rebanhos de guanacos selvagens da região. Seus pés pareciam muito grandes, envolvidos em chinelos recheados de capim. Magalhães chamou o povo de patagon (em espanhol, pata significa “pé”), e a região se tornou conhecida como Patagônia. Magalhães e sua tripulação entretiveram muitos patagões em seus navios, e mais tarde capturaram dois deles por meio de trapaças.

Após a pior de todas as tentativas de motim fracassou – Magalhães matou um capitão e pôs os demais em trabalhos forçados por todo o inverso – e da perda de um dos navios, o Santiago, os quatro navios restantes aproveitaram o início da primavera em outubro de 1521. Em 1º de novembro, entraram em um estreito de água salgada: haviam achado a tão procurada passagem. Chamou-o de Estrecho de Todos los Santos. Às terras que o circundam, batizou de Terra do Fogo – a razão eram os lampejos de fogueiras feitas pelos povos nativos, como viam à distância.

Sem que pudessem prever, um dos pilotos, Esteban Gómez, tomou o San Antonio e retornou à Espanha. Em função dos relatos dele, que odiava Magalhães, este passou à hisória, por muito tempo, como incompetente e responsável pelo sofrimento de sua tripulação.

No final de novembro, finalmente, emergiram do estreito e saíram entraram no novo e inexplorado oceano. Balboa havia estado no extremo Oriental. Os portuguesas já haviam explorado a margem Ocidental, nas Molucas. No meio estava uma massa de água que ocupa 1/3 do Planeta e que, na época, calculava-se em ¼ do seu real tamanho.

Magalhães reuniu seus três navios restantes e disse-lhes: “Cavalheiros, agora estamos navegando em águas onde jamais navegou nenhum outro navio. Que possamos sempre encontrá-las tão pacíficas quanto nesta manhã. Com essa esperança, vou dar-lhe o nome de mar Pacífico”.

A fatídica de realizar a travessia cobrou seu preço. Após dois meses de sofrimento, comendo farelos de biscoito, ratos mortos, comida podre e azeda, água fétida e couro amolecido na água salgada - o primeiro registro de escorbuto ocorreu nessa altura da viagem, o que assustou muito a todos -, em 24 de janeiro de 1521 um dos homens avistou um atol inabitado.

Nessa ilha se fartaram com ovos de tartaruga, pássaros marinhos assados e cocos.

Os três navios continuaram pela enorme extensão de água até o dia 4 de março. Depois de 97 dias de travessia do Pacífico, o vigia mais uma vez avistou terra, e os navios rumaram na direção da ilha conhecida atualmente como Guam, ao norte da Nova Guiné e a leste das Filipinas.  

No porto, flutuavam muitas pequenas canoas de pesca, que chegaram como enxame em torno do capitânia de Magalhães quando ele entrou no porto. Polinésios subiram a bordo do navio e correram pelo tombadilho, agarrando ferramentas e utensílios que não estivessem presos. Quando avançaram no escaler que estava amarrado à popa, Magalhães mandou que seus homens de armas atirassem com suas bestas, sem sucesso. Mais tarde, na mesma noite, ele mandou alguns homens a terra para comprar frutas e arroz e atacar a aldeia para recuperar o escaler roubado. Não é de surpreender que ele tenha dado àquela ilha o nome de Guam, e às ilhas vizinhas Islas de los Ladrones.

No dia seguinte, Magalhães ordenou que sua pequena flotilha içasse velas e se dirigisse para o sudoeste, numa rota para as Filipinas e as Molucas. Em meados de março de 1521, eles encontraram outras canoas de pesca e conseguiram negociar bananas, coco, arroz e vinho de palma. A essa altura, a comida fresca tinha praticamente recomposto a saúde dos marinheiros atacados de escorbuto — suas feridas abertas cicatrizaram, os dentes bambos se reafirmaram, as gengivas pretas, esponjosas, voltaram ao que eram e recuperaram a cor natural.

Conforme registrou Pigafetta, ali acharam aqueles produtos que tanto os faziam sonhar: “Canela, gengibre, ameixeira-da-pérsia, laranja, limão, jaca, melancia, pepino, abóbora, nabo, repolho, escalônia, vacas, búfalos, suínos, cabras, galinhas, gansos, veados, elefantes, cavalos e outras coisas são encontradas ali.”

As Molucas eram densamente habitadas por povos sofisticados e prósperos, acostumados a lidar com comerciantes estrangeiros, fossem eles da Índia, da China ou os recém-chegados de Portugal — os europeus haviam chegado à região havia seis anos.

A chegada à Malásia foi notada pelo escravo pessoal de Magalhães, o malaio Enrique, que estava com ele desde 1511, quando Magalhães esteve naquela mesma região. Ao conseguir se comunicar com um local, que se movimentavam em sua canoa. Estavam muito próximos da Molucas, há poucos dias de viagem.

A partir daí, Magalhães tomou a atitude que pôs na sua vida  e na chance de realizar o seu sonho: mudou a direção do navio, elevou um forte na praia de Cebu, atual Filipinas, e começou a converter habitantes locais a se converter ao cristianismo. Terminou por se envolver em uma batalha local, foi atingido e morreu. Ao lado dele, muitos outros homens também morreram por táticas desastradas e impensadas.

Enrique não foi liberto, como deveria. Fugiu e tramou como o rei malaio o ataque à tripulação sobrevivente. Ao final das guerras e do motim contra a tripulação dos navios, da qual restavam 114 homens dos 250 que saíram da Espanha, queimaram um dos navios, o Concepción, e ocuparam os dois restantes.

Saíram navegando pelas ilhas locais, por seis meses, comerciando com locais e navegando em direção às Molucas. Após 27 meses desde o início da expedição, chegaram a Tidore, nas Molucas. Carregaram os navios com canela, cravo etc.

Ao sair com seus carregamentos, um dos navios, o Trinidad, não apresentou condições de continuar viagem. Temendo cruzar a parte portuguesa do mundo, tentou voltar pelo Pacífico. Os poucos que não morreram de fome ou escorbuto foram capturados por navios patrulha de Portugal e foram presos e mortos. Somente 10 conseguiram voltar à Espanha.

Por outro lado, a tripulação do Victoria voltou pelo Índico. Passaram fome, enfrentaram tempestade, tentaram aportar em Cabo Verde (português), altura em que 25 já haviam morrido.
Chegaram com o Victoria, em Sanlúcar de Barrameda, local do embarque, apenas 18 homens. Navegaram 14.460 léguas. Completaram a circum navegação do Planeta.

E mais: o porão do único navio, cheio de cravo, era suficiente para pagar os custos da viagem inteira dos cinco navios e ainda dar lucro, apesar da perda de três navios, da incrível duração da viagem e das condições do Victoria.

Agora os europeus conheciam o tamanho da Terra ... e descobriram que eram muito maior do que imaginavam.

Carlos I, agora não apenas rei da Espanha, mas também novo imperador do Sacro Império Romano, não foi generoso em suas recompensas aos sobreviventes da incrível viagem. A maior parte dos marinheiros jamais conseguiu receber seus salários atrasados, muito menos as pensões prometidas. Magalhães não apenas morreu longe de casa, como sua mulher e filho morreram enquanto ele estava no mar, e seus herdeiros não conseguiram reivindicar o salário ou qualquer outro benefício por seu serviço ao governo espanhol. Era visto em Portugal como traidor, e na Espanha foi denegrido pelos traiçoeiros amotinados que tinham abandonado a expedição e voltado para casa antes mesmo de navegar pelo estreito de Magalhães.
Para o futuro, restaram muitas discussões a serem realizadas entre as duas monarquias envolvidas. A questão da soberania das Molucas ainda não tinha sido resolvida. O rei Manuel i morrera de peste em 1521, para ser sucedido por seu filho, João iii. O novo rei português, de dezenove anos, declarou que as especiarias trazidas pelo Victoria lhe pertenciam e que queria que os marinheiros sobreviventes fossem punidos por cruzarem a linha de demarcação — alegava que eles a haviam cruzado em desafio aos decretos papais.

Carlos i concordou em não mandar mais navios espanhóis através do estreito de Magalhães até se ter debatido a situação em uma reunião planejada para a primavera de 1524. Em tal encontro, as complexidades antigas, técnicas e controversas dos argumentos jurídicos seriam esmiuçadas por uma delegação de luminares marítimos e especialistas em cosmologia e leis. Onde, no mundo, ficavam as Molucas? E a quem pertenciam os direitos jurídicos sobre a mais rica rota comercial já descoberta?


Rubem L. de F. Auto

Fontes:









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