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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

VIRA-LATAS COMPLEXADOS: RÉQUIM PARA UM POVO!


Embora goze há muito de uma reputação celeste, Tom Jobim sofreu agruras pelas mãos de críticos habilidosos em baixar o sarrafo em qualquer tupiniquim que se atreva a fazer algo elogiável.

Qualquer coisa que o maestro fizesse era motivo para defenestrá-lo: quando Frank Sinatra, um dos maiores cantores do mundo, reverenciou-o gravando dois discos repletos de composições suas, Tom foi logo taxado de “americanizado” – quando foi o “americano” que se abrasileirou, de fato; se diziam que fundara a bossa nova, logo diziam que era uma mera importação do jazz. Um crítico golpeou mais forte: “Ele é um compositor da Broadway nascido no Brasil”.

Quando a Coca Cola comprou os direitos de Águas de Março para passar em seus comerciais, Tom passou a ser o “vendido”. Ao protagonizar um comercial da Brahma, ao lado do fantasma de Vinicius de Moraes, ao som de “Eu sei que vou te amar”... desabafou: O Brasil não é para principiantes”.
Depois, de cabeça mais fria, diria o Tom em tom mais ameno: “Viver no exterior é bom, mas é uma merda; viver no Brasil é uma merda, mas é bom”. Ele sabia bem do que falava, após morar muitos anos em Nova York.

Evidentemente invejar o sucesso alheio é uma característica humana, não brasileira, mas salta os olhos a intensidade desse fenômeno no Brasil, especialmente em se tratado de invejados tupiniquins.

Quando o Rio de Janeiro foi escolhido sede dos Jogos Olímpicos de 2016, a atriz americana Wanda Sykes, numa entrevista no programa de Jay Leno, perguntou se prostituição era agora uma modalidade olímpica. Silvester Stallone justificou assim a escolha a escolha do Brasil como locação do filme Os Mercenários: “Lá você pode atirar nas pessoas, explodir coisas e elas dizem ‘obrigado’”.

Seria ótimo supor que essa imagem depreciada do Brasil valesse apenas na cabeça dos “gringos”. Mas a verdade é que o conceito de Brasil na cabeça dos brasileiros não é nem um pouco positivo. Quando perguntados sobre qual palavra associam imediatamente à “pátria amada idolatrada”, 50% responderam “desonesto”, numa pesquisa da BrandAnalytics em 2014. Para alcançar o sucesso, apenas 13% dizem achar que podem contar com algum apoio do Estado. E se confrontados com o questionamento sobre qual seria o país ideal para viver, meros 18% responderam Brasil.

Este último questionamento, quando feito a norte-americanos, levava 52% dos entrevistados a responderem que era o seu país.

Esses resultados desanimadores são recentes, fruto dos últimos governos? Não. Nelson Rodrigues já inventava, lá em 1958, uma expressão para representar esse sentimento de inferioridade em relação às coisas pátrias: “complexo de vira-latas”. E explicou: “Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores”.

Mas o sentimento opera dos dois lados: desvaloriza o que é brasileiro e supervaloriza o que é estrangeiro. Por exemplo, um holandês pedalando até o trabalho é elogiável, até mesmo lúdico; já a promessa de cenas como essa no Brasil causa furor e até revolta.

Uma pesquisa, há poucos anos, mostrou que mais da metade dos turistas que apinhavam as ruas e shoppings de Miami era de brasileiros: 424 mil, contra 345 mil canadenses comendo poeira.

Mas quando se pesquisou quantos escolhiam aquela cidade para adquirir uma imóvel, o lugar de destaque era mantido. Os brasileiros eram os que mais pesquisavam imóveis no site da associação de imobiliárias local e os imóveis pesquisados eram, em média, mais caros do que os pesquisados por canadenses.

Seria esse complexo de vira-latas o responsável por ignorarmos tão completamente os brasileiros do “andar de baixo”? Por exemplo, ninguém parece invejar o programa social do governo da Austrália voltado à população de rua. Eles receberam apartamentos mobiliados, na cidade Brisbane, de um edifício residencial construído para esse fim. São 146 apartamentos de 30 metros quadrados, incluindo uma varanda de 3 metros quadrados. Já vêm com TV LCD, fogão, forno micro-ondas, geladeira etc. O edifício conta com elevador inteligente, salão de jogos, churrasqueira no terraço. Tudo de graça, porém deve-se lembrar que esses moradores de rua recebem um subsídio de 400 dólares australianos por mês do governo.  

Outro setor do país historicamente surrado pela crítica é a culinária. Embora nascidos num país continental, de natureza rica e com costumes diversos conforme a região, o que vem de fora costuma nos causar mais fascínio.  Os hábitos alimentares denunciam: comemos mais sushi do que churrasco; os rankings de melhores restaurantes de São Paulo costumam ser preenchidos apenas por representantes da cozinha italiana; o wasabi tem amis espaço nos pratos do que quiabo.

Embora chefs como Alex Atala estejam pondo o nome da culinária brasileira na órbita dos astros da boa cozinha, relegar a meia dúzia de representantes o que há de melhor na comida mineira, baiana, goiana, carioca, paraense... Parece insignificante demais.

É uma realidade que contrasta com o passado distante: até o segundo século da descoberta, os portugueses eram fascinados pelas possibilidades gastronômicas do país: os gêneros alimentares abundantes, a terra fecunda, o clima ameno. Mas já no século XIX o que era local era considerado inferior ao que vinha da Europa.

Alex Atala tenta explicar: “Como país colonizado, nós sempre ficamos mais de olho em outras culturas. Nunca olhamos a nossa própria com orgulho. E eu às vezes fico louco com isso porque temos no Brasil tanto a cozinha refinada quanto a comida de rua. As pessoas querem colocar a alta gastronomia em uma caixa de trufas, foie grãs e pratos pequenos. E essa é uma idéia que envelheceu.” Ele criou o conceito de cozinha que mistura ingredientes como tucupi e jambu, baru, tapioca nordestina e canjiquinha mineira.

Logo que surgiu para a gastronomia, Alex Atala disse: “Falta alguém que tenha orgulho da nossa culinária como Villa-Lobos tinha orgulho da nossa música.”

Deu certo. Em 2014, a revista especializada Restaurant o pôs à frente do melhor restaurante francês no seu ranking. A brasileira Helena Rizzo, melhor chef mulher do mundo pela mesma publicação, segue esse mesmo conceito em seu Maní.

Aqui desvenda-se um fenômeno interessantíssimo: nossa baixa auto-estima para coisas locais nos faz invejosos do que vem de fora; quando o que vem de fora nos admira, passamos a admirar o que é nosso, a despeito da baixa auto-estima. Enfim, a admiração recente de estrangeiros por nossa cozinha nos fez mais orgulhosos dela. Invejinha-bumerangue básica.

Outro setor surrado à exaustão é o cinema nacional. Alguns comentários de “gringos”, inclusive, costumam causar espécie. Por exemplo, o premiadíssimo diretor de cinema Martin Scorsese apresentou a seus atores, antes das filmagens e “Gangues de NY” e “Os Infiltrados”, o filme “O Dração da Maldade contra o Santo Guerreiro”, de Glauber Rocha. Dizia o nova-iorquino que aquela obra o impressionara enquanto espectador.

O crítico de cinema irlandês Mark Cousin assim fala de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”: “fotografado como um dos filmes de John Ford e editado a um modo eiseinsteniano” – fazendo referência a Sergei Eisenstein, considerado um revolucionário das telas no seu tempo.

Um diretor desse calibre deve ter sido bastante elogiado e louvado em casa, certo? Nada mais falso. Escrevendo sobre “Terra em Transe”, o crítico de cinema do Correio da Manhã, Antonio Moniz Vianna acusou a obra de ser uma imitação desbotada de Godard e de Fellini, disse que sua polêmica era inútil, que Glauber abusava das metáforas e acusou o quadro que pintara da política brasileira de obscuro e indecifrável.

Galuber passou boa parte de sua vida na Europa.

Anselmo Duarte, outro diretor de cinema, premiado com a Palma de Ouro em Cannes em 1962 por “O Pagador de Promessas”, quando desbancou obras clássicas de Michelangelo Antonioni e Luis Bruñuel, assim comentou sobre as críticas mordazes de que era alvo: “Quem criticava meus filmes eram alguns moleques do Rio de Janeiro, que invejavam os prêmios conquistados por mim...”

Tropa de Elite, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2008, foi aqui acusado de fascista por mostrar os conflitos entre polícia de bandidos nas favelas cariocas sob o ponto de vista da polícia, crítica essa que não de repete nos filmes policiais de Hollywood.     

Ainda  no cinema, poucas coisas deixam mais patente o sentimento de vira-latas do que o desejo incontido de ver um filme brasileiro sendo premiado com o Oscar, apesar dos inúmeros prêmios recebidos até hoje, como se aquele prêmio fosse fundamental para ratificar a qualidade da obra.

A expressão “complexo de vira-latas”, como vimos, nasceu a partir do futebol e é nesse setor que se mostra mais prolífica. Quando a seleção ia para a Suécia, disputar a Copa de 1958, e quando ainda não éramos o país do futebol, poucos acreditavam no esquete canarinho.

Mas um jornalista destoava: Nelson Rodrigues. Consagrado por seus textos empolgados, apaixonados e radicias, ele não poderia compactuar com aquele sentimento desesperançosos e cabisbaixo do torcedor brasileiro. Nelson era tupiniquim: “A Europa é uma burrice aparelhada de museus!”, esbravejava no Jornal dos Sports.

Nelson identificava o momento em que o brasileiro começou a se sentir um cão abandonado: a derrota vergonhosa na final da Copa de 1950, a maior até o trágico embate contra a Alemanha na Copa de 2014, também no Brasil.

Sobre aquela derrota, Nelson escreveu: “Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos”. Continuou: “O problema do escrete não é mais de futebol, nemd e técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo.” Quanta falta fazem jornalistas como esse...

No curso para a Copa de 1958, Nelson deparou com um menino negro, de apenas 17 anos, que humilhou o bom time do América-RJ numa partida contra o Santos, quando fez 4 dos 5 gols de seu time. Nelson elegeu o menino o “personagem da semana” em sua coluna. E assim discorreu sobre o craque emergente: “O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento.” De novo: quanta falta fazem jornalistas como esse...

Examinando os motivos do sentimento nacional de inferioridade, Nelson foi mais uma vez incisivo em suas críticas: “Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.”

Pois bem, após a segunda partida da Copa de 1958, tendo conquistado um suado empate contra a Inglaterra, os jogadores se reuniram com o técnico Vicente Feola e pediram que ele escalasse dois jogadores do banco de reservas: Garrincha e Pelé. O jogo seguinte era contra a intimidante seleção da URSS, que se orgulhava de praticar um futebol científico, de jogadas precisas e com jogadores disciplinadíssimos.

Na primeira vez que pegou a bola em campo, Garrincha saiu em disparada, driblou o time soviético inteiro e carimbou a trave dos adversários com uma bomba disparada com os pés. Houve quem temesse pela raiva que esse desaforo poderia causar nos poderosos adversários. Mas a história seria outra: 2 X 0 e essa seria apenas a primeira da série invicta da dupla: a seleção nacional nunca perderia se ambos os jogadores estivessem em campo (foram 36 vitórias e 4 empates).

Na semifinal contra a França, equipe do artilheiro da competição Just Fontaine, Pelé marcou 3 dos 5 gols da vitória de 5 X 2. O placar da final contra a Suécia foi o mesmo: 5 X 2 (sendo 2 de Pelé) e o Brasil seria a única seleção de futebol a vencer fora do seu continente – fato que só seria superado por Espanha e Alemanha nas duas últimas edições.  

Pelé e Cia chutaram para escanteio o complexo que contaminou os brasileiros. Em 1962, apesar do Rei machucado e fora de campo, Garrincha tomou o comando da embarcação e manteve o sentimento nacional em alta, com mais uma Taça.

Mas então veio 1966, a seleção brasileira saiu do torneio muito cedo, a Inglaterra venceu com um futebol horrível e com árbitro comprado... E o vira-latismo voltou à cena. De novo, não éramos mais bons em nada! A seleção brasileira representava a derrota humilhante e a Copa de 1970 deixaria esse fracasso ainda mais patente.

Mas o time dos otimistas apresentaria mais um personagem marcante e inesquecível: o jornalista gaúcho João Saldanha. Técnico da máquina de fazer gols do Botafogo de Garrincha e Didi, o “João Sem Medo”, assim apelidado por Nelson Rodrigues, era conhecido por andar armado, falar o que vinha à cabeça e se enfurecia se lhe pedissem para copiar o futebol europeu. Convidado para comandar a seleção, acreditava desde o início que poderia montar um time invencível. Seu combinado ficou conhecido como “as feras do Saldanha”.

Mas Saldanha teria que deixar algumas coisas mais claras para seus jogadores. Nas eliminatórias, no segundo jogo, contra a Venezuela, a seleção brasileira relaxou em campo, jogou um primeiro tempo morno e foram para o vestiário exibindo um vergonhoso 0 X 0. Saldanha não gostou nada daquilo. Debaixo de chuva forte, ao chegarem às portas do vestiário, os jogadores depararam com um Saldanha sério, segurando a chave e terminando de trancar a porta. Disse apenas que se era para jogar aquele futebol terrível não precisavfam trocar o uniforme. Mandou que voltasse a campo e esperassem lá o reinicio da partida – Pelé, Carlos Alberto, Tostão, Gerson... Todos eles sentados no gramado debaixo de chuva.
Pois bem, parece que funcionou. Fim de jogo, 5 X 0 para o Brasil. Nas eliminatórios inteiras seriam 23 gols feitos e apenas 2 sofridos. Tostão fez 10 desses gols.  

Saldanha assim responderia quando perguntado se era otimista sobre o Brasil: “Claro, se eu não fosse já tinha me naturalizado dinamarquês”. Sua esposa era dinamquesa.

Mesmo vitorioso, Saldanha foi demitido e substituído por Zagallo. Por quê? Até hoje o episódio é mal explicado: uns dizem que ele se recusou a convocar Dadá Maravilha a pedido do ditador da época, Médici; outros dizem que ele era comunista e diretor do Partido Comunista nos piores anos de repressão da Ditadura. Nunca deixariam um país inteiro grato a um comunista.

Quem será o próximo a jogar para escanteio o nosso vira-latismo intrínseco?


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Inveja: Como ela mudou a história do mundo” 


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