Em 1963, no jornal britânico The Times, o crítico musical
William Mann escreveu uma coluna que marcaria um divisor de águas na história
da música. Comentando sobre os compositores de uma banda de rock iniciante,
declarou “são os compositores ingleses mais extraordinários de 1963”. Mais à
frente: a dupla tinha dado “um sabor divertido e singular a um gênero de música
que estava correndo o risco de deixar de ser música.
Mann era um crítico erudito, conhecia música profundamente: “pensam
simultaneamente em harmonia e melodia, tal a firmeza com que a sétima e a nona
maiores estão construídas em suas músicas”.
Ao comentar a canção “Not a Second Time”, Mann comentou que
as mudanças de escala eram “tão naturais quanto a cadência eólica ao final”.
Terminou comparando aquela música a “Das Lied Von der Erde”.
Ao comentar aquele episódio, John Lennon foi bem sincero: “Não
entendi nada do que ele disse”. Ele achou até que “cadência eólica” era o nome
de um passarinho.
De qualquer maneira era um epíteto em tanto para uma dupla
que havia começado a ensaiar suas primeiras composições anos antes, no quarto
de John na casa de sua tia Mimi, responsável por sua criação após a separação
dos pais.
Foi lá inclusive que John Winston Lennon e seu amigo James Paul
McCartney acordaram a maneira imortal como assinariam suas composições: Lennon
& McCartney, assim mesmo, com o Lennon sempre à frente.
E também foi ali que nasceu a competição entre os dois
jovens, que terminaria por fazer despontar dois dos maiores nomes da música no
século XX. Frank Sinatra, declaradamente antipático ao rock, gravou “Yesterday”
e “Something”. Sobre esta música dizia ser “a melhor música de amor dos últimos
50 anos”, para desespero do verdadeiro compositor, George Harrison. Dave Grohl,
líder do Foo Fighters, afirmou que Kurt Cobain aprendeu a tocar guitarra
ouvindo e tentando repetir os acordes dos Beatles. Ozzy Osbourne era fã de Paul
McCartney, que inventou o Heavy Metal quando compôs Helter Skelter. Foi o
estilo informal e simples dos primeiros anos da banda que inspiraram bandas
como Ramones e o estilo punk.
Foi o sucesso dos Beatles que levou o empresário de outra
banda, Rolling Stones, a obrigar Mick Jagger e Keith Richards a comporem suas próprias
músicas.
Após o lançamento dos álbuns mais elaborados e psicodélicos –
como Rubber Soul, Revolver e Sgt Pepper`s – novos fãs surgiram, como o poeta
Allen Ginsberg e outras pessoas que buscavam música que fizessem pensar.
Com a música Tomorrow Never Knows, efeitos musicais em loop
inauguraram uma fase vanguardista na música pop. Efeitos musicais estes dalavra
de Lennon, mas precedido de muitos anos de experimentação por Paul.
Começaram a usar os efeitos de estúdio como elemento de suas
músicas antes mesmo da banda Pink Floyd. Inventaram até o videoclipe, ao criar
filminhos que pudessem ser veiculados na mídia, evitando assim que tivessem que
comparecer sempre a programas de TV. A tendência seguida por diversas bandas de gravar álbuns ópera-rock, em que as músicas
contam uma história, da primeira à última, foi iniciada com o álbum Sgt.
Pepper`s.
Pode-se afirmar que foram eles que iniciaram as
apresentações musicais em estádios, forma que acharam para conseguirem se
apresentar para as multidões de fanáticos nos EUA: o primeiro deles ocorreu no
Shea Stadium, em NY, em 1965. 55 mil pessoas compareceram ao concerto.
No que se refere a comportamento, deram início ao interesse
do ocidente pelo oriente e as coisas da Índia. Também puseram o cabelo comprido
na moda – embora hoje o cabelo de esfregão pareça um tanto comportado.
Finalmente, imortalizaram dois profissionais da música
fundamentais na história da banda: o empresário Brian Epstein e o produtor
musical George Martin.
Em 9 de fevereiro de 1964, o quarteto de Liverpool estava
nos EUA, aguardando para entrar ao vivo no programa The Ed Sullivan Show. Foi
quando receberam uma mensagem: “Parabéns pela presença de vocês no The Ed
Sullivan Show. Esperamos que o seu compromisso tenha sucesso, e que sua visita
(aos EUA) seja agradável” Quem assinava era Elvis Presley. George Harrison foi
quem reagiu imediatamente: “Quem é esse Elvis?”
Evidentemente Lennon e McCartney sabiam de quem se tratava: era
o cara que os fez se interessarem por fazer música.
Mais de 73 milhões de pessoas acompanharam a entrevista dos
rapazes. A polícia testemunhou a queda vertiginosa nos índices de violência
durante a entrevista mencionada.
Após os primeiros passos na casa da tia Mimi, John Lennon
formara uma banda de rock. Na verdade nem era rock. Tocavam o que se chamava de
skiffle: um rock suavizado, que chocava menos os ingleses daquela época. O rock
de verdade só era feito por músicos norte-americanos, quase todos negros – e que
haviam traumatizado os mais velhos: Jerry Lee Lewis, casado com sua prima de 13
anos; Little Richard, negro e homossexual; Chuck Berry, preso com uma
prostituta menor de idade; Gene Vicent, veterano nos acidentes de carro.
Paul era apenas um garoto bochechudo que tentava impressionar
o band leader a deixá-lo tocar com os caras “mais velhos”. E impressionou!
Lennon disse que percebeu que estava dando espaço a um cara quase tão bom
quanto ele. O nome da bandinha era Quarrymen.
Lennon tinha muito em comum com aquele garoto canhoto que
tocava habilmente com a mão direita: ambos perderam a mãe na adolescência;
ambos foram criados por tias, após a perda de suas mães; ambos perderam os pais
em 1976; ambos foram incentivados musicalmente por seus pais.
Mas o lar de Paul era infinitamente mais estável e
descomplicado do que o de John, que viveu uma infância trágica. Após uma
gravidez indesejada, a mãe e o pai se separam, inicia-se uma briga pela guarda
da criança, que termina sendo adotada pela tia.
E foi essa diferença de criação nos primeiros anos que criou
o contraste entre ambas as “personas”, que acompanhou toda a criação musical do
grupo. Lennon, por exemplo, mostrava-se inseguro, muitas vezes ácido nos
comentários, por vezes era irônico, quando não se aproximava da violência
física. São dele a letra desesperada de “Help” e a quase-suicida “I`m a Loser”.
Paul era o “beatle” diplomático: polido, charmoso, otimista.
Somente ele poderia ter escrito “Good Day Sunshine” e “We Can Work It Out”.
A partir da junção da melodia hipnotizante de Paul com as
letras poeticamente delirantes de John nasceu a prolífica dupla de compositores
que marcou o século – segundo muitos, os melhores desde Schubert.
O primeiro single sob o nome Beatles foi lançado em outubro
de 1962 e se chamava “Love Me Do” – com a clássica “P.S. I Love You” no lado B.
Ambas foram compostas quase inteiramente por Paul, que também as cantava. O
grupo chegou à 17ª posição entre as mais tocadas no Reino Unido.
Para o trabalho seguinte, o produtor George Martin foi
apresentado a uma nova canção de Lennon: “Please Please Me”. Aceitou gravar
e... Boom! Hit número 1 nas paradas! Os tempos de Cavern Club chegavam ao fim.
Dizem que estavam tocando no Cavern quando foram informados de que chegaram ao primeiro
lugar nas paradas. As pessoas nas primeiras fileiras começaram a chorar: agora
os garotos de Liverpool eram do mundo.
George Martin então resolveu apostar num LP. Após uma sessão
que durou insanas 12 horas, saiu o álbum que ficou conhecido como Please Please
Me. Iniciava-se com “I Saw Her Standin There”, composição de Paul; e terminava
com Twist And Shout, cover dos Isle Brother, gravado na voz de Lennon.
O LP foi lançado em março de 1963 e ficou no primeiro lugar
das paradas por 30 semanas. E se acirrava ainda mais a concorrência entre os
dois compositores para saber quem era o melhor.
Da primeira fase da banda, são os álbuns: Please Please Me,
With The Beatles”, “A Hard Day`s Night”, “Beatles For Sale” e “Help!” Lennon
foi o principal compositor em 27 músicas. Paul se sobressaiu em 17. Excluíram-se
aqui as parcerias. Em “Hard Day`s...”, Lennon criou 10 faixas, enquanto Paul só
o fez em três.
São ainda de Lennon a faixa “A Dard Day`s...”, “Help!”, “Ticket
To Ride”, “I Wanna Hold Your Hand”. Dentre os clássicos da primeira fase, Paul criou
“Can`t Buy Me Love”.
Destaca-se nessa fase um dos maiores hits da carreira da
banda: Yesterday. Composta por Paul, foi regravada por Sinatra, Plácido
Domingo, Bob Dylan, Marvin Gaye, Ray Charles, Roupa Nova... Também rendeu
problemas internos. Quando era tocada nos shows, todos os outros membros saíam
do palco. Paul a interpretava sozinho ou acompanhado de um quarteto. Numa
dessas ocasiões, Lennon retornou ao palco com uma frase irônica: “Obrigado,
Ringo. Foi maravilhoso”. Lennon chegou a ser cumprimentado como uma vez por um
músico que pensava ser ele o autor de Yesterday.
Por causa dessa música, em 1996 Paul protagonizaria um triste
episódio, quando tentou inverter os créditos da música – pondo McCartney &
Lennon -, 16 anos após a morte de John e mediante pedido de autorização à
viúva, Yoko.
No período de 1965 a 1966, a banda atingiu um novo patamar
de criação musical. São desses anos os álbuns Rubber Soul e Revolver. Lennon
mantém a dianteira, mas agora com menor vantagem: compôs 12 faixas, contra 10
de Paul. Lennon compôs “Nowhere Man” e “In My Life” – sem falar em “Tomowwow
Never Knows”. John experimentava aqui sua produção sob efeitos de LSD.
Paul produziu a obra-prima “Eleanor Rigby” – com arranjo de
cordas de George Martin. Havia ainda da lavra de Paul: “For No One” e “Here
There and Everywhere”.
No quesito drogas, Paul cantou seu amor pela cannabis em “Got
to Get You into My Life”.
A revolucionário álbum Sgt. Pepper`s Lonely Hearts Club Band
marcou também o momento em que o workaholic Paul ultrapassa a produção musical
de John. Totalmente idealizado por Paul, trazia uma obra de Lennon: “A Day in
the Life”, que se tornaria emblemática. O disco ficou 15 semanas em primeiro
lugar na Billboard. Lançado numa quinta-feira, já no domingo eles assistiram a
um show de Hendrix, em que o lendário guitarrista fazia um cover da primeira
faixa recém-lançada.
Foram oito faixas de Paul contra quatro de Lennon. O álbum
seguinte, Magical Mystery Tour manteve Paul à frente: 5 x 4.
Lennon declarou na época, sobre a produção incessante de
Paul: “Ele já tinha cinco ou seis músicas, então eu pensei: foda-se, não
consigo acompanhar esse ritmo”.
Eram agora os gênios do pop. Se dez anos antes Paul era o
gordinho querendo uma vaga no Quarrymen, agora ele tomava o comando da nave-mãe
Beatles.
Dentre os motivos apontados para a decaída da produção de
John Lennon, citam-se seu relacionamento com Yoko Ono e o fato de ter trocado o
LSD pela heroína. Quando perguntado se Ringo era o melhor baterista do rock, o
magoado Lennon respondeu: “Ringo não é nem o melhor baterista entre os Beatles”.
Quanto a suas opiniões sarcásticas sobre Paul, Lennon as expressou em sua
carreira solo, na faixa “How do You Sleep?”: “a única coisa que você fez foi
Yesterday”, dentre outros desaforos.
O final da carreira do grupo foi marcado pelos álbuns “Álbum
Branco” (na verdade sem título) e Abbey Road. Aqui, o equilíbrio entre os
compositores foi retomado. Foram 24 produções de Paul contra 22 de John. Foi
marcado também por desentendimentos, que de tão perturbadores levaram Ringo
Starr a largar a gravação – Paul foi baterista em duas faixas.
Quanto ao conturbado relacionamento com Yoko, parece que não
afetou tanto o músico: ele compôs clássicos como “Revolution”, “Across the Universe”
e “Come Together”. Paul não ficou para trás, assinando “Lei It Be”, “The Long
and Winding Road”, “Get Back” e “Hey Jude”.
Terminada a banda, Paul se tornou uma espécie de
hipster-milionário. Foi morar numa fazenda na Escócia, construiu um solar com
um buraco no meio, passava o dia inteiro fumando maconha e produzindo faixas
com os músicos que contratou. Ele e Linda tiraram as crianças da escola e
passaram a educá-las em casa.
A primeira turnê da banda foi uma aventura: puseram todos os
equipamentos e tralhas da família numa van e se dirigiam se cidade em cidade.
Quando achavam uma universidade, perguntavam se eles queriam um “showzinho” de
Paul McCartney.
Algumas décadas após, McCartney se tornou o primeiro músico
a faturar mais de 1 bilhão de dólares ao longo da carreira.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Inveja: Como ela mudou a história do
mundo”
Nenhum comentário:
Postar um comentário