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terça-feira, 24 de outubro de 2017

O ALEMÃO ARIANO COM RAIVA (THE ANGRY WHITE GERMAN)


Desde a derrubada do Império Romano até o final do Sacro Império Romano-Germânico, os judeus na região da Alemanha não souberam o que era igualdade de direitos. Tratados como “povo inferior”, estavam condenados a receber salários inferiores, não poderiam adquirir casas de alto padrão, ou jóias, ou roupas caras... Ser patrão de algum alemão? Nem pensar!

Até então, os judeus eram odiados em razão do mito bíblico de que foram eles os culpados pela morte de Jesus Cristo. No Novo Testamento, no Evangelho de João, os judeus são chamados de “filhos do Diabo”. Mateus escreveu o trecho do julgamento de Cristo em que Pilatos pergunta quem deveria libertar naquele domingo de Páscoa, ao que os judeus responderam em uníssono: Barrabás! E o criminoso foi liberto, em lugar do Salvador...

Quando, no século IV, Constantino adotou o cristianismo como religião do Império, o cristianismo descolou de vez do judaísmo e o antissemitismo atingir patamares superiores de virulência.

Ainda no século IV, o arcebispo de Constantinopla, João Crisóstomo, um dos pais fundadores da Igreja, reforçou os motivos do ódio: dizia que um sapateiro em Jerusalém, quando da procissão em que Cristo carregava cruz, teria xingado e ironizado Jesus, ao que recebeu uma maldição como resposta, segundo a qual estaria condenado a vagar pelo mundo, eternamente errante. Crisóstomo sustentava ainda que as sinagogas eram casa do demônio. Crisóstomo foi beatificado pela Igreja.

Mas nenhum antissemita superaria Martinho Lutero. Em sua obra “Dos Judeus e seus Mentiras”, Lutero chega a dizer que os judeus estariam cheios de fezes do diabo, e chafurdariam nessas fezes como porcos. Em outra passagem, escreveu: “Se Moisés fosse vivo, seria o primeiro a incendiar as escolas judaicas. Não só as escolas, suas casas também deveriam ser destruídas...”. Acrescentou: “Os judeus deveriam ser reunidos sob o mesmo teto, como numa estrebaria”.

Não à toa, Hitler considerava Lutero um dos três maiores nomes da Alemanha, na história. O redator do jornal nazista também se defendeu em Nuremberg, dizendo que nada do escrevera foi diferente do que Lutero dissera no passado. E a exemplo de Lutero, esse mesmo redator escreveu obras infantis, em que pretendia cultivar o ódio aos judeus desde a mais tenra idade.

Na Idade Média, foram considerados culpados pela Peste Negra, frequentemente eram enviados às fogueiras da Inquisição, normalmente eram desenhados com chifres e rabos, eram acusados de fazerem rituais em que sacrificavam criancinhas, eram acusados de envenenar poços d`água.

Conspirações secretas também faziam parte do rol de maldades debitadas aos judeus. Não à toa a fraude literária chamada Os Protocolos dos Sábios de Sião – traduzido para o português pelo intelectual e antissemita Gustavo Barroso - fez tanto sucesso.

Pois bem. Em 1806, no contexto das Guerras Napoleônicas, chegava ao fim, após mil anos, o Reich Romano-Germânico. Tratava-se de uma herança viva da Europa medieval: camponeses, artesãos, arraigados a uma fé inabalável. O nascimento da Alemanha moderna e vibrante viria com a adoção de leis modernas e de uma economia industrial. A emancipação dos judeus era um caminho natural – como o foi o fim da escravidão em muitas partes do mundo. Agora o Estado incentivava o empreendedorismo e a concorrência, sem distinções: todos poderiam correr atrás de seu sonho.

O tempo mostrou que ninguém aproveitaria melhor a oportunidade do que os judeus. Se os cristãos se mostraram meros camponeses ignorantes sem qualquer noção de livre iniciativa e de entendimento do funcionamento dos mercados, os judeus se saíram bem melhor.

Entre 1810 e 1870, os judeus deixaram o status de “povo inferior” e passaram a ser tratados como cidadãos de sucesso. Em 1866, a inauguração da nova Sinagoga de Berlim contou com a presença do chanceler Otto Von Bismarck.

O motor de todo esse progresso dos judeus foi a educação. Como bem testemunhou um antissemita chamado Adolf Stoecker: “Mesmo os judeus pobres sacrificam tudo o que têm para dar aos seus filhos uma boa educação”. O peso deles no ensino superior assombrava os alemães: em 1869, eram quase 15% dos alunos pré-universitários, quando os judeus representavam apenas 4% da população.

Em 1867, esses meros 4% representavam quase 30% dos pais que contratavam professores particulares para os filhos.

Os judeus eram agora jornalistas, empresários, banqueiros, advogados, engenheiros... A inveja era um sentimento, de fato, inevitável.

Em 1895, metade da força de trabalho judia era proprietária de seu negócio. Ou seja, o patrão judeu era um fantasma bastante presente. Às vésperas da I Guerra Mundial, os judeus recebiam em média 5 vezes mais do que o restante da população.

Embora os ataques antissemitas nunca tivesse desaparecido da sociedade alemã, mesmo após a emancipação dos judeus – o grande compositor Richard Wagner foi um famoso antissemita -, o tempo mostraria que o clima ficaria bem mais tenso. Muitos repetiam que os judeus estavam monopolizando a produção de cervejas para tornar o mundo alcoólatra.

Um passo em direção ao holocausto foi dado pelo inglês Francis Galton, primo de Charles Darwin. Ele defendia a idéia da seleção artificial das espécies como caminho para o aprimoramento do homem: a eugenia nascia como uma sentença de morte para quem não tivesse a sorte de nascer com as características consideradas desejáveis.

Teorias científicas (altamente questionadas na época, diga-se) em mãos e uma sociedade relativamente permeável a idéias racistas à disposição, o passo seguinte foi dado em 1927, com a fundação do Instituto Kaiser Wilhelm de Antropolgia, Hereditariedadee e Eugenia. Seu diretor foi promovido a reitor da Universidade de Berlim por Hitler, após fixar “estudos” que comprovavam a depreciação da “raça” após “cruzamentos intergenéticos”.  

Tais “estudos” embasaram a legislação que impedia a miscigenação entre “arianos” e a população em geral. Chamavam isso de eugenia negativa. Em 1934, mais de 350 mil alemães foram esterilizados – homens e mulheres. Entre 1940 e 1941, mais de 70 mil foram assassinados por serem portadores de deficiências físicas ou mentais.

Em 1941, dois estatísticos calcularam em mais de 1,6 milhão os alemães que deveriam ser alienados da sociedade. Não deveriam pôr em risco a “pureza” dos arianos.

Os alemães a serem eliminados eram chamados de “bolcheviques biológicos”. Pessoas que praticassem sexo com alguém de outra etnia, mulheres que tivessem feito aborto, ninfomaníacas, viciados em drogas, alcoólatras e prostitutas era, chamados “traidores do Estado”. Na verdade, ser portador de lábios leporianos ou de pés tortos já era requisito para a esterilização.

Mas os alvos preferenciais foram mesmo os judeus. De acordo com o próprio Eugen Fischer: “O mundo pensa que estamos combatendo os judeus só para nos livrar de uma concorrência financeira e intelectual. Ao contrário, nossa luta é para salvar a raça que criou o espírito germânico e limpá-la dos elementos estrangeiros e racialmente discrepantes, que ameaçam desviar nosso desenvolvimento espiritual para outras direções.” Ou seja, o motivo científico suplantou os motivos religiosos e políticos de sempre. Mesmo um pobre, ignorante e antissemita alemão poderia agora emanar as “razões” científicas para se sentir “superior” a um judeu mais rico ou mais bem instruído do que ele.

O passo seguinte foi exigir o protecionismo econômico contra a concorrência judia. Desde 1880 se multiplicavam associações com esse fito: proteger a maioria cristã. Quando o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães surgiu, toda essa demanda social se tornou programa de governo.

Em 1933, a Lei para Restauração do Serviço Civil Profissional tirou os judeus do serviço público. Em 1937, outra lei permitia a expropriação de bens e propriedades de judeus, a título de indenização pelos danos que os judeus causaram ao Império Alemão. Em 1938, os judeus foram condenados coletivamente a indenizar os alemães em 1 bilhão de marcos.

Quando os judeus passaram a ser expulsos de suas casas e enviados a imóveis coletivos em bairros periféricos murados (guetos), os imóveis eram oferecidos no mercado a preços cada dia mais decrescentes (devido à oferta crescente): não foi difícil colher a simpatia de quem não corria o mesmo risco. Afinal, casas de luxo já mobiliadas a um preço atrativo...

O mesmo fenômeno ocorria com os empregos: demissão em massa de professores universitários judeus levava à contratação de “arianos” para o lugar – e ainda deixava o governo feliz. Ou seja, alemães bastante incompetentes passaram a ser agraciados com bons empregos.

Comerciantes não-judeus comemoravam quando seu concorrente judeu era expulso da atividade. Empresários ganhavam a carteira de clientes do antigo concorrente. Em 1935, dos 915 bancos alemães, 345 eram de judeus. Em 1939, eram todos propriedades de “arianos”.

Mas alguns capítulos dessa história se mostraram bem interessantes. Era comum que organizações (privadas ou públicas), após a ascensão nazista, expulsassem seus membros judeus e contratassem outros não-judeus para o lugar. Politicamente essa atitude granjeava simpatia do partido Nazista. Mas o clube de futebol Bayern de Munique protagonizou uma história bem diferente.

O clube ascendeu muito na década de 1920 e, em 1932, sagrou-se campeão alemão – com um técnico judeu. Em 1933, o ministro da educação deu uma data limite, após a qual eram proibidos judeus em clubes de futebol. Todos os clubes se anteciparam à medida – exceto o Bayern de Munique, que manteve seus judeus até que o prazo expirasse.

O presidente do clube, o judeu Kurt Landauer, não foi demitido e teve de ser preso por resistência ao regime. Foi depois enviado ao campo de concentração de Dachau. Liberado em 1939 por ter servido ao exército alemão, fugiu para a Suíça, de onde continuou a comandar o clube. O Bayern se recusou até mesmo a tirar o nome do presidente das publicações do clube.

Em 1943, em meio a uma série de amistosos na Suíça, o presidente foi assistir a uma das partidas das arquibancadas. Os jogadores do Bayern então se aproximaram das grades e aplaudiram seu presidente. O episódio renderia ameaças da Gestapo.

Em represália, o regime passou a dar todo o apoio possível ao concorrente do Bayern, o 1860 Munchen. Já o time de Landauer virou o “time judeu”. Seu status afastou até mesmo investidores. Na lona, teve de se desfazer de todos os atletas. O título de 32 esperaria quase 3 décadas para ser repetido.

Após a guerra Landauer voltou à presidência e é ainda o dirigente a mais tempo na presidência do clube. Morreu em 1961, pouco antes de voltar a ser consagrado campeão alemão de novo.

Quanto aos judeus vítimas daqueles anos terríveis, os milhares de sobreviventes ficaram residindo em Campos de Deslocados (os antigos campos de concentração) até que se pudesse saber o que fazer com aquelas pessoas destituídas de tudo o que tinham na vida. Na Polônia ocorreram massacres de judeus que tentavam recuperar suas casas à força.

Antes da II Guerra, havia mais de 500 mil judeus na Alemanha. Ao fim, calculava-se em mais de 250 mil os judeus “em trânsito”, isto é, saídos dos campos de concentração, de esconderijos.

Até 1952 ainda existiam Campos de Deslocados em funcionamento.  


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Inveja: Como ela mudou a história do mundo” 


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