Desde a derrubada do Império Romano até o final do Sacro
Império Romano-Germânico, os judeus na região da Alemanha não souberam o que
era igualdade de direitos. Tratados como “povo inferior”, estavam condenados a
receber salários inferiores, não poderiam adquirir casas de alto padrão, ou jóias,
ou roupas caras... Ser patrão de algum alemão? Nem pensar!
Até então, os judeus eram odiados em razão do mito bíblico de
que foram eles os culpados pela morte de Jesus Cristo. No Novo Testamento, no Evangelho
de João, os judeus são chamados de “filhos do Diabo”. Mateus escreveu o trecho
do julgamento de Cristo em que Pilatos pergunta quem deveria libertar naquele
domingo de Páscoa, ao que os judeus responderam em uníssono: Barrabás! E o
criminoso foi liberto, em lugar do Salvador...
Quando, no século IV, Constantino adotou o cristianismo como
religião do Império, o cristianismo descolou de vez do judaísmo e o
antissemitismo atingir patamares superiores de virulência.
Ainda no século IV, o arcebispo de Constantinopla, João
Crisóstomo, um dos pais fundadores da Igreja, reforçou os motivos do ódio:
dizia que um sapateiro em Jerusalém, quando da procissão em que Cristo carregava
cruz, teria xingado e ironizado Jesus, ao que recebeu uma maldição como
resposta, segundo a qual estaria condenado a vagar pelo mundo, eternamente errante.
Crisóstomo sustentava ainda que as sinagogas eram casa do demônio. Crisóstomo
foi beatificado pela Igreja.
Mas nenhum antissemita superaria Martinho Lutero. Em sua
obra “Dos Judeus e seus Mentiras”, Lutero chega a dizer que os judeus estariam
cheios de fezes do diabo, e chafurdariam nessas fezes como porcos. Em outra
passagem, escreveu: “Se Moisés fosse vivo, seria o primeiro a incendiar as
escolas judaicas. Não só as escolas, suas casas também deveriam ser
destruídas...”. Acrescentou: “Os judeus deveriam ser reunidos sob o mesmo teto,
como numa estrebaria”.
Não à toa, Hitler considerava Lutero um dos três maiores
nomes da Alemanha, na história. O redator do jornal nazista também se defendeu
em Nuremberg, dizendo que nada do escrevera foi diferente do que Lutero dissera
no passado. E a exemplo de Lutero, esse mesmo redator escreveu obras infantis,
em que pretendia cultivar o ódio aos judeus desde a mais tenra idade.
Na Idade Média, foram considerados culpados pela Peste
Negra, frequentemente eram enviados às fogueiras da Inquisição, normalmente
eram desenhados com chifres e rabos, eram acusados de fazerem rituais em que
sacrificavam criancinhas, eram acusados de envenenar poços d`água.
Conspirações secretas também faziam parte do rol de maldades
debitadas aos judeus. Não à toa a fraude literária chamada Os Protocolos dos
Sábios de Sião – traduzido para o português pelo intelectual e antissemita
Gustavo Barroso - fez tanto sucesso.
Pois bem. Em 1806, no contexto das Guerras Napoleônicas, chegava
ao fim, após mil anos, o Reich Romano-Germânico. Tratava-se de uma herança viva
da Europa medieval: camponeses, artesãos, arraigados a uma fé inabalável. O
nascimento da Alemanha moderna e vibrante viria com a adoção de leis modernas e
de uma economia industrial. A emancipação dos judeus era um caminho natural –
como o foi o fim da escravidão em muitas partes do mundo. Agora o Estado
incentivava o empreendedorismo e a concorrência, sem distinções: todos poderiam
correr atrás de seu sonho.
O tempo mostrou que ninguém aproveitaria melhor a
oportunidade do que os judeus. Se os cristãos se mostraram meros camponeses
ignorantes sem qualquer noção de livre iniciativa e de entendimento do
funcionamento dos mercados, os judeus se saíram bem melhor.
Entre 1810 e 1870, os judeus deixaram o status de “povo
inferior” e passaram a ser tratados como cidadãos de sucesso. Em 1866, a
inauguração da nova Sinagoga de Berlim contou com a presença do chanceler Otto Von
Bismarck.
O motor de todo esse progresso dos judeus foi a educação.
Como bem testemunhou um antissemita chamado Adolf Stoecker: “Mesmo os judeus
pobres sacrificam tudo o que têm para dar aos seus filhos uma boa educação”. O
peso deles no ensino superior assombrava os alemães: em 1869, eram quase 15%
dos alunos pré-universitários, quando os judeus representavam apenas 4% da
população.
Em 1867, esses meros 4% representavam quase 30% dos pais que
contratavam professores particulares para os filhos.
Os judeus eram agora jornalistas, empresários, banqueiros,
advogados, engenheiros... A inveja era um sentimento, de fato, inevitável.
Em 1895, metade da força de trabalho judia era proprietária
de seu negócio. Ou seja, o patrão judeu era um fantasma bastante presente. Às vésperas
da I Guerra Mundial, os judeus recebiam em média 5 vezes mais do que o restante
da população.
Embora os ataques antissemitas nunca tivesse desaparecido da
sociedade alemã, mesmo após a emancipação dos judeus – o grande compositor
Richard Wagner foi um famoso antissemita -, o tempo mostraria que o clima
ficaria bem mais tenso. Muitos repetiam que os judeus estavam monopolizando a produção
de cervejas para tornar o mundo alcoólatra.
Um passo em direção ao holocausto foi dado pelo inglês Francis
Galton, primo de Charles Darwin. Ele defendia a idéia da seleção artificial das
espécies como caminho para o aprimoramento do homem: a eugenia nascia como uma
sentença de morte para quem não tivesse a sorte de nascer com as
características consideradas desejáveis.
Teorias científicas (altamente questionadas na época,
diga-se) em mãos e uma sociedade relativamente permeável a idéias racistas à
disposição, o passo seguinte foi dado em 1927, com a fundação do Instituto
Kaiser Wilhelm de Antropolgia, Hereditariedadee e Eugenia. Seu diretor foi
promovido a reitor da Universidade de Berlim por Hitler, após fixar “estudos”
que comprovavam a depreciação da “raça” após “cruzamentos intergenéticos”.
Tais “estudos” embasaram a legislação que impedia a
miscigenação entre “arianos” e a população em geral. Chamavam isso de eugenia
negativa. Em 1934, mais de 350 mil alemães foram esterilizados – homens e
mulheres. Entre 1940 e 1941, mais de 70 mil foram assassinados por serem
portadores de deficiências físicas ou mentais.
Em 1941, dois estatísticos calcularam em mais de 1,6 milhão
os alemães que deveriam ser alienados da sociedade. Não deveriam pôr em risco a
“pureza” dos arianos.
Os alemães a serem eliminados eram chamados de “bolcheviques
biológicos”. Pessoas que praticassem sexo com alguém de outra etnia, mulheres
que tivessem feito aborto, ninfomaníacas, viciados em drogas, alcoólatras e
prostitutas era, chamados “traidores do Estado”. Na verdade, ser portador de
lábios leporianos ou de pés tortos já era requisito para a esterilização.
Mas os alvos preferenciais foram mesmo os judeus. De acordo
com o próprio Eugen Fischer: “O mundo pensa que estamos combatendo os judeus só
para nos livrar de uma concorrência financeira e intelectual. Ao contrário,
nossa luta é para salvar a raça que criou o espírito germânico e limpá-la dos
elementos estrangeiros e racialmente discrepantes, que ameaçam desviar nosso
desenvolvimento espiritual para outras direções.” Ou seja, o motivo científico
suplantou os motivos religiosos e políticos de sempre. Mesmo um pobre,
ignorante e antissemita alemão poderia agora emanar as “razões” científicas
para se sentir “superior” a um judeu mais rico ou mais bem instruído do que
ele.
O passo seguinte foi exigir o protecionismo econômico contra
a concorrência judia. Desde 1880 se multiplicavam associações com esse fito:
proteger a maioria cristã. Quando o Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães surgiu, toda essa demanda social se tornou programa de
governo.
Em 1933, a Lei para Restauração do Serviço Civil
Profissional tirou os judeus do serviço público. Em 1937, outra lei permitia a
expropriação de bens e propriedades de judeus, a título de indenização pelos
danos que os judeus causaram ao Império Alemão. Em 1938, os judeus foram
condenados coletivamente a indenizar os alemães em 1 bilhão de marcos.
Quando os judeus
passaram a ser expulsos de suas casas e enviados a imóveis coletivos em bairros
periféricos murados (guetos), os imóveis eram oferecidos no mercado a preços
cada dia mais decrescentes (devido à oferta crescente): não foi difícil colher
a simpatia de quem não corria o mesmo risco. Afinal, casas de luxo já
mobiliadas a um preço atrativo...
O mesmo fenômeno ocorria com os empregos: demissão em massa
de professores universitários judeus levava à contratação de “arianos” para o
lugar – e ainda deixava o governo feliz. Ou seja, alemães bastante
incompetentes passaram a ser agraciados com bons empregos.
Comerciantes não-judeus comemoravam quando seu concorrente
judeu era expulso da atividade. Empresários ganhavam a carteira de clientes do
antigo concorrente. Em 1935, dos 915 bancos alemães, 345 eram de judeus. Em
1939, eram todos propriedades de “arianos”.
Mas alguns capítulos dessa história se mostraram bem
interessantes. Era comum que organizações (privadas ou públicas), após a
ascensão nazista, expulsassem seus membros judeus e contratassem outros não-judeus
para o lugar. Politicamente essa atitude granjeava simpatia do partido Nazista.
Mas o clube de futebol Bayern de Munique protagonizou uma história bem
diferente.
O clube ascendeu muito na década de 1920 e, em 1932,
sagrou-se campeão alemão – com um técnico judeu. Em 1933, o ministro da
educação deu uma data limite, após a qual eram proibidos judeus em clubes de futebol.
Todos os clubes se anteciparam à medida – exceto o Bayern de Munique, que
manteve seus judeus até que o prazo expirasse.
O presidente do clube, o judeu Kurt Landauer, não foi
demitido e teve de ser preso por resistência ao regime. Foi depois enviado ao
campo de concentração de Dachau. Liberado em 1939 por ter servido ao exército
alemão, fugiu para a Suíça, de onde continuou a comandar o clube. O Bayern se
recusou até mesmo a tirar o nome do presidente das publicações do clube.
Em 1943, em meio a uma série de amistosos na Suíça, o presidente
foi assistir a uma das partidas das arquibancadas. Os jogadores do Bayern então
se aproximaram das grades e aplaudiram seu presidente. O episódio renderia
ameaças da Gestapo.
Em represália, o regime passou a dar todo o apoio possível
ao concorrente do Bayern, o 1860 Munchen. Já o time de Landauer virou o “time judeu”.
Seu status afastou até mesmo investidores. Na lona, teve de se desfazer de
todos os atletas. O título de 32 esperaria quase 3 décadas para ser repetido.
Após a guerra Landauer voltou à presidência e é ainda o
dirigente a mais tempo na presidência do clube. Morreu em 1961, pouco antes de
voltar a ser consagrado campeão alemão de novo.
Quanto aos judeus vítimas daqueles anos terríveis, os milhares
de sobreviventes ficaram residindo em Campos de Deslocados (os antigos campos
de concentração) até que se pudesse saber o que fazer com aquelas pessoas
destituídas de tudo o que tinham na vida. Na Polônia ocorreram massacres de
judeus que tentavam recuperar suas casas à força.
Antes da II Guerra, havia mais de 500 mil judeus na
Alemanha. Ao fim, calculava-se em mais de 250 mil os judeus “em trânsito”, isto
é, saídos dos campos de concentração, de esconderijos.
Até 1952 ainda existiam Campos de Deslocados em
funcionamento.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Inveja: Como ela mudou a história do
mundo”
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