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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

A RESSACA DO RECATO NO ENTREGUERRAS


Após a I Grande Guerra, os EUA se fixaram na posição de mais rico do mundo, posição que ocupava desde 1890. Desde 1913 as linhas de montagem da Ford funcionavam sem parar. As classes operárias agora consumiam eletrodomésticos, geladeiras, rádios, máquinas de lavar, aspiradores de pó, telefones, torradeiras etc.  

Os sobreviventes do conflito, que o viveram ainda no início da vida adulta, eram chamados de “geração perdida”: vivenciar a morte de tantos milhões, viver sem a certeza de que haveria de fato um futuro para viver, os tornou pessimistas e desorientados, sem os referenciais tão claros que a geração anterior teve.

O ambiente político era marcado por agitações sociais, desejo de vingança e angústia devidfo às incertezas políticas. Também foram anos marcados por medidas autoritárias, como a Lei Seca dos EUA; pela descrença no capitalismo criador de conflitos, opondo-se ao medo trazido pela sombra do comunismo; pela violência das gangs de mafiosos de Chicago e de NY; pelo ódio ao nacionalismo e ao apego desmedido à família.

Tudo o que era identificado com as gerações anteriores era agora velho, anacrônico. E tudo o que era identificado como velho representava a desgraça, a destruição, o mundo em ruínas que os “velhos” entregaram aos jovens. Os jovens então tomaram uma decisão: jogar aquele trambolho no lixo! A autoridade da Igreja se esvaziou; o sotaque britânico “posh” foi rejeitado socialmente; métodos anticoncepcionais se popularizaram.

A guerra havia aberto o mercado de trabalho às mulheres. Deixando o ambiente doméstico, ocuparam postos em fábricas e escritórios. A quantidade de mortos durante o conflito levou à falta de mão de obra, criando a demanda por trabalhadoras. Ao fim do conflito, era impossível retroceder totalmente o estado das coisas.  

O voto feminino não tardou. Na década de 1920 norte-americanas, britânicas, australianas, canadenses, neozelandesas, austríacas, polonesas e russas podiam votar. A queda drástica da mortalidade infantil e a redução do número de filhos por casal (por causa dos métodos contraceptivos mais eficazes, que evitavam agora a gravidez indesejada) auxiliaram sobremaneira a emancipação feminina.

A Revolução Russa, uma revolução socialista, trazia consigo o ateísmo a si inerente. Esse fato ajudou a dilapidar ainda mais as bases tradicionais do mundo de então.

Quanto aos EUA... bem, eles eram os donos da banca e queriam esbanjar muito. A Era do Jazz que se iniciava foi marcado por jovens imersos em bebedeiras, pelos automóveis e pelo rádio. Nos nightclubs, desfilavam jovens fumando cigarros e correndo atrás de jovens de cabelos curtos e encaracolados, dançando e mostrando as pernas – o som enlouquecido produzido por músicos negros harmonizava muito bem com aquela atmosfera de perda do controle, de alegria transbordando.

Como costuma ocorrer nesses momentos de libertação, grupos que pensavam de maneira oposta buscaram conter o avanço liberal. O principal deles atendia por três letras: era a maldita KKK. A Ku Klux Klan foi criada em 1915. Por volta de 1920 contava entre 4 e 5 milhões de filiados: homens, brancos, protestantes e anglo-saxões (WASP), geralmente moradores do Meio-Oeste e do Sul do país, nascidos em ambientes rurais. Buscavam fazer “justiça com as próprias mãos” contra tudo o que ameaçasse a “América verdadeira”: criminosos, estupradores, traficantes de drogas, contrabandistas de bebidas alcoólicas (o consumo de álcool foi proibido), proxenetas, homossexuais, todos eles eram alvo em potencial da KKK. A aprovação da Lei Seca foi uma das vitórias desse grupo.

Já as grandes cidades eram quase imunes aos apelos mais conservadores da KKK: bebia-se sem tomar conhecimento da Lei Seca, gângsteres eram pouco incomodados vendendo álcool, ou mantendo bordéis e cassinos.

Intelectuais e grandes escritores como Scott Fitzgerald, Hemingway e Ezra Pound descreveram e criticaram a fundo a cultura yankee nesse período. O fato de todos eles terem se mudado para Paris também revela muito do que pensavam daquela sociedade.

Aliás, Paris vivia dias bastante intensos, também. Ainda era a cidade mais culta e bela do mundo e, além disso, os riscos de bombardeios acabaram. A vida noturna e intensa acendeu as luzes e saiu às ruas. Garotas da “Provence” deixavam suas cidades para trabalhar nos bordeis parisienses, que viviam uma explosão semelhante à da Belle Époque. Ou seja, Paris agora reunia belas prostitutas, álcool sem restrição e liberdade intelectual absoluta. A ponto de o pós-guerra ter sido marcado pelo surgimento de expressões artísticas novas, como o dadaísmo. Músicos como Sergei Prokofiev deixaram os EUA e se mudaram para Paris.

Outro símbolo sintetizador do entreguerras foi o cinema. Diversos estúdios se estabeleceram em Hollywood na década de 1920 e a produção cinematográfica européia, indiscutivelmente a maior do mundo até 1914, era agora superada pela produção hollywoodiana.

Com a popularização das películas, agora todo bordel de luxo deveria contar com um projetor de filmes pornográficos. Surgiram até grupos de pessoas nos EUA que alugavam rolos de filmes pornô para exibir em festinhas. Normalmente o tema era algo relativo a voyeurismo e traziam cenas de lesbiansimo, masturbação feminina e ménage à trois.

Mas nenhuma cidade foi mais afetada pelos novos tempos do que Berlim. O fim da I Guerra Mundial apresentava uma Berlim tomada por greves, manifestações marchas lideradas por grupos comunistas, como a Liga Espartaquista – cujos líderes, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, foram assassinados poucos dias antes da eleição para a Asembléia Constituinte que inauguraria uma nova Alemanha, sucessora do Império que demolira, que ficou conhecida como República de Weimar.

Os primeiros anos dessa República foram um caldo prestes a entornar: crises e ressentimentos mil tomaram conta dos alemães. Mas também houve muita produção intelectual e uma revolução sexual parecia tomar forma. O ambiente de liberdade da cidade, nascido após a derrubada das leis de censura do tempo dos Kaiseres, fez com que Berlim rapidamente passasse a competir com Paris em intelectualidade e boemia. As fronteiras abertas da nova Alemanha fizeram para lá afluírem artistas de vanguarda franceses, russos e americanos.

A economia que, por sua vez, encontrava-se no limbo, foi anabolizada pelos dólares norte-americanos: após anos de crise, em 1924 um plano econômico conseguiu o parcelamento das dívidas referentes a reparações de guerra, além de ter injetado bilhões na economia, fruto de empréstimo concedido por Washington. A hiperinflação foi-se embora e o país voltou a crescer. Em 1928 o padrão de vida alemão era igual àquele que tinham antes do conflito mundial. O Partido Social Democrata conseguia avanços na legislação social inéditos.

Se o país pouco a pouco se tornava um lugar bom para os mais idosos e pais de família, os jovens pouco tinham do que reclamar: a noite berlinense fervilhava de prostitutas, cafés viviam lotados, bordeis para homossexuais se multiplicavam e os transgêneros adquiriam uma visibilidade difícil de se conceber pouco antes. Completando o cenário: cabarés que apresentavam comediantes contando sátiras sociais e políticas, dançarinas e cantoras estavam por toda parte, atrizes se vestiam de homens, atores se vestiam de mulheres.

Em 1919, o médico Magnus Hirschfeld deu início ao que seria um dos nomes mais emblemáticos do entreguerras na Alemanha: o Instituto de Pesquisa da Sexualidade. Fundado em defesa dos homossexuais, esse instituto contribuiu para a emancipação feminina, para o planejamento familiar, promovia educação sexual e a popularização de métodos contraceptivos, tratava de doenças sexualmente transmissíveis, lutava contra leis homófobas e antiaborto e muito mais. Hirschfeld não considerava o homossexualismo uma doença, portanto não buscava a cura deles, mas tentava fazê-los viver naquela sociedade desfavorável a eles.

O Instituto possuía um Museu, que ficou bem famoso: tinha gravuras eróticas, retratos de travestis famosos, tinha uma coleção de cintos de castidade, ferramentas de masoquistas, pênis artificiais e muito mais.

O cinema alemão foi, naquelas décadas, o mais prolífico da Europa. E essas produções fervilhantes deram à luz uma diva: Marlene Dietrich. Saída dos cabarés mais famosos de Berlim, encarnou a femme fatale como poucas. Logo foi levada à Hollywood, sedenta por talentos. Em seu primeiro filme em solo yankee, chamado Marrocos, de 1930, encantaria como uma cantora de cabaré que se vestia de homem e se notabilizou com uma cena de beijo lésbico.

Essa era a Berlim que o fantasma do nazismo espreitava...  


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”

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