Embora goze há muito de uma reputação celeste, Tom Jobim
sofreu agruras pelas mãos de críticos habilidosos em baixar o sarrafo em
qualquer tupiniquim que se atreva a fazer algo elogiável.
Qualquer coisa que o maestro fizesse era motivo para
defenestrá-lo: quando Frank Sinatra, um dos maiores cantores do mundo,
reverenciou-o gravando dois discos repletos de composições suas, Tom foi logo
taxado de “americanizado” – quando foi o “americano” que se abrasileirou, de
fato; se diziam que fundara a bossa nova, logo diziam que era uma mera
importação do jazz. Um crítico golpeou mais forte: “Ele é um compositor da
Broadway nascido no Brasil”.
Quando a Coca Cola comprou os direitos de Águas de Março
para passar em seus comerciais, Tom passou a ser o “vendido”. Ao protagonizar
um comercial da Brahma, ao lado do fantasma de Vinicius de Moraes, ao som de “Eu
sei que vou te amar”... desabafou: O Brasil não é para principiantes”.
Depois, de cabeça mais fria, diria o Tom em tom mais ameno: “Viver
no exterior é bom, mas é uma merda; viver no Brasil é uma merda, mas é bom”.
Ele sabia bem do que falava, após morar muitos anos em Nova York.
Evidentemente invejar o sucesso alheio é uma característica
humana, não brasileira, mas salta os olhos a intensidade desse fenômeno no
Brasil, especialmente em se tratado de invejados tupiniquins.
Quando o Rio de Janeiro foi escolhido sede dos Jogos
Olímpicos de 2016, a atriz americana Wanda Sykes, numa entrevista no programa de
Jay Leno, perguntou se prostituição era agora uma modalidade olímpica.
Silvester Stallone justificou assim a escolha a escolha do Brasil como locação
do filme Os Mercenários: “Lá você pode atirar nas pessoas, explodir coisas e
elas dizem ‘obrigado’”.
Seria ótimo supor que essa imagem depreciada do Brasil
valesse apenas na cabeça dos “gringos”. Mas a verdade é que o conceito de
Brasil na cabeça dos brasileiros não é nem um pouco positivo. Quando
perguntados sobre qual palavra associam imediatamente à “pátria amada
idolatrada”, 50% responderam “desonesto”, numa pesquisa da BrandAnalytics em
2014. Para alcançar o sucesso, apenas 13% dizem achar que podem contar com
algum apoio do Estado. E se confrontados com o questionamento sobre qual seria
o país ideal para viver, meros 18% responderam Brasil.
Este último questionamento, quando feito a norte-americanos,
levava 52% dos entrevistados a responderem que era o seu país.
Esses resultados desanimadores são recentes, fruto dos
últimos governos? Não. Nelson Rodrigues já inventava, lá em 1958, uma expressão
para representar esse sentimento de inferioridade em relação às coisas pátrias:
“complexo de vira-latas”. E explicou: “Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu
a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do
resto do mundo. Isto em todos os setores”.
Mas o sentimento opera dos dois lados: desvaloriza o que é
brasileiro e supervaloriza o que é estrangeiro. Por exemplo, um holandês
pedalando até o trabalho é elogiável, até mesmo lúdico; já a promessa de cenas
como essa no Brasil causa furor e até revolta.
Uma pesquisa, há poucos anos, mostrou que mais da metade dos
turistas que apinhavam as ruas e shoppings de Miami era de brasileiros: 424
mil, contra 345 mil canadenses comendo poeira.
Mas quando se pesquisou quantos escolhiam aquela cidade para
adquirir uma imóvel, o lugar de destaque era mantido. Os brasileiros eram os
que mais pesquisavam imóveis no site da associação de imobiliárias local e os
imóveis pesquisados eram, em média, mais caros do que os pesquisados por
canadenses.
Seria esse complexo de vira-latas o responsável por
ignorarmos tão completamente os brasileiros do “andar de baixo”? Por exemplo,
ninguém parece invejar o programa social do governo da Austrália voltado à
população de rua. Eles receberam apartamentos mobiliados, na cidade Brisbane,
de um edifício residencial construído para esse fim. São 146 apartamentos de 30
metros quadrados, incluindo uma varanda de 3 metros quadrados. Já vêm com TV
LCD, fogão, forno micro-ondas, geladeira etc. O edifício conta com elevador
inteligente, salão de jogos, churrasqueira no terraço. Tudo de graça, porém
deve-se lembrar que esses moradores de rua recebem um subsídio de 400 dólares
australianos por mês do governo.
Outro setor do país historicamente surrado pela crítica é a
culinária. Embora nascidos num país continental, de natureza rica e com costumes
diversos conforme a região, o que vem de fora costuma nos causar mais fascínio.
Os hábitos alimentares denunciam: comemos
mais sushi do que churrasco; os rankings de melhores restaurantes de São Paulo
costumam ser preenchidos apenas por representantes da cozinha italiana; o
wasabi tem amis espaço nos pratos do que quiabo.
Embora chefs como Alex Atala estejam pondo o nome da
culinária brasileira na órbita dos astros da boa cozinha, relegar a meia dúzia
de representantes o que há de melhor na comida mineira, baiana, goiana, carioca, paraense... Parece insignificante demais.
É uma realidade que contrasta com o passado distante: até o
segundo século da descoberta, os portugueses eram fascinados pelas possibilidades
gastronômicas do país: os gêneros alimentares abundantes, a terra fecunda, o
clima ameno. Mas já no século XIX o que era local era considerado inferior ao
que vinha da Europa.
Alex Atala tenta explicar: “Como país colonizado, nós sempre
ficamos mais de olho em outras culturas. Nunca olhamos a nossa própria com
orgulho. E eu às vezes fico louco com isso porque temos no Brasil tanto a
cozinha refinada quanto a comida de rua. As pessoas querem colocar a alta
gastronomia em uma caixa de trufas, foie grãs e pratos pequenos. E essa é uma idéia
que envelheceu.” Ele criou o conceito de cozinha que mistura ingredientes como tucupi
e jambu, baru, tapioca nordestina e canjiquinha mineira.
Logo que surgiu para a gastronomia, Alex Atala disse: “Falta
alguém que tenha orgulho da nossa culinária como Villa-Lobos tinha orgulho da
nossa música.”
Deu certo. Em 2014, a revista especializada Restaurant o pôs
à frente do melhor restaurante francês no seu ranking. A brasileira Helena
Rizzo, melhor chef mulher do mundo pela mesma publicação, segue esse mesmo
conceito em seu Maní.
Aqui desvenda-se um fenômeno interessantíssimo: nossa baixa
auto-estima para coisas locais nos faz invejosos do que vem de fora; quando o
que vem de fora nos admira, passamos a admirar o que é nosso, a despeito da
baixa auto-estima. Enfim, a admiração recente de estrangeiros por nossa cozinha
nos fez mais orgulhosos dela. Invejinha-bumerangue básica.
Outro setor surrado à exaustão é o cinema nacional. Alguns comentários
de “gringos”, inclusive, costumam causar espécie. Por exemplo, o premiadíssimo
diretor de cinema Martin Scorsese apresentou a seus atores, antes das filmagens
e “Gangues de NY” e “Os Infiltrados”, o filme “O Dração da Maldade contra o
Santo Guerreiro”, de Glauber Rocha. Dizia o nova-iorquino que aquela obra o
impressionara enquanto espectador.
O crítico de cinema irlandês Mark Cousin assim fala de “Deus
e o Diabo na Terra do Sol”: “fotografado como um dos filmes de John Ford e
editado a um modo eiseinsteniano” – fazendo referência a Sergei Eisenstein,
considerado um revolucionário das telas no seu tempo.
Um diretor desse calibre deve ter sido bastante elogiado e
louvado em casa, certo? Nada mais falso. Escrevendo sobre “Terra em Transe”, o
crítico de cinema do Correio da Manhã, Antonio Moniz Vianna acusou a obra de
ser uma imitação desbotada de Godard e de Fellini, disse que sua polêmica era
inútil, que Glauber abusava das metáforas e acusou o quadro que pintara da política
brasileira de obscuro e indecifrável.
Galuber passou boa parte de sua vida na Europa.
Anselmo Duarte, outro diretor de cinema, premiado com a
Palma de Ouro em Cannes em 1962 por “O Pagador de Promessas”, quando desbancou
obras clássicas de Michelangelo Antonioni e Luis Bruñuel, assim comentou sobre
as críticas mordazes de que era alvo: “Quem criticava meus filmes eram alguns
moleques do Rio de Janeiro, que invejavam os prêmios conquistados por mim...”
Tropa de Elite, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim
em 2008, foi aqui acusado de fascista por mostrar os conflitos entre polícia de
bandidos nas favelas cariocas sob o ponto de vista da polícia, crítica essa que
não de repete nos filmes policiais de Hollywood.
Ainda no cinema,
poucas coisas deixam mais patente o sentimento de vira-latas do que o desejo
incontido de ver um filme brasileiro sendo premiado com o Oscar, apesar dos
inúmeros prêmios recebidos até hoje, como se aquele prêmio fosse fundamental
para ratificar a qualidade da obra.
A expressão “complexo de vira-latas”, como vimos, nasceu a
partir do futebol e é nesse setor que se mostra mais prolífica. Quando a
seleção ia para a Suécia, disputar a Copa de 1958, e quando ainda não éramos o
país do futebol, poucos acreditavam no esquete canarinho.
Mas um jornalista destoava: Nelson Rodrigues. Consagrado por
seus textos empolgados, apaixonados e radicias, ele não poderia compactuar com
aquele sentimento desesperançosos e cabisbaixo do torcedor brasileiro. Nelson
era tupiniquim: “A Europa é uma burrice aparelhada de museus!”, esbravejava no
Jornal dos Sports.
Nelson identificava o momento em que o brasileiro começou a
se sentir um cão abandonado: a derrota vergonhosa na final da Copa de 1950, a
maior até o trágico embate contra a Alemanha na Copa de 2014, também no Brasil.
Sobre aquela derrota, Nelson escreveu: “Obdulio nos tratou a
pontapés, como se vira-latas fôssemos”. Continuou: “O problema do escrete não é
mais de futebol, nemd e técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de
fé em si mesmo.” Quanta falta fazem jornalistas como esse...
No curso para a Copa de 1958, Nelson deparou com um menino
negro, de apenas 17 anos, que humilhou o bom time do América-RJ numa partida
contra o Santos, quando fez 4 dos 5 gols de seu time. Nelson elegeu o menino o “personagem
da semana” em sua coluna. E assim discorreu sobre o craque emergente: “O que nós
chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os
demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei da cabeça aos
pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça
um plebeu ignaro e piolhento.” De novo: quanta falta fazem jornalistas como
esse...
Examinando os motivos do sentimento nacional de
inferioridade, Nelson foi mais uma vez incisivo em suas críticas: “Por que
perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time
entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o
peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por
si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele,
ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão
diante de nós.”
Pois bem, após a segunda partida da Copa de 1958, tendo
conquistado um suado empate contra a Inglaterra, os jogadores se reuniram com o
técnico Vicente Feola e pediram que ele escalasse dois jogadores do banco de
reservas: Garrincha e Pelé. O jogo seguinte era contra a intimidante seleção da
URSS, que se orgulhava de praticar um futebol científico, de jogadas precisas e
com jogadores disciplinadíssimos.
Na primeira vez que pegou a bola em campo, Garrincha saiu em
disparada, driblou o time soviético inteiro e carimbou a trave dos adversários
com uma bomba disparada com os pés. Houve quem temesse pela raiva que esse
desaforo poderia causar nos poderosos adversários. Mas a história seria outra:
2 X 0 e essa seria apenas a primeira da série invicta da dupla: a seleção
nacional nunca perderia se ambos os jogadores estivessem em campo (foram 36
vitórias e 4 empates).
Na semifinal contra a França, equipe do artilheiro da
competição Just Fontaine, Pelé marcou 3 dos 5 gols da vitória de 5 X 2. O
placar da final contra a Suécia foi o mesmo: 5 X 2 (sendo 2 de Pelé) e o Brasil
seria a única seleção de futebol a vencer fora do seu continente – fato que só
seria superado por Espanha e Alemanha nas duas últimas edições.
Pelé e Cia chutaram para escanteio o complexo que contaminou
os brasileiros. Em 1962, apesar do Rei machucado e fora de campo, Garrincha
tomou o comando da embarcação e manteve o sentimento nacional em alta, com mais
uma Taça.
Mas então veio 1966, a seleção brasileira saiu do torneio
muito cedo, a Inglaterra venceu com um futebol horrível e com árbitro
comprado... E o vira-latismo voltou à cena. De novo, não éramos mais bons em
nada! A seleção brasileira representava a derrota humilhante e a Copa de 1970
deixaria esse fracasso ainda mais patente.
Mas o time dos otimistas apresentaria mais um personagem
marcante e inesquecível: o jornalista gaúcho João Saldanha. Técnico da máquina
de fazer gols do Botafogo de Garrincha e Didi, o “João Sem Medo”, assim apelidado
por Nelson Rodrigues, era conhecido por andar armado, falar o que vinha à
cabeça e se enfurecia se lhe pedissem para copiar o futebol europeu. Convidado
para comandar a seleção, acreditava desde o início que poderia montar um time
invencível. Seu combinado ficou conhecido como “as feras do Saldanha”.
Mas Saldanha teria que deixar algumas coisas mais claras
para seus jogadores. Nas eliminatórias, no segundo jogo, contra a Venezuela, a
seleção brasileira relaxou em campo, jogou um primeiro tempo morno e foram para
o vestiário exibindo um vergonhoso 0 X 0. Saldanha não gostou nada daquilo.
Debaixo de chuva forte, ao chegarem às portas do vestiário, os jogadores
depararam com um Saldanha sério, segurando a chave e terminando de trancar a
porta. Disse apenas que se era para jogar aquele futebol terrível não
precisavfam trocar o uniforme. Mandou que voltasse a campo e esperassem lá o
reinicio da partida – Pelé, Carlos Alberto, Tostão, Gerson... Todos eles
sentados no gramado debaixo de chuva.
Pois bem, parece que funcionou. Fim de jogo, 5 X 0 para o
Brasil. Nas eliminatórios inteiras seriam 23 gols feitos e apenas 2 sofridos. Tostão
fez 10 desses gols.
Saldanha assim responderia quando perguntado se era otimista
sobre o Brasil: “Claro, se eu não fosse já tinha me naturalizado dinamarquês”.
Sua esposa era dinamquesa.
Mesmo vitorioso, Saldanha foi demitido e substituído por
Zagallo. Por quê? Até hoje o episódio é mal explicado: uns dizem que ele se
recusou a convocar Dadá Maravilha a pedido do ditador da época, Médici; outros
dizem que ele era comunista e diretor do Partido Comunista nos piores anos de
repressão da Ditadura. Nunca deixariam um país inteiro grato a um comunista.
Quem será o próximo a jogar para escanteio o nosso vira-latismo
intrínseco?
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Inveja: Como ela mudou a história do
mundo”