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sexta-feira, 29 de setembro de 2017

INQUISIÇÃO NO BRASIL: A CHEGADA DOS FISCAIS DE C*


Apesar de toda a ingerência jesuíta em assuntos de sexualidade – especialmente se relacionadas ao comportamento dos índios -, não se chegava aos extremos sádicos da Inquisição espanhola, que prezava pelas punições à base de tortura com requintes de crueldade.  

Contudo, entre 1580 e 1640, as crises abertas pela sucessão ao trono português terminaram por levar à União Ibérica – de fato, Portugal estava submetido à Coroa espanhola. Nesse período o cristianismo vivia a Contrarreforma, período em que se acentuaram os dogmas da religião, como forme de dar uma resposta ao avanço do protestantismo na Europa. E ficava a cargo da Inquisição garantir que o rebanho de Deus estava a observar tais preceitos religiosos. Nessa toada investigavam a todos em busca de fornicadores, feiticeiros, bígamos, sodomitas, adúlteros etc. Nenhum aspecto da vida provada estava a salvo da sanha moralista dos inquisidores.

A colônia brasileira recebeu três visitas da Inquisição: entre 1591 e 1595 estiveram nos centros açucareiros (Bahia, Pernambuco principalmente); em 1618 estiveram na Bahia de novo; entre 1763 e 1769 visitaram o Grão Pará e o Maranhão.

O Brasil recebera muitos degredados, em geral judeus convertidos, portanto denominados cristãos-novos, porém flagrados cometendo pecados. Punidos, buscaram o distante Brasil para fugir das perseguições e da discriminação. Pois bem, a Inquisição dedicava especial atenção a esses “brasileiros”.

Um método usado pela Inquisição era o incentivo à delação: motivavam sentimentos de vingança ou pelo medo inculcado pelos inquisidores, muitas pessoas denunciavam conhecidos, familiares, amigos, concorrentes etc. Por exemplo, um comerciante incomodado por um concorrente chegado do reino, denunciava-o por judaísmo.

Mas nos autos da Inquisição um pecado se destacava sobremaneira: a sodomia. O comportamento homossexual representava 35 das 82 denúncias coletadas pela Inquisição na Bahia em 1591 – foram 433 denúncias no total, sendo 82 relacionadas a sexo, 35 por sodomia, 21 por bigamia, 12 por fornicação, seis eram sacrilégios sexuais, 4 por adultério e concubinato, 2 por solicitação (crime sexual praticado apenas por padres) e 2 por negação da sacralidade da castidade.

A sodomia era um pecado classificado por expressões como “pecado indigno de nome”, pecado provocador de terremotos, de tempestades, de fome, de pestes, tão vil que parecia feio até para o Diabo... mas era certamente um dos mais praticados.

Entre 1591 e 1595, foram acusados de homossexualidade 101 homens e 29 mulheres. Figuravam entre os acusados à Inquisição senhores de engenho, escravos forros e escravos.
Um dos acusados foi Astrúbal Antônio de Aguiar, de 21 anos. Assim o descreveu o Santo Ofício (nome mais atualizado da Inquisição):

“Sendo ele de idade de treze ou catorze anos (na época) e sendo seu irmão mais moço de idade de doze ou treze anos, dormiam ambos juntamente em uma cama. Um mameluco forro criado em casa, por nome Marcos, que então seria de idade de dezessete ou dezoito anos, se ia de noite da sua rede em que dormia, às vezes por si mesmo, às vezes chamado por eles, deitar-se com eles na sua cama, o qual se deitava entre eles irmãos, e chegaram a acontecer-lhes que ele Marcos e ele confessante pecaram o pecado nefando deitando-se ele confessante de bruços e sobre ele se deitava o dito Marcos, metendo seu membro desonesto pelo vaso traseiro dele confessante, e cumprindo nele por detrás como homem com mulher por diante, consumando e efetuando o pecado de sodomia”.    

O Brasil não tinha uma urbanização que permitisse a criação de nichos de homossexuais, algo que já ocorria na Europa. A sodomia era praticada no mato, na senzala, na casa-grande. Mas em Pernambuco surgiu a oficina de Lessa, local onde entravam e de onde saíam jovens de idades diversas, a troco de pão, vinho e presentes. Tratava-se de uma confraria de homossexuais: cerca de 31 homossexuais vivendo quase em família, praticando sodomias reciprocamente.

O português Salvador Romeiro se casou com uma mulata. Mas passou a ser reconhecido pelo comportamento homossexual, foi denunciado pela sogra e condenado às galés (pessoas que remavam navios). Cumprida a pena, veio ao Brasil, onde foi condenado por sodomia com seu criado de 17 anos. Condenado de novo, voltou a Portugal e se casou com uma branca. Dois anos depois, apaixonou-se por um rapaz de 17 anos. Largou a esposa e voltou ao Brasil, agora com o rapaz, que apresentava como sobrinho. Foi novamente acusado de sodomia e, agora, também por bigamia.

Os tão propalados abusos sexuais praticados pelos senhores contra suas escravas também eram comuns contra seus escravos. Felipe Tomás de Miranda era proprietário de 30 escravos e bastante afamado por abusar deles. Após matar um criado que ameaçava denunciá-lo à Inquisição teve de fugir de Pernambuco, por volta de 1600. Reestabaleceu-se na Bahia, onde voltou a praticar o pecado nefasto com seus novos escravos.

Pero Garcia, açoriano e dono de 4 engenhos cometeu sodomia com o mulato forro João Fernandes, de 12 anos. A sodomia era prática tão comum em sua residência que suas escravas chamavam os mulatos sodomitas de seus senhores.

O comportamento de alguns escravos transparecia a cultura da sua região de origem, na África. Francisco Manicongo, escravo de um sapateiro baiano no século XVI, viera de uma região do Congo onde o travestismo masculino era muito comum. Foi denunciado duas vezes por “usar o ofício de fêmea” nas relações sexuais. Recusava-se a usar roupas de homem, que seu senhor lhe dava. O escravo Antônio, originário de Benin, vestia-se de “negra Vitória” e se prostituía em Salvador amarrando o pênis com uma fita por entre as pernas.

O sexo anal também era proibido pelas regras da Igreja – pois não gerava filho, portanto deveria era pecado. A pernambucana Ana Seixas confessou, em 1594, que durante seus 14 anos de casada, por duas vezes usou seu “vaso traseiro” com seu marido.   

O lesbianismo era menos freqüente nos autos da Inquisição, mas ocorria. A portuguesa Maria Lourenço era casada com Antônio Gonçalves, mas se encontrava com Felipa de Souza, esposa de um pedreiro:

“depois do jantar, pela sesta, lhe começou de falar muitos requebros e amores e palavras lascivas (...), e lhe deu muitos abraços e beijos e, enfim, a lançou sobre sua cama, e estando ela confessante de costas, a dita Felipa de Souza se deitou sobre ela de bruços com as fraldas (roupas de baixo) delas ambas arregaçadas, e assim, com seus vasos dianteiros ajuntados, se estiveram ambas deleitando até que a dita Felipa de Souza, que de cima estava, cumpriu, e assim fizeram uma com a outra como se fora homem com mulher, porem não houve nenhum instrumento exterior penetrante entre elas mais que somente seus vasos naturais dianteiros.”

Felipa de Souza, pouco depois de deixar a residência de Maria Lourenço, tentou retornar, mas Felipa não permitiu que entrasse.

Os clérigos eram assíduos freqüentadores dos autos, também. O padre Frutuoso Álvares, português de Braga, já fora acusado de sodomia com um estudante. Foi condenado às galés, foi exilado em Cabo Verde, onde foi acusado de praticar relações com dois homossexuais. Foi degredado para o Brasil. Na Bahia, segundo a Inquisição:

“cometeu a torpeza dos tocamentos desonestos com algumas quarenta pessoas (...) e tendo cometimentos alguns pelo vaso traseiro com alguns deles, sendo ele o agente, e consentindo que eles o cometessem a ele pelo seu vaso baixo e pondo em cima de si os moços e lançando também os moços coma  barriga para baixo, pondo-se ele confessante em cima deles, cometendo com seu membro os vasos traseiros deles”.

Apenas com Gerônimo, menino de 12 ou 13 anos, foram mais de 10 vezes.

Frei Lucas de Souza se apresentava como mulher a seus amantes. Ainda capelão em Portugal seduzira um jovem de 23 anos: tiveram “200 cópulas anais por espaço de ano e meio, sendo sempre paciente”. Dizia que seu ânus era “vaso de mulher” e que o sangue que escorria era “mênstruo”. Contaram 99 homens em seu concorrido currículo.

Entre os séculos XVII e XVIII foram feitas 462 denúncias contra padres que se aproveitaram de mulheres nas confissões. O pai de Maria Francisca denunciou o padre José Correia, que “a quis violentar, com desordenado e furioso ímpeto que resultou grande escândalo às pessoas que o presenciara”.

Crimes desse tipo não eram a alçada da Justiça comum, mas da Eclesiástica e da Inquisição. A Igreja chamava esse tipo de “solicitação”: ocorria no confessionário, contra meninas.

O padre Antônio Vieira de Mattos foi acusado de manter uma concubina, renegou os filhos que tivera com ela e açoitou uma menina negra de 10 anos até a more. Foi inocentado. Evidentemente o corporativismo fazia com que a culpa pelos crimes de “solicitação” recaíssem sobre a vítima, culpada por seduzir o clérigo.
O Brasil não contava com universidades. Os filhos da elite local só tinham duas alternativas para cumprir o curso superior: mudar-se para a Europa ou entrar para o Seminário. Evidentemente o seminário era mais fácil e isso explicava a quantidade imensa de religiosos que não apresentavam o menor pendor para o ofício religioso.

O exposto acima, somado ao vasto tamanho do território, fizeram Françoise Froger afirmar que “até os religiosos podem manter ‘mulheres públicas’ sem temer a censura e a murmuração por parte do povo, que os respeita particularmente”.
        
        
Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”


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