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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

LIBERDADE EM CÉU LUSITANO


Quando na madrugada de 25 de abril de 1974, a rádio Renascença tocou a música “Grândola, Vila Morena” que havia sido censurada pela ditadura de Salazar, o aís pode respirar aliviado: o regime, finalmente, expirara seu último suspiro.

Exaltados pelos recentes ares de liberdade, jovens oficiais que escutavam a canção entenderam o momento como o sinal para o início das ações orquestradas silenciosamente por meses. O amanhecer trazia tanques e soldados pelas ruas, apontando suas miras para edifícios públicos militares e do Governo, aeroportos, instalações de polícia etc.

Salazar estava morto desde 1970. Em sua casa no Estoril, na varanda, sentado numa cadeira de praia enquanto sua manicure fazia-lhe as unhas, caiu abruptamente da cadeira. Bateu com a cabeça no chão, não deu muita importância ao fato, mas passou a se queixar de cansaço. Levado ao hospital, descobriu-se um coágulo no seu cérebro. Foi submetido a uma cirurgia, mas não sobreviveu.

O sentimento nacional em relação a Salazar ainda hoje se mantém ambíguo: o regime que tirou o país da bancarrota também trouxe uma névoa fascista e autoritária consigo, embora um pouco menos violento. O auge do desrespeito aos direitos humanos ocorreu, certamente, nas colônias africanas, mas os portugueses puderam sentir a ameaça da tortura e das prisões políticas inaceitáveis também.

Salazar foi sucedido no cargo por Marcelo Caetano, até então presidente do Conselho de Ministros e protegido de Salazar. Professor de direito, simpatizava com o regime de Mussolini e atuou ativamente na Constituição do Estado Novo. Depois foi reitor da Universidade de Lisboa. Pediu demissão do cargo após desentender-se com membros do governo, quando sua universidade foi invadida pela polícia sem que se pedisse sua autorização previamente.

Em meio aos movimentos rebeldes, Caetano foi alertado no meio da noite sobre tropas não autorizadas se movimentando por Lisboa. Amanheceu com seu quarte cercado pelos rebeldes. Abriram fogo contra o prédio, mas Caetano concordou recebê-los. Deram voz prisão ao Presidente e exigiram sua renúncia imediata.

Caetano telefonou ao general Spínola, quem recebeu seu pedido de renúncia. Spínola então foi nomeado chefe da Junta de Salvação Nacional, ao lado de outros sete membros.

Dois dias depois Caetano e o Presidente da República (Almirante Américo Tomás) foram transportados de avião até o exílio, no Brasil. Foi o inglório fim de quase 5 décadas de fascismo em Portugal.  

O saldo de mortos e feridos foi baixo. Apenas membros da polícia secreta PIDE abriram fogo contra os soldados quando invadiram sua sede: 2 mortos e 13 feridos. Este golpe militar recebeu o nome de “Revolução dos Cravos” – os soldados traziam cravos presos no cano de suas armas. Multidões saíram às ruas e abraçaram os novos heróis libertadores da pátria.

Mas poucos demonstraram mais exultação do que os jovens que já se preparavam para ir lutar nas guerras colônias na África. Inesperadamente abriram os portões dos quartéis onde eles se concentravam e lhes disseram que poderiam ir sair.

Logo após Portugal viu deixarem os país famílias ricas pró-regime, levando consigo todo o dinheiro e bens de luxo que puderam carregar. Passaram a residir em imóveis de luxo em Paris, Londres e no Rio de Janeiro.

Mas o regime ainda tinha seus apoiadores, especialmente na classe média. Essas pessoas associavam o regime à prosperidade econômica que testemunharam, à segurança e à ordem: os serviços de correio eram muito eficientes, as ruas estavam sempre limpas e varridas, a criminalidade exibia índices insignificantes, as estradas de ferro eram mantidas impecáveis e os trens eram sempre pontuais. Alem disso, pessoalmente Salazar era discreto, seus hábitos eram simples, era claramente honesto e orgulhosamente português.
Nas colônias africanas, contudo, a imagem do ditador não gozava de qualquer prestígio. As guerras coloniais arruinaram a imagem dos portugueses como bons e verdadeiramente interessados no progresso daquela gente. Mortes de jovens enviados ao fronte se multiplicavam e a notícia delas na metrópole arrasava as famílias e a opinião pública. Muitos jovens em idade de alistamento tentavam escapar do país de qualquer maneira. Aos poucos, formaram-se comunidades de jovens portugueses em Amsterdam, Paris, Brasil e África do Sul.

O general Spínola foi nomeado comandante das tropas que lutavam em Guiné. Após enviar relatório a Caetano informando que os portugueses não tinham qualquer chance de vitória, foi repreendido. Demitiu-se, escreveu um livro intitulado “Portugal e o Futuro”, no qual declarava não ver qualquer hipótese de manutenção daquele regime autoritário e centralizador e defendeu referendos acerca da independência de Angola e Moçambique, decididos pela própria população. Sua obra foi censurada, mas ao fim ele conseguiu publicá-la.

Dois meses depois, o governo de Caetano caiu.

Spínola integrou um núcleo de Governo integrado também por Mário Soares, histórico líder socialista, e por Álvaro Cunhal, líder comunista. Ambos estavam exilados no exterior.

O governo dos revolucionários iniciou estatizando bancos e indústrias – e ninguém foi indenizado. Confiscaram grandes terras em nome dos camponeses. A linha claramente comunista dos novos ocupantes do governo levou Spínola a pedir demissão e liderar um grupo de oficiais em direção a um novo golpe de Estado. Quase foi preso, conseguiu seqüestrar um helicóptero e fugiu para a Espanha.

E as promessas de eleições livres não foram cumpridas, nem parecia que seria um dia.

A censura acabou, mas a imprensa foi quase totalmente nacionalizada. Uma ditadura de esquerda se avizinhava. A televisão em Portugal era propriedade do Estado e, após a Revolução, foi ocupada pelos marxistas-leninistas agora donos da bola. Álvaro Cunhal e Mário Soares passaram a contar com todo o tempo do mundo para expor ao país seus planos para o futuro de Portugal.

Realizou-se um embate entre os dois líderes, em que se esperava que o líder comunista desse um banho no concorrente e passasse a ser a grande liderança política nacional. Mas Soares, brilhantemente, inverteu o jogo e levou toda a opinião pública consigo.

Cunhal era líder cujo passado na clandestinidade, quando fundou o Partido Comunista, o moldou. Soares era advogado e fez sua luta contra o fascismo defendendo aqueles que o regime perseguia. Ambos foram presos, torturados e exilados. Em Paris, Soares fundou o Partido Socialista português.

Após a Revolução, Spínola o nomeou Ministro dos Negócios Estrangeiros. Viajou pela Europa toda, quase sempre com recursos doados por partidos socialistas de outros países, defendendo eleições livres em Portugal. Tornou-se uma espécie de símbolo da liberdade em seu país.

Sua postura o tornou principal oposição aos comunistas, que pretendiam uma ditadura do proletariado. Os portugueses passaram a ver em Cunhal, um Salazar de extrema-esquerda.

Foi sob esse clima que se iniciou outro golpe militar em Portugal, em 24 de novembro, agora com o fito de extirpar dos quartéis comandantes associados a Álvaro Cunhal e ao Partido Comunista. O líder desse movimento foi o general Ramalho Eanes, liberal e veterano das guerras africanas.  

Em abril de 1976, Mário Soares foi eleito primeiro-ministro. Ramalho Eanes foi eleito Presidente, sinal claro da gratidão do povo pelo seu feito, quase dois anos antes.

O resultado do período de Salazar, especialmente no seu estertor, foi um atraso social humilhante. Portugal tinha a mais alta taxa de analfabetismo e de tuberculose da Europa. Salazar respondia aos clamores populares com frases como a de que os portugueses deveriam se alimentar de “fado, Fátima e futebol”. A dívida nacional galopava novamente e Salazar ainda se pôs contra a distribuição gratuita de remédios contra a tuberculose.

A independência das colônias africanas ainda impôs o custo de receber mais de 500 mil refugiados, formada especialmente por pessoas da classe média e operários. Voltaram desprovidos de dinheiro, abarrotados em quartos de hotéis, abandonados. Faltava gasolina, dinheiro nos bancos.

Mas havia uma notícia positiva para o governo Soares, que se iniciava. As diversas convulsões pelas quais o país passou levaram à fuga de mais de 10 mil técnicos qualificados nas mais diversas áreas para o exterior. Agora eles retornavam e eram essenciais para a indústria. Também empresários retornaram, dispostos a investir.

O PIB de Portugal galopava agora, o país alcançava seus pares europeus, era chamado de “Tiger economy” por economistas. Um governo prudente conseguiu reduzir a dívida pública a um patamar considerado baixo internacionalmente. Anteriormente, economistas julgavam que a redução daquela dívida custaria duas gerações.

Novas leis para a área social colocaram o país na vanguarda dos direitos civis. O ensino melhorou muito.
Os partidos de direita sumiram – o mais à direita era o Partido Popular. OS comunistas ainda tinham uma imagem positiva, mas galgada a um certo esforço. A excelente gestão que realizaram em Évora foi um desses fatores.

Portugal serviu de modelo para a recuperação dos países do leste europeu. Até Havel foi ao país para se aconselhar sobre uma nova Constituição tcheca. Lech Walesa foi a Fátima, agradecer pela livertação da Polônia.

Depois veio o Cristiano Ronaldo... J    


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A primeira aldeia global”         


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