Quando na madrugada de 25 de abril de 1974, a rádio
Renascença tocou a música “Grândola, Vila Morena” que havia sido censurada pela
ditadura de Salazar, o aís pode respirar aliviado: o regime, finalmente,
expirara seu último suspiro.
Exaltados pelos recentes ares de liberdade, jovens oficiais
que escutavam a canção entenderam o momento como o sinal para o início das
ações orquestradas silenciosamente por meses. O amanhecer trazia tanques e
soldados pelas ruas, apontando suas miras para edifícios públicos militares e
do Governo, aeroportos, instalações de polícia etc.
Salazar estava morto desde 1970. Em sua casa no Estoril, na
varanda, sentado numa cadeira de praia enquanto sua manicure fazia-lhe as unhas,
caiu abruptamente da cadeira. Bateu com a cabeça no chão, não deu muita importância
ao fato, mas passou a se queixar de cansaço. Levado ao hospital, descobriu-se
um coágulo no seu cérebro. Foi submetido a uma cirurgia, mas não sobreviveu.
O sentimento nacional em relação a Salazar ainda hoje se
mantém ambíguo: o regime que tirou o país da bancarrota também trouxe uma névoa
fascista e autoritária consigo, embora um pouco menos violento. O auge do
desrespeito aos direitos humanos ocorreu, certamente, nas colônias africanas,
mas os portugueses puderam sentir a ameaça da tortura e das prisões políticas
inaceitáveis também.
Salazar foi sucedido no cargo por Marcelo Caetano, até então
presidente do Conselho de Ministros e protegido de Salazar. Professor de
direito, simpatizava com o regime de Mussolini e atuou ativamente na
Constituição do Estado Novo. Depois foi reitor da Universidade de Lisboa. Pediu
demissão do cargo após desentender-se com membros do governo, quando sua
universidade foi invadida pela polícia sem que se pedisse sua autorização
previamente.
Em meio aos movimentos rebeldes, Caetano foi alertado no
meio da noite sobre tropas não autorizadas se movimentando por Lisboa.
Amanheceu com seu quarte cercado pelos rebeldes. Abriram fogo contra o prédio,
mas Caetano concordou recebê-los. Deram voz prisão ao Presidente e exigiram sua
renúncia imediata.
Caetano telefonou ao general Spínola, quem recebeu seu
pedido de renúncia. Spínola então foi nomeado chefe da Junta de Salvação Nacional,
ao lado de outros sete membros.
Dois dias depois Caetano e o Presidente da República
(Almirante Américo Tomás) foram transportados de avião até o exílio, no Brasil.
Foi o inglório fim de quase 5 décadas de fascismo em Portugal.
O saldo de mortos e feridos foi baixo. Apenas membros da
polícia secreta PIDE abriram fogo contra os soldados quando invadiram sua sede:
2 mortos e 13 feridos. Este golpe militar recebeu o nome de “Revolução dos
Cravos” – os soldados traziam cravos presos no cano de suas armas. Multidões
saíram às ruas e abraçaram os novos heróis libertadores da pátria.
Mas poucos demonstraram mais exultação do que os jovens que
já se preparavam para ir lutar nas guerras colônias na África. Inesperadamente
abriram os portões dos quartéis onde eles se concentravam e lhes disseram que
poderiam ir sair.
Logo após Portugal viu deixarem os país famílias ricas
pró-regime, levando consigo todo o dinheiro e bens de luxo que puderam
carregar. Passaram a residir em imóveis de luxo em Paris, Londres e no Rio de
Janeiro.
Mas o regime ainda tinha seus apoiadores, especialmente na
classe média. Essas pessoas associavam o regime à prosperidade econômica que
testemunharam, à segurança e à ordem: os serviços de correio eram muito
eficientes, as ruas estavam sempre limpas e varridas, a criminalidade exibia
índices insignificantes, as estradas de ferro eram mantidas impecáveis e os
trens eram sempre pontuais. Alem disso, pessoalmente Salazar era discreto, seus
hábitos eram simples, era claramente honesto e orgulhosamente português.
Nas colônias africanas, contudo, a imagem do ditador não
gozava de qualquer prestígio. As guerras coloniais arruinaram a imagem dos
portugueses como bons e verdadeiramente interessados no progresso daquela
gente. Mortes de jovens enviados ao fronte se multiplicavam e a notícia delas
na metrópole arrasava as famílias e a opinião pública. Muitos jovens em idade de
alistamento tentavam escapar do país de qualquer maneira. Aos poucos,
formaram-se comunidades de jovens portugueses em Amsterdam, Paris, Brasil e
África do Sul.
O general Spínola foi nomeado comandante das tropas que
lutavam em Guiné. Após enviar relatório a Caetano informando que os portugueses
não tinham qualquer chance de vitória, foi repreendido. Demitiu-se, escreveu um
livro intitulado “Portugal e o Futuro”, no qual declarava não ver qualquer hipótese
de manutenção daquele regime autoritário e centralizador e defendeu referendos
acerca da independência de Angola e Moçambique, decididos pela própria
população. Sua obra foi censurada, mas ao fim ele conseguiu publicá-la.
Dois meses depois, o governo de Caetano caiu.
Spínola integrou um núcleo de Governo integrado também por
Mário Soares, histórico líder socialista, e por Álvaro Cunhal, líder comunista.
Ambos estavam exilados no exterior.
O governo dos revolucionários iniciou estatizando bancos e
indústrias – e ninguém foi indenizado. Confiscaram grandes terras em nome dos
camponeses. A linha claramente comunista dos novos ocupantes do governo levou
Spínola a pedir demissão e liderar um grupo de oficiais em direção a um novo
golpe de Estado. Quase foi preso, conseguiu seqüestrar um helicóptero e fugiu
para a Espanha.
E as promessas de eleições livres não foram cumpridas, nem
parecia que seria um dia.
A censura acabou, mas a imprensa foi quase totalmente
nacionalizada. Uma ditadura de esquerda se avizinhava. A televisão em Portugal
era propriedade do Estado e, após a Revolução, foi ocupada pelos
marxistas-leninistas agora donos da bola. Álvaro Cunhal e Mário Soares passaram
a contar com todo o tempo do mundo para expor ao país seus planos para o futuro
de Portugal.
Realizou-se um embate entre os dois líderes, em que se
esperava que o líder comunista desse um banho no concorrente e passasse a ser a
grande liderança política nacional. Mas Soares, brilhantemente, inverteu o jogo
e levou toda a opinião pública consigo.
Cunhal era líder cujo passado na clandestinidade, quando
fundou o Partido Comunista, o moldou. Soares era advogado e fez sua luta contra
o fascismo defendendo aqueles que o regime perseguia. Ambos foram presos,
torturados e exilados. Em Paris, Soares fundou o Partido Socialista português.
Após a Revolução, Spínola o nomeou Ministro dos Negócios
Estrangeiros. Viajou pela Europa toda, quase sempre com recursos doados por partidos
socialistas de outros países, defendendo eleições livres em Portugal. Tornou-se
uma espécie de símbolo da liberdade em seu país.
Sua postura o tornou principal oposição aos comunistas, que
pretendiam uma ditadura do proletariado. Os portugueses passaram a ver em Cunhal,
um Salazar de extrema-esquerda.
Foi sob esse clima que se iniciou outro golpe militar em
Portugal, em 24 de novembro, agora com o fito de extirpar dos quartéis
comandantes associados a Álvaro Cunhal e ao Partido Comunista. O líder desse
movimento foi o general Ramalho Eanes, liberal e veterano das guerras
africanas.
Em abril de 1976, Mário Soares foi eleito primeiro-ministro.
Ramalho Eanes foi eleito Presidente, sinal claro da gratidão do povo pelo seu
feito, quase dois anos antes.
O resultado do período de Salazar, especialmente no seu
estertor, foi um atraso social humilhante. Portugal tinha a mais alta taxa de
analfabetismo e de tuberculose da Europa. Salazar respondia aos clamores
populares com frases como a de que os portugueses deveriam se alimentar de “fado,
Fátima e futebol”. A dívida nacional galopava novamente e Salazar ainda se pôs
contra a distribuição gratuita de remédios contra a tuberculose.
A independência das colônias africanas ainda impôs o custo
de receber mais de 500 mil refugiados, formada especialmente por pessoas da
classe média e operários. Voltaram desprovidos de dinheiro, abarrotados em
quartos de hotéis, abandonados. Faltava gasolina, dinheiro nos bancos.
Mas havia uma notícia positiva para o governo Soares, que se
iniciava. As diversas convulsões pelas quais o país passou levaram à fuga de
mais de 10 mil técnicos qualificados nas mais diversas áreas para o exterior.
Agora eles retornavam e eram essenciais para a indústria. Também empresários
retornaram, dispostos a investir.
O PIB de Portugal galopava agora, o país alcançava seus
pares europeus, era chamado de “Tiger economy” por economistas. Um governo
prudente conseguiu reduzir a dívida pública a um patamar considerado baixo
internacionalmente. Anteriormente, economistas julgavam que a redução daquela
dívida custaria duas gerações.
Novas leis para a área social colocaram o país na vanguarda
dos direitos civis. O ensino melhorou muito.
Os partidos de direita sumiram – o mais à direita era o
Partido Popular. OS comunistas ainda tinham uma imagem positiva, mas galgada a
um certo esforço. A excelente gestão que realizaram em Évora foi um desses
fatores.
Portugal serviu de modelo para a recuperação dos países do leste
europeu. Até Havel foi ao país para se aconselhar sobre uma nova Constituição
tcheca. Lech Walesa foi a Fátima, agradecer pela livertação da Polônia.
Depois veio o Cristiano Ronaldo... J
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A primeira aldeia global”
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