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quarta-feira, 27 de setembro de 2017

PORQUE NÃO EXISTE PECADO DO LADO DEBAIXO DO EQUADOR...


À primeira vista, sentiam-se adentro o Éden. Não sentiam vergonha por estarem nus. Aqueles índios pareciam Adão e Eva antes da danação provocada por comer o fruto do conhecimento. Mas essa atração pela ingenuidade daquelas pessoas durou pouco.

Logo os colonizadores perceberam que necessitariam de criar alianças caso desejassem explorar aquelas terras recém-descobertas. Eram numericamente muito inferiores aos povos originários.

A primeira estratégia de que lançaram mãos foi aquela que melhor conheciam em suas terras natais: o casamento. Alianças políticas criadas por vínculos familiares estabelecidos pelo casamento deram aos europeus acesso à mão-de-obra usada nas primeiras décadas do Brasil.

Mas não demorou a começarem a desembarcar na costa brasileira escravos de origem africana. Com a mudança étnica, surgiram as mudanças sócio-culturais: agora a sociedade estava dividida em estamentos: casa-grande, senzala e cidade (inicialmente, vilas).

O mesmo ocorreu com a vida sexual da jovem colônia: desde o sexo quase-santificado entre o senhor de engenho branco e sua esposa européia, passando pelo abuso sexual do senhor contra a escrava, o concubinato com negras libertas ou índias, até as relações instáveis entre negros, pardos, mamelucos e brancos pobres.

Inicialmente, aos europeus parecia que os indígenas brasileiros eram escravos do pecado da luxúria. Mas logo perceberam que eles eram dados, desavergonhadamente, àquilo que despertasse prazer. Igualmente notável foi a atração que sentiram pelas formas, pela beleza dos corpos.

Primeiramente a atenção dos europeus foi direcionada aos pênis dos índios. Perceberam que não eram circuncidados, portanto judeus não eram: fácil convertê-los! Depois a atenção se desviou para as mulheres e suas “vergonhas”. Segundo Pero Vaz de Caminha: “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”. Tem-se portanto a descrição de vagina depiladas, aparentemente de índias bastante jovens, que despertaram-lhes a vontade de comparar com aquelas das mulheres que conheciam.

A questão da nudez parecia bem idiossincrática. Afinal, na América do Norte, nos Andes, os índios se vestiam copiosamente, tanto por causa do frio intenso como por motivos relacionados à hierarquia. Já o Brasil era completamente despido de vestimentas – e a nudez não necessariamente estava relacionada ao apetite sexual.

Assim como no Gênesis, os inocentes habitantes deste Jardim do Éden seriam traídos por uma serpente, mas de outro tipo daquela bíblica, que em si faria nascer a vergonha. Os jesuítas ofereceram-lhes roupas àqueles índios que se convertiam. Mas a tarefa não foi fácil, mesmo porque não havia indústria têxtil aqui. 
Manuel da Nóbrega encomendava uma camisa a cada índia, afinal ele não conseguia conceber uma índia nua entrando na igreja e se sentando ao lado de outro cristão.

Pouco tempo depois, perceberam os portugueses que a sensualidade, a sexualidade entre os índios era bastante intensa – embora pouco tivesse a ver com nudez. Como disse Gilberto Freyre: “O ambiente em que começou a vida sexual brasileira foi de quase intoxicação sexual”. E continuava: “Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses.” E o que mais os admirava: não se falava em luxúria, conceito construído ao longo de milênios, altamente turbinado pela moral cristã e, certamente, impermeável aos indígenas de outrora. Como explicar os sacramentos de quem via o ato de tomar banho como pecado e quem se divertia tomando banho em riachos e cachoeiras?

A atração exercida pelas índias chegava a incomodar alguns clérigos, como o frei Vicente de Salvador, que se sentia tentado a quebrar seu voto de castidade. Frei Antônio Rocha dizia não passar uma hora sem que sentisse “estímulos sexuais”. O jesuíta Inácio de Azevedo tratava como milagre a manutenção do celibato em terras brasileiras.

José de Anchieta descreveu a fuga de dois futuros padres “tentados pelo espírito de fornicação”. O motivo, segundo o próprio Anchieta, era que “as mulheres andam nuas e não sabem se negar a ninguém, mas até elas cometem e importunam os homens, jogando-se com eles nas redes porque têm por honra dormir com os Cristãos.”

Conforme descobriam mais sobre aquele povo “inocente”, mais os portugueses se assombravam com seu desprendimento sexual. Entre as índias, logo perceberam que a homossexualidade se fazia presente. Segundo Pero de Magalhães Gândavo em “História da Província de Santa Cruz”: “Estas imitam os homens e seguem seus ofícios. Cortam seus cabelos da mesma maneira que os machos trazem e vão à guerra com seu arco e flechas e à caça: enfim, que andam sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve e que lhe faz de comer como se fossem casados.”

O conceito de casamento, evidentemente, não era o mesmo dos europeus: nenhuma índia desejava guardar a virgindade para o futuro marido, nem sonhavam com uma união eterna. Pelo contrário, frequentemente sabia-se algum velho que abandonava a a família para juntar-se a índias jovens, especialmente capturadas em guerras tribais. Mulheres também costumavam abandonar seus maridos. Quando o homem tinha várias mulheres, não se sabia quem poderia ser a esposa “verdadeira”.

Gabriel Soares de Sousa descreveu detalhadamente – e segundo seu ponto de vista europeus - a vida sexual que conheceu aqui, na sua obra Tratado Descritivo do Brasil, de 1587:

“São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam; os quais sendo de muita pouca idade têm conta com mulheres, e bem mulheres, porque as velhas, já desestimadas pelos que são homens, granjeiam estes meninos, fazendo-lhes mimos e regalos, e ensinam-lhes a fazer o que não sabem, e não os deixam de dia, nem de noite. É este gentio tão luxurioso que poucas vezes têm respeito às irmãs e tias, e porque esse pecado é contra seus costumes, dormem com elas pelos matos, e alguns com suas próprias filhas;(...) E em conversação não sabem falar senão nestas sujidades, que cometem a cada hora. (...) Não contentes estes selvagens (...) são mui afeiçoados ao pecado nefando (homossexualidade), entre os quais se não tem por afronta; e o que serve de macho, se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza. (...) Os machos destes tupinambás não são ciosos, e ainda que achem outrem com as mulheres, não matam ninguém por isso, e quando muito espancam as mulheres pelo caso. E as que querem bem aos maridos buscam-lhe moças com que eles se desenfadem,as quais lhe levam à rede onde dormem, onde lhes pedem muito que se queiram deitar com os maridos (...).”

Num mesmo texto: pedofilia, homossexualidade, incesto e ménage a trois – tudo encarado com normalidade, ou quase isso. Pobre Gabriel, mal sabia que testemunhava uma nação em gestação...


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”

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