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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

ERA MANUELINA EM PORTUGAL – DA DEFINIÇÃO DA OPULÊNCIA AO DECLÍNIO RETUMBANTE




Com dinheiro, você poderia adquirir qualquer coisa. Banqueiros, mercadores, lojistas, joalheiros, alfaiates, sapateiros e muitos outros profissionais afluíam de topa a Europa: Bélgica, Inglaterra, França, Alemanha, Itália – em busca de um pouco da imensa riqueza que circulava por Lisboa.

Esse enriquecimento se refletia na corte de D. Manuel – que aumentava proporcionalmente em número de membros. A nobreza vestia sedas e linhos. Alguns usavam chapéus cravejados de diamantes e pérolas. O rei usava uma roupa nova a cada dia, distribuindo as usadas a seus cortesãos. Carruagens ornamentadas cortavam as ruas de Lisboa cotidianamente. Já o rei não podia fazer igual aos demais nobres: sua procissão era liderada por um rinoceronte, seguida por quatro elefantes amestrados. Atrás, vinha um cavalo persa carregando um leopardo caçador – presente do sultão de Ormuz. Trombeteiros e tambores faziam parte do cortejo.

O rei D. Manuel era viciado em música. Ia dormir ao som de uma serenata diariamente. O mesmo ocorria após suas refeições. Enquanto trabalhava em seu escritório na Casa da Índia, uma orquestra de câmara tocava.

A música o acompanhava até nas sextas-feiras, dia de jejum à base de pão e água, quando passava a maior parte do dia no tribunal criminal ouvindo os pedidos de clemência dos recém-condenados – também ditava sentenças nessa ocasião.

As tardes reais eram comumente passadas a bordo de um barco, singrando o Tejo, abrigado abaixo de um toldo estofado regiamente com seda, acompanhado de músicos e de personalidades com quem estivesse a tratar de algum assunto qualquer.

Sua orquestra de câmara e sua capela (coro) eram compostas pelos melhores músicos europeus, pagos a peso de ouro. Após as apresentações musicais, eram comuns festas com a participação de comediantes, que faziam sátiras impunes com nobres e bispos. O mestre-de-cerimônias predileto era Gil Vicente, ainda hoje considerado um dos melhores dramaturgos do país e contemporâneo de Shakespeare.

D. Manuel ordenou a construção de uma ópera enorme e um novo palácio, nas colinas de Belém, a oeste de Lisboa. Foram contratados os melhores arquitetos da Europa, mas os três mais destacados eram portugueses: Mateus Fernandes, Diogo de Arruda e seu filho, Francisco. Além desses, destacou-se também o francês Diogo de Boitac. Deram nascimento ao estilo conhecido como manuelino, de finais da Renascença e com raízes góticas.

No campo das construções marcantes, D. Manuel mandou construir o mosteiro dos cavaleiros templários, em Tomar; a igreja das três naves em Setúbal e o Panteão dos Avis, no Mosteiro da Batalha. Ainda em Belém, mandou erigir a Torre de Belém, em comemoração à primeira expedição de Vasco da Gama. Na parte de trás do palácio, após um amplo jardim, mandou construir o Mosteiro dos Jerônimos, um dos edifícios mais impressionantes em todo o sul da Europa. Criou-se um imposto especial sobre as especiarias para financiar sua construção. Diversos indianos trabalharam na sua construção. Nele estão os restos mortais de Vasco da Gama e de Fernando Pessoa.

Interessante notar que os monges dos Jerônimos dirigiam escolas voltadas para crianças nascidas nas colônias – em geral, filhos da nobreza local. Como muitas dessas crianças prosperaram na vida adulta, tais monges foram responsáveis pela criação e uma harmonia racial vigente em Lisboa, que não se reproduziu nas suas colônias.

O dinheiro continuava entrando no Tesouro português. A contabilidade da Casa da Índia passou a ocupar todo o primeiro piso do palácio real. Testemunhas dera conta de mercadores estrangeiros que ali entravam com sacos de ouro, para adquirirem especiarias, mas tinham  de retornar no dia seguinte pois os funcionários não dariam conta de contar mais moeda do que já tinham de contar naquele dia.

Os banqueiros da família real ainda eram os Médici, de Florença. Em Roma, Giovanni de Medici, filho do patriarca Lourenço, fora nomeado Papa Leão X. Agora eram líderes financeiros e espirituais dos reis católicos europeus. Um pequeno percalço se abateu sobre a nomeação de Giovanni: tinha apenas 37 anos e nunca havia sido nomeado padre... mas corrigiram essa omissão rapidamente...

O novo papa foi presenteado por D. Manuel: vestes pontificais, tecidas com fios de ouro e cobertas de pedras preciosas e pérolas, que mal deixavam entreverem-se os fios dourados. Muitos dos tecidos traziam desenhos do rosto de Jesus e de seus apóstolos, bordados com seda. Os contornos eram feitos de rubis brutos.

D. Manuel mandou entregar também um rinoceronte ao novo papa, mas o navio afundou próximo a Marselha. Seu corpo embalsamado serviu de modelo ao pintor Albrecht Durer. Diversas famílias nobres portuguesas fixaram residência em Roma, perto da Piazza Navona, no que ficou conhecido como bairro português. Uma dessas residências é hoje um hotel com 190 quartos.  

É fácil culpar toda essa opulência pela queda do império português, mas não se deve omitir o que fizeram em prol do comércio e do conhecimento. A produção e venda de mapas em Portugal era muito regulada e a exportação, proibida. Diversos cartógrafos, portanto eram contratados por governos estrangeiros, que pagavam fortunas por essa transferência.

Viajantes portugueses escreviam livros que rapidamente se tornavam Best Sellers em toda a Europa, dando às pessoas seu primeiro contato com o mundo estrangeiro.

Na área das inovações técnicas, surgiram o canhão carregado pela culatra, a bússola marítima de João de Castro e a construção de edifícios em pedra. Pedro Nunes escreveu uma grande obra sobra álgebra. Mas nada evoluiu em Portugal como a medicina. As ervas medicinais que traziam da Ásia, a identificação da causa da malária com o mosquito portador (conhecimento que os ingleses se recusaram a aceitar na época), são exemplos de tais progressos. O médico português Garcia de Orta publicou seu tratado “Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia” em 1563 em Goa, trazendo nele os conhecimentos passados por médicos indianos e persas, testados empiricamente. Foi um marco no reconhecimento da medicina como ciência e um protesto contra o apego europeu à medicina da Grécia Antiga. O sucesso da obra levou diversas cortes europeias a contratarem médicos portugueses.

D. Manuel estava ciente da importância do conhecimento para a construção da nação. Adquiriu um colégio enorme em Paris, próximo à Universidade, para ser usado apenas por estudantes portugueses. Para a Universidade de Coimbra, contratou intelectuais em Salamanca, Paris, Antuérpia, Oxford, Edimburgo...  A mudança foi de tal monta que o latim passou a ser a língua mais usada na Corte, em lugar do português, a cada deixado mais de lado. A formalidade e a seriedade exigidos nesses novos tempos deixaram as sátiras de Gil Vicente inadequadas, sendo substituídas pelos clássicos gregos e latinos.

D. Manuel morreu em 1521, aos 52 anos. Nascera “rei de Portugal e dos Algarves” e morreu “rei de Portugal e dos Algarves, d`Aquém e D`Além-Mar em África, Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia”. Em seu reinado, nenhuma nação foi mais admirada do que Portugal. Ninguém foi mais invejado também.

Com sua morte, holandeses, ingleses, franceses e espanhóis puseram-se à espreita para saber o que seria daquele império. Afinal, sua situação matrimonial era completamente indefinida. D. Manuel enviuvara duas vezes e morrera noivo pela terceira, agora de Da. Leonor de Áustria, irmã do imperador da Espanha. Seu sucessor, D. João III, na época com 19 anos, foi interpelado pelos conselheiros para que casasse com a prometida de seu pai. Assim, não se devolveria o dote pago pela Espanha a Portugal.

D. João recusou o conselho, devolveu D. Leonor À Espanha e ainda enviou sua irmão, Isabel, para casas-se com o rei da Espanha. Aceitou ainda que Portugal pagasse um dote milionário à Espanha, a título de indenização pelo fato de Portugal ter descoberto as ilhas das Especiarias antes da Espanha...

A situação interna de Portugal era periclitante. A corte herdada era imensa. Além da nobreza tradicional, D. Manuel distribuíra títulos a centenas de colaboradores pessoais (com direito a pensões fixas) e camponeses (que o sensibilizassem com uma história bem triste; recebiam um trabalho bem ocioso e um bom salário, e passavam a viver em Lisboa).

O declínio de Portugal veio acompanhado pela fome. A praga que afligiu o país e a saída de cidadãos em direção à Ásia e à América despovoou o campo. Os alimentos tinham de ser importados. O comércio de especiarias estava em declínio também.

E Portugal agora pagava o preço que cobrou no passado. No início de sua ascensão, Portugal pilhava muçulmanos (navios, cidades) e não considerava isso imoral: eram católicos, professavam a fé “verdadeira” e destruir muçulmanos agradaria a Deus. Agora o cenário mudava: no norte da Europa surgiram os protestantes, que agraciavam os atos de pirataria praticados contra barcos católicos portugueses. Piratas protestantes infestaram os mares, especialmente nos Açores, no entroncamento dos Atlânticos norte e sul. Apenas no reinado de D. João III foram capturados mais de 300 barcos portugueses. A venda das mercadorias assim capturadas levou ao depreciamento das mercadorias, fazendo cessarem os lucros dos portugueses.

Se algum lucro houvesse, de qualquer maneira era privado. Já os custos das armadas e de uma marinha gigantesca eram públicos, bancados por um Estado a cada dia mais pobre. As receitas públicas eram ainda mais apenadas com as isenções tributárias concedidas por D. Manuel aos ricos do país.

Para se financiar, Portugal passou a  emitir títulos de dívidas nos mercados financeiros de Antuérpia (Bélgica). A ciranda financeira logo exigia que se emitissem novos títulos para saldar os antigos, haja vista a taxa de juros estratosférica que se exigia do país, da ordem de 25% a.a. O país estava com as finanças periclitantes.

Quando D. João III morreu, em 1557, os títulos públicos portugueses eram o que hoje se chama de “distressed papers”, ou “junk bonds”: eram negociados por 5% do valor de face.  


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A primeira aldeia global”

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