Com dinheiro, você poderia adquirir qualquer coisa.
Banqueiros, mercadores, lojistas, joalheiros, alfaiates, sapateiros e muitos
outros profissionais afluíam de topa a Europa: Bélgica, Inglaterra, França,
Alemanha, Itália – em busca de um pouco da imensa riqueza que circulava por
Lisboa.
Esse enriquecimento se refletia na corte de D. Manuel – que aumentava
proporcionalmente em número de membros. A nobreza vestia sedas e linhos. Alguns
usavam chapéus cravejados de diamantes e pérolas. O rei usava uma roupa nova a
cada dia, distribuindo as usadas a seus cortesãos. Carruagens ornamentadas
cortavam as ruas de Lisboa cotidianamente. Já o rei não podia fazer igual aos
demais nobres: sua procissão era liderada por um rinoceronte, seguida por
quatro elefantes amestrados. Atrás, vinha um cavalo persa carregando um
leopardo caçador – presente do sultão de Ormuz. Trombeteiros e tambores faziam
parte do cortejo.
O rei D. Manuel era viciado em música. Ia dormir ao som de
uma serenata diariamente. O mesmo ocorria após suas refeições. Enquanto
trabalhava em seu escritório na Casa da Índia, uma orquestra de câmara tocava.
A música o acompanhava até nas sextas-feiras, dia de jejum à
base de pão e água, quando passava a maior parte do dia no tribunal criminal
ouvindo os pedidos de clemência dos recém-condenados – também ditava sentenças
nessa ocasião.
As tardes reais eram comumente passadas a bordo de um barco,
singrando o Tejo, abrigado abaixo de um toldo estofado regiamente com seda,
acompanhado de músicos e de personalidades com quem estivesse a tratar de algum
assunto qualquer.
Sua orquestra de câmara e sua capela (coro) eram compostas
pelos melhores músicos europeus, pagos a peso de ouro. Após as apresentações
musicais, eram comuns festas com a participação de comediantes, que faziam sátiras
impunes com nobres e bispos. O mestre-de-cerimônias predileto era Gil Vicente,
ainda hoje considerado um dos melhores dramaturgos do país e contemporâneo de
Shakespeare.
D. Manuel ordenou a construção de uma ópera enorme e um novo
palácio, nas colinas de Belém, a oeste de Lisboa. Foram contratados os melhores
arquitetos da Europa, mas os três mais destacados eram portugueses: Mateus
Fernandes, Diogo de Arruda e seu filho, Francisco. Além desses, destacou-se
também o francês Diogo de Boitac. Deram nascimento ao estilo conhecido como
manuelino, de finais da Renascença e com raízes góticas.
No campo das construções marcantes, D. Manuel mandou
construir o mosteiro dos cavaleiros templários, em Tomar; a igreja das três
naves em Setúbal e o Panteão dos Avis, no Mosteiro da Batalha. Ainda em Belém,
mandou erigir a Torre de Belém, em comemoração à primeira expedição de Vasco da
Gama. Na parte de trás do palácio, após um amplo jardim, mandou construir o
Mosteiro dos Jerônimos, um dos edifícios mais impressionantes em todo o sul da
Europa. Criou-se um imposto especial sobre as especiarias para financiar sua
construção. Diversos indianos trabalharam na sua construção. Nele estão os
restos mortais de Vasco da Gama e de Fernando Pessoa.
Interessante notar que os monges dos Jerônimos dirigiam
escolas voltadas para crianças nascidas nas colônias – em geral, filhos da nobreza
local. Como muitas dessas crianças prosperaram na vida adulta, tais monges
foram responsáveis pela criação e uma harmonia racial vigente em Lisboa, que
não se reproduziu nas suas colônias.
O dinheiro continuava entrando no Tesouro português. A
contabilidade da Casa da Índia passou a ocupar todo o primeiro piso do palácio
real. Testemunhas dera conta de mercadores estrangeiros que ali entravam com sacos
de ouro, para adquirirem especiarias, mas tinham de retornar no dia seguinte pois os
funcionários não dariam conta de contar mais moeda do que já tinham de contar
naquele dia.
Os banqueiros da família real ainda eram os Médici, de
Florença. Em Roma, Giovanni de Medici, filho do patriarca Lourenço, fora
nomeado Papa Leão X. Agora eram líderes financeiros e espirituais dos reis
católicos europeus. Um pequeno percalço se abateu sobre a nomeação de Giovanni:
tinha apenas 37 anos e nunca havia sido nomeado padre... mas corrigiram essa
omissão rapidamente...
O novo papa foi presenteado por D. Manuel: vestes
pontificais, tecidas com fios de ouro e cobertas de pedras preciosas e pérolas,
que mal deixavam entreverem-se os fios dourados. Muitos dos tecidos traziam
desenhos do rosto de Jesus e de seus apóstolos, bordados com seda. Os contornos
eram feitos de rubis brutos.
D. Manuel mandou entregar também um rinoceronte ao novo
papa, mas o navio afundou próximo a Marselha. Seu corpo embalsamado serviu de
modelo ao pintor Albrecht Durer. Diversas famílias nobres portuguesas fixaram
residência em Roma, perto da Piazza Navona, no que ficou conhecido como bairro
português. Uma dessas residências é hoje um hotel com 190 quartos.
É fácil culpar toda essa opulência pela queda do império
português, mas não se deve omitir o que fizeram em prol do comércio e do
conhecimento. A produção e venda de mapas em Portugal era muito regulada e a
exportação, proibida. Diversos cartógrafos, portanto eram contratados por
governos estrangeiros, que pagavam fortunas por essa transferência.
Viajantes portugueses escreviam livros que rapidamente se
tornavam Best Sellers em toda a Europa, dando às pessoas seu primeiro contato
com o mundo estrangeiro.
Na área das inovações técnicas, surgiram o canhão carregado
pela culatra, a bússola marítima de João de Castro e a construção de edifícios
em pedra. Pedro Nunes escreveu uma grande obra sobra álgebra. Mas nada evoluiu
em Portugal como a medicina. As ervas medicinais que traziam da Ásia, a
identificação da causa da malária com o mosquito portador (conhecimento que os
ingleses se recusaram a aceitar na época), são exemplos de tais progressos. O
médico português Garcia de Orta publicou seu tratado “Colóquio dos Simples e Drogas
e Cousas Medicinais da Índia” em 1563 em Goa, trazendo nele os conhecimentos
passados por médicos indianos e persas, testados empiricamente. Foi um marco no
reconhecimento da medicina como ciência e um protesto contra o apego europeu à
medicina da Grécia Antiga. O sucesso da obra levou diversas cortes europeias a
contratarem médicos portugueses.
D. Manuel estava ciente da importância do conhecimento para
a construção da nação. Adquiriu um colégio enorme em Paris, próximo à
Universidade, para ser usado apenas por estudantes portugueses. Para a
Universidade de Coimbra, contratou intelectuais em Salamanca, Paris, Antuérpia,
Oxford, Edimburgo... A mudança foi de
tal monta que o latim passou a ser a língua mais usada na Corte, em lugar do
português, a cada deixado mais de lado. A formalidade e a seriedade exigidos nesses
novos tempos deixaram as sátiras de Gil Vicente inadequadas, sendo substituídas
pelos clássicos gregos e latinos.
D. Manuel morreu em 1521, aos 52 anos. Nascera “rei de
Portugal e dos Algarves” e morreu “rei de Portugal e dos Algarves, d`Aquém e
D`Além-Mar em África, Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia,
Pérsia e Índia”. Em seu reinado, nenhuma nação foi mais admirada do que
Portugal. Ninguém foi mais invejado também.
Com sua morte, holandeses, ingleses, franceses e espanhóis
puseram-se à espreita para saber o que seria daquele império. Afinal, sua
situação matrimonial era completamente indefinida. D. Manuel enviuvara duas
vezes e morrera noivo pela terceira, agora de Da. Leonor de Áustria, irmã do
imperador da Espanha. Seu sucessor, D. João III, na época com 19 anos, foi
interpelado pelos conselheiros para que casasse com a prometida de seu pai.
Assim, não se devolveria o dote pago pela Espanha a Portugal.
D. João recusou o conselho, devolveu D. Leonor À Espanha e
ainda enviou sua irmão, Isabel, para casas-se com o rei da Espanha. Aceitou
ainda que Portugal pagasse um dote milionário à Espanha, a título de
indenização pelo fato de Portugal ter descoberto as ilhas das Especiarias antes
da Espanha...
A situação interna de Portugal era periclitante. A corte
herdada era imensa. Além da nobreza tradicional, D. Manuel distribuíra títulos
a centenas de colaboradores pessoais (com direito a pensões fixas) e camponeses
(que o sensibilizassem com uma história bem triste; recebiam um trabalho bem
ocioso e um bom salário, e passavam a viver em Lisboa).
O declínio de Portugal veio acompanhado pela fome. A praga
que afligiu o país e a saída de cidadãos em direção à Ásia e à América despovoou
o campo. Os alimentos tinham de ser importados. O comércio de especiarias
estava em declínio também.
E Portugal agora pagava o preço que cobrou no passado. No
início de sua ascensão, Portugal pilhava muçulmanos (navios, cidades) e não
considerava isso imoral: eram católicos, professavam a fé “verdadeira” e
destruir muçulmanos agradaria a Deus. Agora o cenário mudava: no norte da
Europa surgiram os protestantes, que agraciavam os atos de pirataria praticados
contra barcos católicos portugueses. Piratas protestantes infestaram os mares,
especialmente nos Açores, no entroncamento dos Atlânticos norte e sul. Apenas
no reinado de D. João III foram capturados mais de 300 barcos portugueses. A
venda das mercadorias assim capturadas levou ao depreciamento das mercadorias,
fazendo cessarem os lucros dos portugueses.
Se algum lucro houvesse, de qualquer maneira era privado. Já
os custos das armadas e de uma marinha gigantesca eram públicos, bancados por
um Estado a cada dia mais pobre. As receitas públicas eram ainda mais apenadas
com as isenções tributárias concedidas por D. Manuel aos ricos do país.
Para se financiar, Portugal passou a emitir títulos de dívidas nos mercados
financeiros de Antuérpia (Bélgica). A ciranda financeira logo exigia que se
emitissem novos títulos para saldar os antigos, haja vista a taxa de juros
estratosférica que se exigia do país, da ordem de 25% a.a. O país estava com as
finanças periclitantes.
Quando D. João III morreu, em 1557, os títulos públicos
portugueses eram o que hoje se chama de “distressed papers”, ou “junk bonds”:
eram negociados por 5% do valor de face.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A primeira aldeia global”
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