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sexta-feira, 15 de setembro de 2017

ENTRE A CRUZ E A ESPADA – PORTUGAL INGLÊS OU FRANCÊS?


“Não vá tão depressa! O povo vai pensar que estamos a fugir.” Com essas palavras, gritadas pela dama de companhia da rainha D. Maria, que se encontrava atada e amordaçada ao seu lado, ao seu cocheiro, a autoridade máxima de Portugal e sua família deixavam o reino.

Católica ferrenha, D. Maria era atormentada por visões de seu pai no inferno, punido pela sua cumplicidade com o Marquês de Pombal em sua perseguição frenética a membros da Igreja. Procurou desfazer grande parte das medidas tomadas pelo velho primeiro-ministro: mandou regressarem a seus países acadêmicos, técnicos e peritos trazidos por seu pai; professores competentes foram despedidos e substituídos por frades semi-analfabetos.    

Aos 57 anos, D Maria fora declarada oficialmente mentalmente incapaz. O príncipe João, seu filho, regente da nação, também se juntou à fuga para o Brasil. O exército de Napoleão já adentrava Lisboa. A escolta inglesa já se encontrava a postos para acompanhar a família Bragança, funcionários reais, membros da corte e milhares de cidadãos ao Rio de Janeiro. O preço da proteção britânica foi a cessão do incrivelmente lucrativo comércio com o Brasil.

Após a Revolução francesa, todas as famílias reais européias viviam com calafrios de perderem seus pescoços. Com os Bragança não foi diferente. Impuseram uma censura absoluta a jornais estrangeiros, impediram publicação de qualquer coisa que falasse em França, Paris e pessoas eram presas apenas por comentarem os últimos acontecimentos em França. Visitantes estrangeiros deveriam indicar um residente que se responsabilizasse por seus atos.

Napoleão, quem se apoderou do poder ao cabo da Revolução, por volta de 1807 tinha conquistado praticamente todo o sul da Europa, exceto Portugal, que era na altura o único acesso Inglês ao continente.
Bonaparte começou por enviar seu general Junot a Lisboa com a missão de dar um ultimato a D. João, para que proibisse o acesso dos ingleses a quaisquer portos controlados por Portugal. Além disso, deveria expulsar todos os cidadãos ingleses de seu território. O príncipe regente tinha consciência de que o comércio do país se sentava sobre o acesso privilegiado ao mercado britânico. Cumprir aquelas ordens seria a ruína econômica do país.

Diante da recusa de D. João, o mesmo Junot foi enviado novamente a Portugal, agora liderando uma tropa de 30 mil homens. Os planos franceses estabeleciam que Portugal seria extinto: o norte seria uma colônia francesa e o sul, anexado pela Espanha.

O notável Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Talleyrand, aconselhou o embaixador português em Paris a sugerir D. João a tentar “um novo império de grandes dimensões, longe das convulsões do Velho Mundo”, no Brasil, por exemplo. Na Europa não teriam futuro.

As últimas ordens de D. João a seus súditos foi bem concisa: não façam resistência. Os soldados não deveriam deixar seus postos, exceto para manter a lei e a ordem.

Não se pode dizer que a partida dos Bragança causou tristeza em todos os lisboetas. Muitos dos mais destacados cidadãos se sentiram aliviados por verem aqueles governantes soberbos e autocráticos velejando para bem longe dali. Junot era até visto como um libertador, por alguns, especialmente os intelectuais.

Junot parecia ter dado um pontapé para uma nova era. Iniciou por um programa de reformas liberais: criou uma administração governamental eficiente, introduziu leis exigindo idoneidade financeira com os recursos públicos, exilou aristocratas acusados de desrespeito a direitos civis, alargou o ensino universal e gratuito, iniciou um programa de obras públicas, abrindo estradas e canais.

Mas Junot não tinha sensibilidade suficiente para manter o estado de lua de mel. Ordenou um desfile da vitória no coração de Lisboa, mandou arriar a bandeira portuguesa e erguer a bandeira da França. Exigiu três vivas a Napoleão, mas teve um absoluto silêncio como resposta.

À noite, ofereceu um banquete da vitória no Castelo São Jorge. Ao ouvir a multidão gritando do lado de fora “Viva Portugal. Morte à França”, mandou os soldados atirarem na multidão. Como a polícia se recusou a tal disparate, decretou que os 9 mil soldados do exército português fossem enviados à Russia para participar da tentativa de invasão do país, ao lado de Napoleão.   

Junot, agora duque de Abrantes, título que se concedeu, deu total liberdade a suas tropas, que sistematicamente roubaram e pilharam tudo o que puderam no país. Casas de aristocratas, igrejas, castelos, tudo era destruído ou roubado. Mesmo túmulos foram violados em busca de anéis e jóias enterrados com seus donos. Portugal viu-se espoliado de todo o seu valioso patrimônio artístico. Uma das preciosidades arruinadas foi um livro de receitas de monges. Um soldado pegou uma das folhas e enviou a sua mãe, na França. Ela apresentou ao famoso cozinheiro Auguste Escoffier. O prato descrito ensinava como cozinhar um faisão desossado com trufas em vinho do Porto, recheado de foie gras. Escoffier escreveu: “Foi talvez a única coisa boa que os franceses ganharam com a sua desastrosa campanha.”

Junot convocou soldados espanhóis para conterem uma revolta no Porto. Como não foram pagos, amotinaram-se e entraram em confronto como soldados franceses. Após algum tempo, era claro o completo descontrole sobre o território de Portugal.

Espiões ingleses se encarregaram de informar o primeiro-ministro inglês, duque de Portland, sobre a situação em terras lusitanas. Portland logo percebeu que havia chegado a hora de acabar com o bloqueio continental imposto pela França, que já durava 5 anos.

Primeiro os ingleses enviaram um navio e uma carta endereçada ao presidente da Câmara, incitando uma revolta civil, além de muito dinheiro para que se comprassem armas e munições. Depois enviaram o jovem comandante Sir Arthur Wellesley – futuro duque de Wellington – e 8 mil soldados. Desembarcaram no estuário do Mondego em agosto de 1808. Duas rápidas batalhas foram suficientes para fazer os franceses recuarem.

A rendição foi assinada contendo uma cláusula que custaria caro a Wellington: permitiu-se que os franceses saíssem levando consigo todo o produto da rapina que causaram em Portugal. Sem falar que o retorno se deu em barcos fornecidos pelos ingleses. A indignação foi grande na Inglaterra. Segundo um jornal: “Todos os corações britânicos se devem indignar com a degradação da honra do país.” Wellington teve de se retirar para sua Irlanda natal para escapar da sanha coletiva contra sua atitude. Chegou mesmo a ser julgado por um Tribunal de guerra, onde foi inocentado.

Ainda hoje é patente o ressentimento português pelo despojo de suas riquezas culturais, nunca indenizadas por franceses ou ingleses.

Wellington foi enviado de volta a Portugal em 1809. Estava em companhia de William Carr, futuro Lord Beresford. Este fora nomeado por D. João, em carta redigida no Rio de Janeiro, comandante do exército português.

Primeiro se encarregaram de expulsar o general francês Soult da cidade do Porto, que havia tomado pouco antes. Depois, Wellington o perseguiu até a França.

No retorno, prepararam o terreno, em Lisboa, para a enorme batalha que previam ter contra os franceses. Fortificaram a cidade com um esquema batizado de Linhas de Torres Vedras, guarnecida por 30 mil soldados portugueses.

O grande dia se deu em outubro, quando o general francês apostou com um exército de 65 mil soldados franceses e 10 mil espanhóis. Massena não conseguiu sequer se aproximar das linhas de defesa formadas por ingleses e portugueses. Apenas por doenças e fome, o exército de Massena ficou reduzido a 45 mil homens.   

Ao se retirar, Massena deu início a uma perseguição que só terminariam em Toulouse. Foi esse o golpe que levou à famosa batalha de Waterloo.  

A vitória contra os franceses não levou os portugueses a retomarem o controle sobre seu país. Lord Beresford foi nomeado chefe do conselho de regentes. Estava-se sob uma ditadura britânica, que se mostraria arrogante e até desumana. Portugueses discordantes foram presos e executados.

Suas atitudes soberbas levaram a uma revolta no Porto, em 1820. Beresford se viu obrigado a deixar o país em direção ao Rio de Janeiro, onde buscou conselhos junto a D. João. No retorno, tentou desembarcar em Lisboa, mas foi impedido de sair do navio por uma multidão de ânimo acirrado. Voltou à Inglaterra e não obteve apoio para que se enviasse qualquer força extra para Portugal.

Em janeiro seguinte, ocorreu eleições em Portugal, quando foi eleito um conselho de governo. D. João, vítima de um golpe de Estado no Brasil, teve de retornar a Portugal. Na sua chegada, foi obrigado a assentir a uma Constituição liberal, caso desejasse reassumir o trono.

D. João morreu cinco anos após, época em que seu filho D. Pedro ocupava o trono de imperador do Brasil – e não demonstrava qualquer desejo se retornar a Lisboa. Pedro nomeou sua filha, Maria da Glória, que tinha apenas sete anos então, rainha de Portugal. O regente foi seu irmão, D. Miguel, que contava 24 anos.
Miguel vivera sua vida toda em Viena, respirando ares absolutistas da Áustria, Rússia e Prússia. Eram todos inimigos ferrenhos do liberalismo. Ainda em Viena recebera uma cópia da Constituição liberal portuguesa. Detestou o que leu.

Ainda na Catedral de Lisboa, fez piada do púlpito com a Carta. Disse que a juraria, não sobra a Bíblia, mas sobre o romance Os Burros.

A mãe de Miguel, D. Carlota Joaquina, era uma espanhola que igualmente odiava os ventos liberais que se abatiam sobre a Europa. Reuniu-se com seu filho em torno de um Conselho extremamente reacionário. Chegaram a executar 150 pessoas que consideravam inimigos de sua linha política e detiveram milhares pelo mesmo motivo.

Um grupo de liberais, incluindo militares de alto coturno, fugiu para a Galiza e, dali, partiram para Londres. Os entreveros com os ingleses levaram ao seu não recebimento pela Corte inglesa. Mas conseguiram um empréstimo de 2 milhões de libras de judeus espanhóis refugiados em Londres – pagando estratosféricos 14% de juros.

Em 1832, D. Pedro deixou o Brasil, onde se metera em crises políticas por suas atitudes autoritárias, e partiu para o Açores, onde se encontrou com os dissidentes liberais que tinham estado na Inglaterra.
Rumaram para o Porto, onde enfrentaram as tropas de Miguel. Ganharam rapidamente a disputa, mas as tropas miguelistas os sitiaram ferozmente. Os habitantes do Porto, apesar de verem sua cidade sendo praticamente demolida, continuaram apoiando D. Pedro.

Uma epidemia de cólera se espalhou pelas tropas miguelistas, que desertaram rapidamente. Uma parte da tropa se lançou a saques intensos contra diversas cidades, especialmente Coimbra. O duque da Terceira, apoiador dos liberais, se juntou às tropas de Charles Napier e rumaram para Lisboa. Avistando navios da marinha miguelista, venceram rapidamente e aprisionaram 5 navios. Subiram pelo Tejo e bombardearam Lisboa. Miguel ainda estava no Porto; suas tropas em Lisboa fugiram para Santarém. A batalha final foi encarniçada, mas Miguel saiu derrotado.

Após a capitulação, Miguel se retirou para Évora. Lá ainda tentou esboçar uma resistência, mas fracassou. Assinada a rendição, foi despachado para Gênova. Algum tempo após, regressou a Viena, onde quedou esquecido pelo resto de sua vida.

D. Pedro assumiu o cargo de regente da filha D. Maria da Glória, tornada rainha após a morte do pai, quando tinha 15 anos. Iniciou um reinado liberal, embora as condições iniciais fossem degradantes: cidades destruídas, Tesouro vazio, famílias ressentidas e divididas... e uma dívida externa avantajada.

A saída encontrada foi o fim das Ordens religiosas, o confisco de suas terras e sua venda posterior em leilões. Eram tantas as terras que o preço dos bens caiu vertiginosamente, o que rendeu poucos recursos para o país.

Em lugar dos antigos monges, surgiu uma nova classe de proprietários, que levou o liberal escritor Almeida Garrett a declarar que era mais perniciosa ao país do que os monges e freiras que tinham substituído.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “A primeira aldeia global”

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