“Não vá tão depressa! O povo vai pensar que estamos a fugir.”
Com essas palavras, gritadas pela dama de companhia da rainha D. Maria, que se
encontrava atada e amordaçada ao seu lado, ao seu cocheiro, a autoridade máxima
de Portugal e sua família deixavam o reino.
Católica ferrenha, D. Maria era atormentada por visões de
seu pai no inferno, punido pela sua cumplicidade com o Marquês de Pombal em sua
perseguição frenética a membros da Igreja. Procurou desfazer grande parte das
medidas tomadas pelo velho primeiro-ministro: mandou regressarem a seus países
acadêmicos, técnicos e peritos trazidos por seu pai; professores competentes
foram despedidos e substituídos por frades semi-analfabetos.
Aos 57 anos, D Maria fora declarada oficialmente mentalmente
incapaz. O príncipe João, seu filho, regente da nação, também se juntou à fuga
para o Brasil. O exército de Napoleão já adentrava Lisboa. A escolta inglesa já
se encontrava a postos para acompanhar a família Bragança, funcionários reais,
membros da corte e milhares de cidadãos ao Rio de Janeiro. O preço da proteção
britânica foi a cessão do incrivelmente lucrativo comércio com o Brasil.
Após a Revolução francesa, todas as famílias reais européias
viviam com calafrios de perderem seus pescoços. Com os Bragança não foi
diferente. Impuseram uma censura absoluta a jornais estrangeiros, impediram
publicação de qualquer coisa que falasse em França, Paris e pessoas eram presas
apenas por comentarem os últimos acontecimentos em França. Visitantes
estrangeiros deveriam indicar um residente que se responsabilizasse por seus
atos.
Napoleão, quem se apoderou do poder ao cabo da Revolução,
por volta de 1807 tinha conquistado praticamente todo o sul da Europa, exceto
Portugal, que era na altura o único acesso Inglês ao continente.
Bonaparte começou por enviar seu general Junot a Lisboa com
a missão de dar um ultimato a D. João, para que proibisse o acesso dos ingleses
a quaisquer portos controlados por Portugal. Além disso, deveria expulsar todos
os cidadãos ingleses de seu território. O príncipe regente tinha consciência de
que o comércio do país se sentava sobre o acesso privilegiado ao mercado
britânico. Cumprir aquelas ordens seria a ruína econômica do país.
Diante da recusa de D. João, o mesmo Junot foi enviado
novamente a Portugal, agora liderando uma tropa de 30 mil homens. Os planos
franceses estabeleciam que Portugal seria extinto: o norte seria uma colônia
francesa e o sul, anexado pela Espanha.
O notável Ministro dos Negócios Estrangeiros francês,
Talleyrand, aconselhou o embaixador português em Paris a sugerir D. João a
tentar “um novo império de grandes dimensões, longe das convulsões do Velho
Mundo”, no Brasil, por exemplo. Na Europa não teriam futuro.
As últimas ordens de D. João a seus súditos foi bem concisa:
não façam resistência. Os soldados não deveriam deixar seus postos, exceto para
manter a lei e a ordem.
Não se pode dizer que a partida dos Bragança causou tristeza
em todos os lisboetas. Muitos dos mais destacados cidadãos se sentiram
aliviados por verem aqueles governantes soberbos e autocráticos velejando para
bem longe dali. Junot era até visto como um libertador, por alguns, especialmente
os intelectuais.
Junot parecia ter dado um pontapé para uma nova era. Iniciou
por um programa de reformas liberais: criou uma administração governamental
eficiente, introduziu leis exigindo idoneidade financeira com os recursos
públicos, exilou aristocratas acusados de desrespeito a direitos civis, alargou
o ensino universal e gratuito, iniciou um programa de obras públicas, abrindo
estradas e canais.
Mas Junot não tinha sensibilidade suficiente para manter o
estado de lua de mel. Ordenou um desfile da vitória no coração de Lisboa,
mandou arriar a bandeira portuguesa e erguer a bandeira da França. Exigiu três
vivas a Napoleão, mas teve um absoluto silêncio como resposta.
À noite, ofereceu um banquete da vitória no Castelo São
Jorge. Ao ouvir a multidão gritando do lado de fora “Viva Portugal. Morte à
França”, mandou os soldados atirarem na multidão. Como a polícia se recusou a
tal disparate, decretou que os 9 mil soldados do exército português fossem
enviados à Russia para participar da tentativa de invasão do país, ao lado de
Napoleão.
Junot, agora duque de Abrantes, título que se concedeu, deu
total liberdade a suas tropas, que sistematicamente roubaram e pilharam tudo o
que puderam no país. Casas de aristocratas, igrejas, castelos, tudo era
destruído ou roubado. Mesmo túmulos foram violados em busca de anéis e jóias enterrados
com seus donos. Portugal viu-se espoliado de todo o seu valioso patrimônio
artístico. Uma das preciosidades arruinadas foi um livro de receitas de monges.
Um soldado pegou uma das folhas e enviou a sua mãe, na França. Ela apresentou
ao famoso cozinheiro Auguste Escoffier. O prato descrito ensinava como cozinhar
um faisão desossado com trufas em vinho do Porto, recheado de foie gras.
Escoffier escreveu: “Foi talvez a única coisa boa que os franceses ganharam com
a sua desastrosa campanha.”
Junot convocou soldados espanhóis para conterem uma revolta
no Porto. Como não foram pagos, amotinaram-se e entraram em confronto como
soldados franceses. Após algum tempo, era claro o completo descontrole sobre o
território de Portugal.
Espiões ingleses se encarregaram de informar o
primeiro-ministro inglês, duque de Portland, sobre a situação em terras
lusitanas. Portland logo percebeu que havia chegado a hora de acabar com o
bloqueio continental imposto pela França, que já durava 5 anos.
Primeiro os ingleses enviaram um navio e uma carta
endereçada ao presidente da Câmara, incitando uma revolta civil, além de muito
dinheiro para que se comprassem armas e munições. Depois enviaram o jovem
comandante Sir Arthur Wellesley – futuro duque de Wellington – e 8 mil
soldados. Desembarcaram no estuário do Mondego em agosto de 1808. Duas rápidas
batalhas foram suficientes para fazer os franceses recuarem.
A rendição foi assinada contendo uma cláusula que custaria caro
a Wellington: permitiu-se que os franceses saíssem levando consigo todo o
produto da rapina que causaram em Portugal. Sem falar que o retorno se deu em
barcos fornecidos pelos ingleses. A indignação foi grande na Inglaterra.
Segundo um jornal: “Todos os corações britânicos se devem indignar com a
degradação da honra do país.” Wellington teve de se retirar para sua Irlanda
natal para escapar da sanha coletiva contra sua atitude. Chegou mesmo a ser julgado
por um Tribunal de guerra, onde foi inocentado.
Ainda hoje é patente o ressentimento português pelo despojo
de suas riquezas culturais, nunca indenizadas por franceses ou ingleses.
Wellington foi enviado de volta a Portugal em 1809. Estava
em companhia de William Carr, futuro Lord Beresford. Este fora nomeado por D.
João, em carta redigida no Rio de Janeiro, comandante do exército português.
Primeiro se encarregaram de expulsar o general francês Soult
da cidade do Porto, que havia tomado pouco antes. Depois, Wellington o perseguiu
até a França.
No retorno, prepararam o terreno, em Lisboa, para a enorme
batalha que previam ter contra os franceses. Fortificaram a cidade com um
esquema batizado de Linhas de Torres Vedras, guarnecida por 30 mil soldados
portugueses.
O grande dia se deu em outubro, quando o general francês
apostou com um exército de 65 mil soldados franceses e 10 mil espanhóis.
Massena não conseguiu sequer se aproximar das linhas de defesa formadas por
ingleses e portugueses. Apenas por doenças e fome, o exército de Massena ficou
reduzido a 45 mil homens.
Ao se retirar, Massena deu início a uma perseguição que só
terminariam em Toulouse. Foi esse o golpe que levou à famosa batalha de
Waterloo.
A vitória contra os franceses não levou os portugueses a
retomarem o controle sobre seu país. Lord Beresford foi nomeado chefe do conselho
de regentes. Estava-se sob uma ditadura britânica, que se mostraria arrogante e
até desumana. Portugueses discordantes foram presos e executados.
Suas atitudes soberbas levaram a uma revolta no Porto, em
1820. Beresford se viu obrigado a deixar o país em direção ao Rio de Janeiro,
onde buscou conselhos junto a D. João. No retorno, tentou desembarcar em Lisboa,
mas foi impedido de sair do navio por uma multidão de ânimo acirrado. Voltou à
Inglaterra e não obteve apoio para que se enviasse qualquer força extra para
Portugal.
Em janeiro seguinte, ocorreu eleições em Portugal, quando
foi eleito um conselho de governo. D. João, vítima de um golpe de Estado no
Brasil, teve de retornar a Portugal. Na sua chegada, foi obrigado a assentir a
uma Constituição liberal, caso desejasse reassumir o trono.
D. João morreu cinco anos após, época em que seu filho D.
Pedro ocupava o trono de imperador do Brasil – e não demonstrava qualquer
desejo se retornar a Lisboa. Pedro nomeou sua filha, Maria da Glória, que tinha
apenas sete anos então, rainha de Portugal. O regente foi seu irmão, D. Miguel,
que contava 24 anos.
Miguel vivera sua vida toda em Viena, respirando ares
absolutistas da Áustria, Rússia e Prússia. Eram todos inimigos ferrenhos do
liberalismo. Ainda em Viena recebera uma cópia da Constituição liberal
portuguesa. Detestou o que leu.
Ainda na Catedral de Lisboa, fez piada do púlpito com a
Carta. Disse que a juraria, não sobra a Bíblia, mas sobre o romance Os Burros.
A mãe de Miguel, D. Carlota Joaquina, era uma espanhola que
igualmente odiava os ventos liberais que se abatiam sobre a Europa. Reuniu-se
com seu filho em torno de um Conselho extremamente reacionário. Chegaram a
executar 150 pessoas que consideravam inimigos de sua linha política e detiveram
milhares pelo mesmo motivo.
Um grupo de liberais, incluindo militares de alto coturno,
fugiu para a Galiza e, dali, partiram para Londres. Os entreveros com os
ingleses levaram ao seu não recebimento pela Corte inglesa. Mas conseguiram um
empréstimo de 2 milhões de libras de judeus espanhóis refugiados em Londres –
pagando estratosféricos 14% de juros.
Em 1832, D. Pedro deixou o Brasil, onde se metera em crises
políticas por suas atitudes autoritárias, e partiu para o Açores, onde se
encontrou com os dissidentes liberais que tinham estado na Inglaterra.
Rumaram para o Porto, onde enfrentaram as tropas de Miguel.
Ganharam rapidamente a disputa, mas as tropas miguelistas os sitiaram
ferozmente. Os habitantes do Porto, apesar de verem sua cidade sendo praticamente
demolida, continuaram apoiando D. Pedro.
Uma epidemia de cólera se espalhou pelas tropas miguelistas,
que desertaram rapidamente. Uma parte da tropa se lançou a saques intensos
contra diversas cidades, especialmente Coimbra. O duque da Terceira, apoiador
dos liberais, se juntou às tropas de Charles Napier e rumaram para Lisboa. Avistando
navios da marinha miguelista, venceram rapidamente e aprisionaram 5 navios. Subiram
pelo Tejo e bombardearam Lisboa. Miguel ainda estava no Porto; suas tropas em Lisboa
fugiram para Santarém. A batalha final foi encarniçada, mas Miguel saiu
derrotado.
Após a capitulação, Miguel se retirou para Évora. Lá ainda
tentou esboçar uma resistência, mas fracassou. Assinada a rendição, foi
despachado para Gênova. Algum tempo após, regressou a Viena, onde quedou
esquecido pelo resto de sua vida.
D. Pedro assumiu o cargo de regente da filha D. Maria da
Glória, tornada rainha após a morte do pai, quando tinha 15 anos. Iniciou um
reinado liberal, embora as condições iniciais fossem degradantes: cidades
destruídas, Tesouro vazio, famílias ressentidas e divididas... e uma dívida
externa avantajada.
A saída encontrada foi o fim das Ordens religiosas, o confisco
de suas terras e sua venda posterior em leilões. Eram tantas as terras que o
preço dos bens caiu vertiginosamente, o que rendeu poucos recursos para o país.
Em lugar dos antigos monges, surgiu uma nova classe de
proprietários, que levou o liberal escritor Almeida Garrett a declarar que era
mais perniciosa ao país do que os monges e freiras que tinham substituído.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A primeira aldeia global”
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