Após ter sido estatizada pelo Império Romano, a Igreja
Católica passou a ser a líder da moralidade no Ocidente. Os primeiros séculos
do cristianismo foram marcados pela oposição entre a moralidade pré-cristã e a
nova moralidade, cristã.
Por muitos milênios, o sexo era uma fonte de prazer a ser
celebrado: deuses do amor foram criados, festas regadas a vinho. Mesmo defendendo
as virtudes das matronas (típica dona de casa romana, dedicada à família e fiel
ao marido), o Império não havia restringido as liberdades sexuais, nem proibido
prostitutas, nem a manutenção de concubinas.
Agora, a religião disseminada por Paulo se opunha a qualquer
prazer sexual. Aos poucos, romanos iam abraçando os ideais da castidade, a restrição
do sexo ao casamento (e quando a esposa não estivesse menstruada), a condenação
do aborto e da bissexualidade. A crise
profunda vivida ao longo da decadência do Império ajudou sobremaneira nessa
conversão em massa. Povos cansados da pobreza e da violência tornavam-se
cristãos a um ritmo impressionante.
O resultado foi um “império da fé”, uma igreja única,
universal: daí o nome “católica”, termo derivado da palavra grega para única. Mas
seu crescimento, inevitavelmente levaria à sua cisão em seitas diversas. Era
necessário homogeneizar a interpretação da palavra de Deus, vedar textos que contradissessem
o cânone aceito – como os textos apócrifos.
O passo inicial para essa padronização foi o Concílio de
Nicéia, sob a batuta do imperador Constantino, em 325 d.C. Quatro padres se
destacaram nessas ocasiões, passando a serem referenciados como os “Doutores da
Igreja”: Ambrósio de Milão, Jerônimo de Estridão, Agostinho de Hipona e
Gregório Magno. Apesar de os assuntos abordados nesses encontros fossem os mais
variados, tudo o que dizia respeito aos “pecados da carne” recebeu o foco das atenções.
Seguindo a doutrina da “sexofobia” de Pàulo, agora até pensamentos poderiam
levar ao cometimento de pecados.
Ambrósio de Milão resumiu bem seu horror ao sexo: “Mesmo um
bom casamento é escravidão. O que, logo, será um casamento ruim?” Ambrósio só via
virtude na virgindade: virgem era aquela que tinha Deus por esposo. Se a
desgraça se abatera sobre o mundo por causa de uma mulher, Eva, fora salvo por
uma virgem, a virgem Maria...
Jerônimo é mais famoso como o tradutor da Bíblia do hebraico
e do grego para o latim. Ele repudiava o concubinato, encarado com normalidade
durante o Império, incentivava que as pessoas largassem tudo em nome de Cristo,
aconselhava as mães a oferecerem o primeiro filho a Deus, em sacrifício, e
pedia que as garotas mantivessem sua virgindade em casa, ainda que não pudessem
entrar para um convento. Sua aversão ao casamento era a mesma: “Eu somente
louvo o casamento por causa das virgens que produz. Colho a rosa do espinho, o
ouro da terra, a pérola da ostra.”
Mas suas críticas também alcançavam as virgens: “Note,
porém, que há também as virgens más. O Senhor diz que ‘qualquer que atentar
numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela.’ A
virgindade pode, portanto, perder-se até com um pensamento. Tais são as
virgens más; virgens de carne, mas não de espírito.”
Mas a Igreja acumulava poder, e com o poder vinha a luxúria.
Era inquestionável a decadência moral que atingia o clero, que praticava os
mesmos pecados dos aristocratas pagãos de outrora. Jerônimo ficava irado com os
clérigos que bajulavam as ricas viúvas romanas: “Pareciam mais noivos do que
religiosos. O clero, que deveria inspirar assombro com seus ensinamentos e
autoridade, beija essas senhoras na testa e, colocando as mãos para frente como
se para abençoar, cobra dinheiro pelas visitas.”
Mas o mais celebrado dos três Doutores foi Agostinho de
Hipona, mais tarde Santo Agostinho. Foi o pilar da Igreja cristã mais destacado
após Paulo. Foi ele quem trouxe o pensamento grego para o arcabouço teológico
da Igreja, ao adaptar a teoria da alma de Platão. Dividiu a alma em três: a
alma concupiscente, responsável pelo apetite sexual; a alma irascível, sede dos
sentimentos; e a alma racional, que controlava as outras duas. Era cedendo à concupiscência
da carne que o homem se afastava de Deus.
Mas Agostinho não nasceu santo. Em Confissões, sua
autobiografia, ele descreve seu processo de conversão. E seu maior esforço foi
despendido no sentido de superar seus instintos sexuais: “Desde a adolescência,
ardi em desejos de me satisfazer em coisas baixas, ousando entregar-me como
animal a vários e tenebrosos amores! Desgatou-se a beleza da minha alma e
apodreci aos Teus olhos.”
Agostinho teve de interromper seus estudos aos 16 anos, por
problemas financeiros de sua família. Foi quando, identificou, seus instintos
sexuais tomaram seu mente. Sua Mãe, Santa Mônica, tentava mantê-lo no caminho
de Deus, mas Agostinho insistia em desviar-se. Seu pai, adúltero confesso e
desabrido, mostrava orgulho por cada sinal de virilidade demonstrado pelo
filho. Passou a andar com outro homens e a se orgulhar de conquistas sexuais.
Aos trinta anos, tornou-se professor de retórica. Tinha uma
concubina desde os dezessete anos, com quem tinha um filho. Embora fosse algo
bastante comum, sua mãe não aceitava aquele arranjo e o obrigou a despacha a moça
para um convento na África. Depois, contraiu noivado com uma menina de apenas
10 anos. Mas o casamento só seria possível após ela completar doze anos.
Mas Agostinho era incontrolável naquele momento de sua vida.
Arranjou outra concubina e pronunciou uma de suas frases imortais, direcionada
a Deus: “Daí-me castidade e continência, porém não agora.”
Mas eis que a busca da verdade toma Agostinho, que a
encontra nas epístolas de Paulo. Na Páscoa de 387 d.C., foi à catedral de
Milão, onde foi batizado pelo bispo Ambrósio (de Milão, seu tutor na altura).
Convertido, agora cristão ferrenho, Agostinho partiu para a África, onde atuou
como monge. Estava agora magro, apático, e destituído de todo o seu patrimônio,
do qual abriu mão em nome dos pobres. Em Hipona, atualmente Argélia, construiu
um mosteiro. Após, foi nomeado bispo.
Ao longo de sua extensa obra, nenhum tema foi tão trabalhado
quanto o pecado original. O tema é antigo, veio do Antigo Testamento. A
história também é bastante conhecida: Adão recebe de Eva o fruto proibido da
árvore do conhecimento e o come; daí em diante os dois passam a ter o
conhecimento do bem e do mal, descobrem-se nus e se cobrem com uma tanga de
folhas de figueira. A desobediência custa ao casal a imortalidade e passam a
sentir dores. A mulher foi condenada a sofrer de dores do parto e a viver
subordinada ao homem; o homem foi condenado a viver do suor do próprio
trabalho: “do suor do teu rosto comerás o pão”.
O único acréscimo a essa história, dado pelos cristãos, foi
o nome: pecado original. Todos os humanos herdaram esse pecado e por ele estão
condenados a priori. É ele quem explica porque Deus deixa inocentes morrerem,
por exemplo (é tão inocente assim, ou carrega um pecado desde o nascimento?).
O mandamento divino “crescei e multiplicai-vos”, somado à
simples existência da mulher, quem Deus disse que deveria ser esposa do homem,
tornavam um tanto complexo encaixar o pecado da carne. Agostinho resolveu essa
contradição defendendo que, antes do pecado original, existia o desejo divino
de que os homens proliferassem na Terra. Mas, antes do pecado original, a
excitação dos órgãos sexuais ocorria por motivos racionais, pela razão! Isso é
o que está explícito em Cidade de Deus, sua monumental obra. A fecundação,
portanto, ocorreria desacompanhada da luxúria e da vergonha. Ao simples
pensamento “Vamos nos reproduzir?”, seguir-se-ia a copulação. Ter o pênis ereto
seria um processo físico como dar um passo adiante. Tudo feito, mas sem incorrer
na maldição dos sentidos.
Mas tudo isso só acontecia no Jardim do Éden. Mas de lá
fomos expulsos. Desde então o sexo passou a ser indissociável do pecado da
luxúria, e essa maldição é passada naturalmente, de geração em geração. Mas
havia um fim louvável possível para o ato sexual: procriação.
Portanto o casamento seria, segundo Agostinho, um
meio-de-campo: comunica um lado positivo (filhos, sacramento) com um lado
negativo (sexo, ainda que conjugal). O casamento era, assim, necessário para
trazer um tanto de razão a algo tão condenável, justamente por não ser
racional.
Já Gregório Magno procurou por um ponto final no sexo
casual: era pecado capital!
Rubem L. de F. Auto
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