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terça-feira, 12 de setembro de 2017

A INQUISIÇÃO E A QUEIMA DO FUTURO DE PORTUGAL




Até o final do século XV Portugal era o paraíso da tolerância na Europa. Os judeus haviam sido expulsos da Inglaterra no século XIII; da França, no século XIV e, posteriormente, da Alemanha, Polônia e Rússia. Na Suíça, centenas foram queimados em fogueiras. Nas cidades-estado italianas, foram permitidos permanecerem, porém em guetos, fora das muralhas das cidades. E não poderiam exercer atividades lucrativas, estavam privados de direitos civis e políticos, além de terem de pagar impostos escorchantes.

A exceção paradoxal era Roma, onde o papa permitiu-lhes o direito de permanecerem.

Os judeus portugueses eram chamados de sefarditas, que significa “ocidentais”. A primeira referência a eles foi num edito de 300 d.C. Crê-se que eram muito bem recebidos e aceitos pela sociedade da época.

Os benefícios trazidos pelos judeus foram muitos: dos primeiros livros impressos em Portugal, alguns foram escritos por judeus; tinham membros destacados na matemática, astronomia. Foram importantes para as primeiras viagens exploratórias. Por causa do seu modo de viver e pelos conhecimentos de línguas, eram frequentemente nomeados como embaixadores no estrangeiro, especialmente em países muçulmanos, onde eram mais bem aceitos do que os cristãos. Várias nações chegaram mesmo a imaginar que Portugal era uma nação judaica.

Os judeus eram até mesmo incentivados a trabalharem como ourives ou joalheiros. Chegaram a ter seus próprios juízes, haja vista seus costumes distintos.

Embora mantivesses suas leis alimentares e rezassem em sinagogas, a língua que usavam era o português e se vestiam de maneira bem parecida com as dos demais cidadãos. Alguns judeus tinham títulos de nobreza. Cristãos e judeus se visitavam reciprocamente nas datas festivo-religiosas.

A Academia Judaica de Lisboa produziu grandes médicos, botânicos, geógrafos, matemáticos, advogados e teólogos, além de escritores de ficção e poesia.

O fim dessa harmonia foi mais um dos efeitos nefastos do aumento da influência espanhola no país. Foram 60 anos – 3 gerações de reis espanhóis - do que se comumente chamou “cativeiro babilônico” de Portugal. Os judeus expulsos que retornaram após 1834 foram bem recebidos, mas os prejuízos a Portugal – e os respectivos ganhos absorvidos por Holanda e Inglaterra  – foram imensos.

Sob os reis católicos, Fernando e Isabel, os judeus da Espanha foram obrigados a se converterem. Muitos o fizeram, ainda que apenas da boca para fora.

Contudo, em 1478 foi instituída a Inquisição. Seu objetivo: investigar a sinceridade dos judeus convertidos. Nos oito anos seguintes, mais de 700 destes foram mortos na fogueira. Ficaram de fora os judeus que não se converteram.

Em 1480, os judeus foram proibidos de viverem entre os cristãos – só era permitido viverem em guetos. Em 1492, foram avisados que teriam apenas quatro meses para se converterem. A maioria preferiu se refugiar em Portugal.

Por seu turno, D. João de Portugal acolheu apenas 600 famílias com direito de residência permanente – mediante o pagamento de 10 mil cruzados por família. Os demais receberam visto de trânsito, pelo preço de 1 cruzado por mês, válido por 8 meses.

Cerca de 60 mil judeus castelhanos entraram no país. E é interessante notar que grande parte da resistência contra a entrada de um grande número de judeus partiu dos judeus ali já estabelecidos.

Os judeus que não deixaram Portugal foram considerados hereges e presos. Porém, logo que chegou ao trono, D. Manuel mandou libertá-los. No entanto, passo seguinte, pediu a mão de D. Isabel, filha de Fernando e Isabel, em casamento. Espera ascender ao trono espanhol futuramente, ou seus herdeiros. Os reis espanhóis gostaram a possibilidade, haja vista Portugal ser muito mais rico do que a Espanha naquela altura – embora tivesse 1/5 do tamanho do vizinho maior.

Mas foi imposta uma condição: D. Manuel deveria se livrar daqueles judeus todos. Mas D. Manuel era resistente àquela medida. Sabia que privaria seu país de alguns de seus mais valorosos cidadãos. Daí surgiu a ideia mirabolante de criar a categoria dos cristãos-novos. Por fim, por não ter tido a adesão esperada, mandou converter todos os judeus que conhecia à força, numa igreja, com água benta sendo jogada ao léu. Os pais que não permitiram que seus filhos fossem convertidos perderam a guarda das crianças.

Por fim, em 1497, por decreto, D. Manuel fez com que todos os judeus que viviam em Portugal fossem designados como cristãos-novos.

Pronto. Agora poderia casar com Isabel!

Mas a nova rainha era tão antissemita quanto seus pais. Exigiu que a Inquisição fosse instaurada em Portugal. O papa recusou a exigência, mas padres dominicanos vindos da Espanha iniciaram um movimento antissemita muito forte no país. Logo surgiram as primeiras chacinas de judeus e a destruição de seus bens.
D. Manuel ficou sensibilizado e mandou matar mais de 60 pessoas, entre eles muitos frades. Também mandou fechar o mosteiro dominicano. Por fim, proibiu a Inquisição de indagar acerca da fé das pessoas pelos 20 anos seguintes.

Importante notar que a Inquisição era dirigida a judeus, protestantes e muçulmanos, mas Portugal só contava com judeus, não tendo protestantes no seu seio. Os poucos muçulmanos lá residentes também não foram incomodados.

D. Manuel morreu em 1521. Sua proteção real aos judeus expirou onze anos após. Pelos anos seguintes, o papa se encarregou de prestar proteção aos cristãos-novos portugueses. Em 1547, os dominicanos espanhóis conseguiram que o Santo Ofício fosse reaberto, mas sem qualquer sucesso em seus intentos.
Porém, em 1580 Portugal caiu sob domínio espanhol, e D. Filipe conferiu poderes à Inquisição para que se financiasse mediante leilões de bens confiscados de hereges.

Nessa época, mais da metade dos grandes bancos comerciais de Portugal pertenciam a cristãos-novos. Dali em diante a Inquisição se tornou uma espécie de pilhagem de bens de terceiros e de distribuição de seus produtos aos seus membros. Até dívidas que as vítimas tivessem a receber eram cobradas pela Inquisição, após o confisco dos bens.

Os relatos das sessões de torturas eram feitos minuciosamente. Mas nem todas as vítimas eram judeus. Os homossexuais eram implacavelmente perseguidos, também. Os membros da Sociedade de Jesus, seus antagonistas, também eram perseguidos pela Inquisição.

Havia também os padres condenados por “quietismo”, isto é, por pregarem que o contato com Deus prescindia da igreja.

Dentre os mortos como cristãos-novos, a maioria eram mulheres, haja vista serem elas as responsáveis pela educação dos filhos e, portanto, pela permanência daquela religiosidade indesejada, ao longo das gerações.
As prisões lançavam mão de informantes, conhecidos como “familiares”. Não havia lugar que não contasse com pelo menos um dedo-duro da Inquisição.

Os presos eram executados em autos-de-fé, que se realizavam em Coimbra e Évora, com a presença da família real, nobres e clérigos na praça principal desses locais. Também eram comuns penas de desterra para a África ou para a América do Sul. 

Os judeus que foram desterrados ou escaparam para o Brasil se radicaram no Recife, que vivia a “febre dos diamantes”. Naquele tempo bastava escavar a água que caia de uma cachoeira para achar pedras preciosas. Logo os judeus estavam trabalhando com exportação de diamantes. Montaram escritórios comerciais em Nova Amsterdam, mais de um século antes de se tornar Nova York.

Roma foi outro destino procurado pelos judeus, o qeu levou a problemas no seio da comunidade judaica local. A Turquia também se tornou destino disputado. O sultão ofereceu proteção oficial a todos eles. Era claro o fato de que países muçulmanos eram mais seguros para os judeus do que países cristãos.

Os judeus que se refugiaram na Turquia levaram consigo o tabaco, que logo virou produto de exportação principal do país. Também levaram tecelagens e fábricas de munição.

Por sua vez, os mercadores e banqueiros cristãos-novos tiveram como destino a cidade de Antuérpia, que era naquele tempo a cidade e o porto mais importantes do norte da Europa.  Também caíra sob jugo espanhol. O catolicismo era obrigatório, enquanto o judaísmo era absolutamente proibido. Porém, não havia Inquisição instalada. Além disso os cristãos-novos estavam protegidos contra investigações pessoais.

Após Portugal, sob domínio espanhol, expulsar os comerciantes ingleses e holandeses, Antuérpia passara a maior centro europeus de comércio de especiarias e de pedras preciosas, tudo saído diretamente do Império Português.

A família de banqueiros cristãos-novos mais importante a trocar a praça de Lisboa por Antuérpia foi a família Mendes. Tinham membros espalhados por todas as colônias portuguesas: Moisés Mendes era comerciante em Formosa; Álvaro Mendes, joalheiro em Goa;Graça Mendes, banqueiro do sultão na Turquia (também o era do rei da Inglaterra, apesar de os judeus terem sido expulsos dali). Aliás, foram os Mendes que pagaram as despesas para que Guilherme IV assumisse o trono inglês. Essa ajuda rendeu-lhes a abolição da perseguição aos judeus ingleses.

O patrono dos Mendes era Diogo Mendes, sediado em Antuérpia. Ele detinha praticamente o monopólio comercial de especiarias, medicamentos e pedras preciosas, nas regiões do Báltico, Alemanha, Europa do leste e Inglaterra.

Esses cristãos-novos fizeram, a partir de Antuérpia, com Lisboa e Cádis, as cidades comerciais mais importantes de então, o mesmo que Portugal havia feito com as cidades italianas de Veneza, Florença e Gênova: quebrou-lhes o monopólio comercial e deixou-lhes escancarado um futuro de decadência.
Foi esse o motivo para, em 1564, o duque de Alba, governante espanhol de Antuérpia, suspender a imunidade concedida aos cristãos-novos da cidade.

Esse acirramento dos ânimos pôs Amsterdam no centro das atenções. Então governada por protestantes holandeses, após terem derrotado os ocupantes espanhóis em uma longa guerra, tornou-se destino dos judeus que fugiam de Antuérpia. A coincidência de histórias de perseguições, primeiro a protestantes, depois a judeus, aproximou os dois grupos. Mediante promessas de trazer grandes riquezas à região, solicitaram autorização para permanecerem na cidade e exercerem seus cultos em paz. A proposta veia  calhar, haja vista os cofres públicos estarem esvaziados após anos de conflitos.

Já em 1620, Amsterdam contava com quatro sinagogas. Os judeus na Turquia presentearam seus parceiros holandeses com os primeiros bolbos de tulipas a chegarem ao país. Os judeus também levaram o comércio de diamantes e a arte de lapidar os mesmos a Amsterdam – ainda hoje a Holanda é referência nessas atividades.

Ainda nesse sentido, os judeus levaram o tabaco à Holanda, a partir de Cuba, e fundaram a indústria holandesa de charutos. O mesmo foi feito com o chocolate das Índias Ocidentais, que fez nascer a indústria do chocolate holandesa.

Essas foram algumas das contribuições judias à Holanda protestante.

Foi também na Holanda, onde puderam praticar seus cultos sem problemas, que muitos judeus viram pela primeira vez o Talmude. Até então, o único livro que usavam era o Pentateuco (Antigo Testamento).
Mas a crença que se disseminou mesmo na Holanda, que unia judeus e protestantes, era a de que roubar e pilhar Portugal, ocupado pelos espanhóis, não era pecado. Juntos, financiavam uma frota que capturava mais de 100 navios mercantes portugueses todos os anos.

Até que o inesperado aconteceu: num episódio conhecido como “mapa de Linshoten”, todos os segredos comerciais portugueses foram revelados aos holandeses. Foi o início da flagrante derrocada portuguesa e sua superação pela Holanda.

O jovem Linshoten, culto e sagaz, deixou seu país e chegou a Lisboa em 1576. Tornou-se secretário pessoal do novo arcebispo da Ásia e da África Oriental, frei João Vicente da Fonseca. Logo se puseram a caminho de Goa.

Linshoten investiu 20 anos a serviço do frei. Durante esse período, organizou um registro secreto de tudo o que descobria sobre as rotas comerciais do Império português. Roubou exemplares de mapas que indicavam as rotas que partiam da Europa. Também desvendou as rotas entre as cidades comerciais. Fez anotações à mão, deu instruções pormenorizadas. Mesmo o clima e as tábuas de marés não foram esquecidos. A partir de relatos próprios e de terceiros, descreveu as pessoas, seus costumes, clima local, condições sanitárias, tipos de mercadorias e produtos manufaturados comercializados, com indicações de preço, quantidade e qualidade.

Retornou à Holanda e publicou tudo o que registrara, em 1596. Quase que na sequência, o comandante Cornelius Hoofman partiu para Java com sua frota. Ali findou a primeira base holandesa na Ásia. Nos cinco anos seguintes partiram dali mais de 40 navios holandeses lotados de especiarias.

Ainda durante o período de domínio espanhol, Portugal perdeu completamente sua competitividade. Os navios portugueses eram agora grandes demais, difíceis e manobrar. Em certos casos, mais da metade dos navios que partiam em direção à Ásia retornavam com problemas antes de chegarem ao destino.

Um dos fatores prejudiciais a Portugal era o fato de a tripulação de seus navios ser, sobretudo, de escravos: subalimentados, desmotivados, doentes e loucos por acharem uma oportunidade de escaparem. Além disso, a derrota da Invencível Armada espanhola para Sir Francis Drake dizimou os navios portugueses, que foram enviados a Plymouth.

Os holandeses usaram seus navios novos, rápidos e estáveis, para assaltarem barcos portugueses a caminho de Goa, Macau e Nagasaki. Expulsaram os portugueses do Ceilão, de Formosa (Taiwan), das ilhas das Especiairias, de Malaca e ainda do Malabar.

A história somente se diferenciou no Japão. Os holandeses não conseguiram expulsar os portugueses dali, pois estavam firmemente instalados ali. Mas o sucesso das conversões de japoneses, finalmente, chamou a atenção da aristocracia e dos monges xintoístas, distraídos pela guerra civil. Logo perceberam que essas conversões escondiam um propósito maior: conquistar o Japão.

Em bula de 1585, os papa deferiu o direito sobre o Japão a Portugal. A Espanha foi agraciada com as Filipinas (que usavam para entrar no Japão clandestinamente). A prisão de um navio espanhol encalhado na costa japonesa, carregado com 600 mil moedas de prata, rendeu uma declaração bastante sincera do comandante: “Começam por enviar padres, que induzem o povo a abraçar a nossa religião. Quando os progressos alcançados forem consideráveis, enviam as tropas, que, controlando os convertidos, torna todo o resto mais fácil”.

A resposta japonesa foi cruel: franciscanos espanhóis, jesuítas e cristãos japoneses foram executados por crucificação. Mandaram que os padres estrangeiros fossem deportados. Cerca de 200 mil japoneses convertidos foram vítimas de castigos, a ponto de quase morrerem. Cerca de 1.400 foram crucificados. A igreja cristã fundada pelos jesuítas no Japão viveu os 200 anos seguintes na clandestinidade. Esse fato só mudou em 1867.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A primeira aldeia global”

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