Até o final do século XV Portugal era o paraíso da
tolerância na Europa. Os judeus haviam sido expulsos da Inglaterra no século
XIII; da França, no século XIV e, posteriormente, da Alemanha, Polônia e
Rússia. Na Suíça, centenas foram queimados em fogueiras. Nas cidades-estado
italianas, foram permitidos permanecerem, porém em guetos, fora das muralhas
das cidades. E não poderiam exercer atividades lucrativas, estavam privados de
direitos civis e políticos, além de terem de pagar impostos escorchantes.
A exceção paradoxal era Roma, onde o papa permitiu-lhes o
direito de permanecerem.
Os judeus portugueses eram chamados de sefarditas, que
significa “ocidentais”. A primeira referência a eles foi num edito de 300 d.C.
Crê-se que eram muito bem recebidos e aceitos pela sociedade da época.
Os benefícios trazidos pelos judeus foram muitos: dos
primeiros livros impressos em Portugal, alguns foram escritos por judeus;
tinham membros destacados na matemática, astronomia. Foram importantes para as
primeiras viagens exploratórias. Por causa do seu modo de viver e pelos
conhecimentos de línguas, eram frequentemente nomeados como embaixadores no
estrangeiro, especialmente em países muçulmanos, onde eram mais bem aceitos do
que os cristãos. Várias nações chegaram mesmo a imaginar que Portugal era uma
nação judaica.
Os judeus eram até mesmo incentivados a trabalharem como
ourives ou joalheiros. Chegaram a ter seus próprios juízes, haja vista seus
costumes distintos.
Embora mantivesses suas leis alimentares e rezassem em sinagogas,
a língua que usavam era o português e se vestiam de maneira bem parecida com as
dos demais cidadãos. Alguns judeus tinham títulos de nobreza. Cristãos e judeus
se visitavam reciprocamente nas datas festivo-religiosas.
A Academia Judaica de Lisboa produziu grandes médicos,
botânicos, geógrafos, matemáticos, advogados e teólogos, além de escritores de
ficção e poesia.
O fim dessa harmonia foi mais um dos efeitos nefastos do
aumento da influência espanhola no país. Foram 60 anos – 3 gerações de reis
espanhóis - do que se comumente chamou “cativeiro babilônico” de Portugal. Os
judeus expulsos que retornaram após 1834 foram bem recebidos, mas os prejuízos
a Portugal – e os respectivos ganhos absorvidos por Holanda e Inglaterra – foram imensos.
Sob os reis católicos, Fernando e Isabel, os judeus da
Espanha foram obrigados a se converterem. Muitos o fizeram, ainda que apenas da
boca para fora.
Contudo, em 1478 foi instituída a Inquisição. Seu objetivo:
investigar a sinceridade dos judeus convertidos. Nos oito anos seguintes, mais
de 700 destes foram mortos na fogueira. Ficaram de fora os judeus que não se
converteram.
Em 1480, os judeus foram proibidos de viverem entre os
cristãos – só era permitido viverem em guetos. Em 1492, foram avisados que
teriam apenas quatro meses para se converterem. A maioria preferiu se refugiar
em Portugal.
Por seu turno, D. João de Portugal acolheu apenas 600
famílias com direito de residência permanente – mediante o pagamento de 10 mil
cruzados por família. Os demais receberam visto de trânsito, pelo preço de 1
cruzado por mês, válido por 8 meses.
Cerca de 60 mil judeus castelhanos entraram no país. E é
interessante notar que grande parte da resistência contra a entrada de um
grande número de judeus partiu dos judeus ali já estabelecidos.
Os judeus que não deixaram Portugal foram considerados
hereges e presos. Porém, logo que chegou ao trono, D. Manuel mandou
libertá-los. No entanto, passo seguinte, pediu a mão de D. Isabel, filha de
Fernando e Isabel, em casamento. Espera ascender ao trono espanhol futuramente,
ou seus herdeiros. Os reis espanhóis gostaram a possibilidade, haja vista
Portugal ser muito mais rico do que a Espanha naquela altura – embora tivesse
1/5 do tamanho do vizinho maior.
Mas foi imposta uma condição: D. Manuel deveria se livrar
daqueles judeus todos. Mas D. Manuel era resistente àquela medida. Sabia que
privaria seu país de alguns de seus mais valorosos cidadãos. Daí surgiu a ideia
mirabolante de criar a categoria dos cristãos-novos. Por fim, por não ter tido
a adesão esperada, mandou converter todos os judeus que conhecia à força, numa
igreja, com água benta sendo jogada ao léu. Os pais que não permitiram que seus
filhos fossem convertidos perderam a guarda das crianças.
Por fim, em 1497, por decreto, D. Manuel fez com que todos
os judeus que viviam em Portugal fossem designados como cristãos-novos.
Pronto. Agora poderia casar com Isabel!
Mas a nova rainha era tão antissemita quanto seus pais.
Exigiu que a Inquisição fosse instaurada em Portugal. O papa recusou a
exigência, mas padres dominicanos vindos da Espanha iniciaram um movimento
antissemita muito forte no país. Logo surgiram as primeiras chacinas de judeus
e a destruição de seus bens.
D. Manuel ficou sensibilizado e mandou matar mais de 60 pessoas,
entre eles muitos frades. Também mandou fechar o mosteiro dominicano. Por fim,
proibiu a Inquisição de indagar acerca da fé das pessoas pelos 20 anos
seguintes.
Importante notar que a Inquisição era dirigida a judeus,
protestantes e muçulmanos, mas Portugal só contava com judeus, não tendo
protestantes no seu seio. Os poucos muçulmanos lá residentes também não foram
incomodados.
D. Manuel morreu em 1521. Sua proteção real aos judeus
expirou onze anos após. Pelos anos seguintes, o papa se encarregou de prestar
proteção aos cristãos-novos portugueses. Em 1547, os dominicanos espanhóis
conseguiram que o Santo Ofício fosse reaberto, mas sem qualquer sucesso em seus
intentos.
Porém, em 1580 Portugal caiu sob domínio espanhol, e D.
Filipe conferiu poderes à Inquisição para que se financiasse mediante leilões
de bens confiscados de hereges.
Nessa época, mais da metade dos grandes bancos comerciais de
Portugal pertenciam a cristãos-novos. Dali em diante a Inquisição se tornou uma
espécie de pilhagem de bens de terceiros e de distribuição de seus produtos aos
seus membros. Até dívidas que as vítimas tivessem a receber eram cobradas pela
Inquisição, após o confisco dos bens.
Os relatos das sessões de torturas eram feitos
minuciosamente. Mas nem todas as vítimas eram judeus. Os homossexuais eram
implacavelmente perseguidos, também. Os membros da Sociedade de Jesus, seus
antagonistas, também eram perseguidos pela Inquisição.
Havia também os padres condenados por “quietismo”, isto é,
por pregarem que o contato com Deus prescindia da igreja.
Dentre os mortos como cristãos-novos, a maioria eram
mulheres, haja vista serem elas as responsáveis pela educação dos filhos e,
portanto, pela permanência daquela religiosidade indesejada, ao longo das
gerações.
As prisões lançavam mão de informantes, conhecidos como
“familiares”. Não havia lugar que não contasse com pelo menos um dedo-duro da
Inquisição.
Os presos eram executados em autos-de-fé, que se realizavam
em Coimbra e Évora, com a presença da família real, nobres e clérigos na praça
principal desses locais. Também eram comuns penas de desterra para a África ou
para a América do Sul.
Os judeus que foram desterrados ou escaparam para o Brasil
se radicaram no Recife, que vivia a “febre dos diamantes”. Naquele tempo
bastava escavar a água que caia de uma cachoeira para achar pedras preciosas.
Logo os judeus estavam trabalhando com exportação de diamantes. Montaram
escritórios comerciais em Nova Amsterdam, mais de um século antes de se tornar
Nova York.
Roma foi outro destino procurado pelos judeus, o qeu levou a
problemas no seio da comunidade judaica local. A Turquia também se tornou
destino disputado. O sultão ofereceu proteção oficial a todos eles. Era claro o
fato de que países muçulmanos eram mais seguros para os judeus do que países
cristãos.
Os judeus que se refugiaram na Turquia levaram consigo o
tabaco, que logo virou produto de exportação principal do país. Também levaram
tecelagens e fábricas de munição.
Por sua vez, os mercadores e banqueiros cristãos-novos
tiveram como destino a cidade de Antuérpia, que era naquele tempo a cidade e o porto
mais importantes do norte da Europa. Também caíra sob jugo espanhol. O catolicismo
era obrigatório, enquanto o judaísmo era absolutamente proibido. Porém, não
havia Inquisição instalada. Além disso os cristãos-novos estavam protegidos
contra investigações pessoais.
Após Portugal, sob domínio espanhol, expulsar os
comerciantes ingleses e holandeses, Antuérpia passara a maior centro europeus
de comércio de especiarias e de pedras preciosas, tudo saído diretamente do
Império Português.
A família de banqueiros cristãos-novos mais importante a
trocar a praça de Lisboa por Antuérpia foi a família Mendes. Tinham membros
espalhados por todas as colônias portuguesas: Moisés Mendes era comerciante em
Formosa; Álvaro Mendes, joalheiro em Goa;Graça Mendes, banqueiro do sultão na
Turquia (também o era do rei da Inglaterra, apesar de os judeus terem sido
expulsos dali). Aliás, foram os Mendes que pagaram as despesas para que
Guilherme IV assumisse o trono inglês. Essa ajuda rendeu-lhes a abolição da
perseguição aos judeus ingleses.
O patrono dos Mendes era Diogo Mendes, sediado em Antuérpia.
Ele detinha praticamente o monopólio comercial de especiarias, medicamentos e
pedras preciosas, nas regiões do Báltico, Alemanha, Europa do leste e
Inglaterra.
Esses cristãos-novos fizeram, a partir de Antuérpia, com Lisboa
e Cádis, as cidades comerciais mais importantes de então, o mesmo que Portugal havia
feito com as cidades italianas de Veneza, Florença e Gênova: quebrou-lhes o
monopólio comercial e deixou-lhes escancarado um futuro de decadência.
Foi esse o motivo para, em 1564, o duque de Alba, governante
espanhol de Antuérpia, suspender a imunidade concedida aos cristãos-novos da
cidade.
Esse acirramento dos ânimos pôs Amsterdam no centro das
atenções. Então governada por protestantes holandeses, após terem derrotado os
ocupantes espanhóis em uma longa guerra, tornou-se destino dos judeus que
fugiam de Antuérpia. A coincidência de histórias de perseguições, primeiro a
protestantes, depois a judeus, aproximou os dois grupos. Mediante promessas de
trazer grandes riquezas à região, solicitaram autorização para permanecerem na
cidade e exercerem seus cultos em paz. A proposta veia calhar, haja vista os cofres públicos estarem
esvaziados após anos de conflitos.
Já em 1620, Amsterdam contava com quatro sinagogas. Os
judeus na Turquia presentearam seus parceiros holandeses com os primeiros
bolbos de tulipas a chegarem ao país. Os judeus também levaram o comércio de
diamantes e a arte de lapidar os mesmos a Amsterdam – ainda hoje a Holanda é
referência nessas atividades.
Ainda nesse sentido, os judeus levaram o tabaco à Holanda, a
partir de Cuba, e fundaram a indústria holandesa de charutos. O mesmo foi feito
com o chocolate das Índias Ocidentais, que fez nascer a indústria do chocolate
holandesa.
Essas foram algumas das contribuições judias à Holanda
protestante.
Foi também na Holanda, onde puderam praticar seus cultos sem
problemas, que muitos judeus viram pela primeira vez o Talmude. Até então, o
único livro que usavam era o Pentateuco (Antigo Testamento).
Mas a crença que se disseminou mesmo na Holanda, que unia
judeus e protestantes, era a de que roubar e pilhar Portugal, ocupado pelos espanhóis,
não era pecado. Juntos, financiavam uma frota que capturava mais de 100 navios
mercantes portugueses todos os anos.
Até que o inesperado aconteceu: num episódio conhecido como “mapa
de Linshoten”, todos os segredos comerciais portugueses foram revelados aos
holandeses. Foi o início da flagrante derrocada portuguesa e sua superação pela
Holanda.
O jovem Linshoten, culto e sagaz, deixou seu país e chegou a
Lisboa em 1576. Tornou-se secretário pessoal do novo arcebispo da Ásia e da
África Oriental, frei João Vicente da Fonseca. Logo se puseram a caminho de
Goa.
Linshoten investiu 20 anos a serviço do frei. Durante esse
período, organizou um registro secreto de tudo o que descobria sobre as rotas
comerciais do Império português. Roubou exemplares de mapas que indicavam as
rotas que partiam da Europa. Também desvendou as rotas entre as cidades
comerciais. Fez anotações à mão, deu instruções pormenorizadas. Mesmo o clima e
as tábuas de marés não foram esquecidos. A partir de relatos próprios e de
terceiros, descreveu as pessoas, seus costumes, clima local, condições
sanitárias, tipos de mercadorias e produtos manufaturados comercializados, com
indicações de preço, quantidade e qualidade.
Retornou à Holanda e publicou tudo o que registrara, em
1596. Quase que na sequência, o comandante Cornelius Hoofman partiu para Java
com sua frota. Ali findou a primeira base holandesa na Ásia. Nos cinco anos
seguintes partiram dali mais de 40 navios holandeses lotados de especiarias.
Ainda durante o período de domínio espanhol, Portugal perdeu
completamente sua competitividade. Os navios portugueses eram agora grandes
demais, difíceis e manobrar. Em certos casos, mais da metade dos navios que
partiam em direção à Ásia retornavam com problemas antes de chegarem ao
destino.
Um dos fatores prejudiciais a Portugal era o fato de a
tripulação de seus navios ser, sobretudo, de escravos: subalimentados, desmotivados,
doentes e loucos por acharem uma oportunidade de escaparem. Além disso, a
derrota da Invencível Armada espanhola para Sir Francis Drake dizimou os navios
portugueses, que foram enviados a Plymouth.
Os holandeses usaram seus navios novos, rápidos e estáveis,
para assaltarem barcos portugueses a caminho de Goa, Macau e Nagasaki.
Expulsaram os portugueses do Ceilão, de Formosa (Taiwan), das ilhas das
Especiairias, de Malaca e ainda do Malabar.
A história somente se diferenciou no Japão. Os holandeses
não conseguiram expulsar os portugueses dali, pois estavam firmemente
instalados ali. Mas o sucesso das conversões de japoneses, finalmente, chamou a
atenção da aristocracia e dos monges xintoístas, distraídos pela guerra civil.
Logo perceberam que essas conversões escondiam um propósito maior: conquistar o
Japão.
Em bula de 1585, os papa deferiu o direito sobre o Japão a
Portugal. A Espanha foi agraciada com as Filipinas (que usavam para entrar no
Japão clandestinamente). A prisão de um navio espanhol encalhado na costa
japonesa, carregado com 600 mil moedas de prata, rendeu uma declaração bastante
sincera do comandante: “Começam por enviar padres, que induzem o povo a abraçar
a nossa religião. Quando os progressos alcançados forem consideráveis, enviam
as tropas, que, controlando os convertidos, torna todo o resto mais fácil”.
A resposta japonesa foi cruel: franciscanos espanhóis,
jesuítas e cristãos japoneses foram executados por crucificação. Mandaram que
os padres estrangeiros fossem deportados. Cerca de 200 mil japoneses
convertidos foram vítimas de castigos, a ponto de quase morrerem. Cerca de
1.400 foram crucificados. A igreja cristã fundada pelos jesuítas no Japão viveu
os 200 anos seguintes na clandestinidade. Esse fato só mudou em 1867.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A primeira aldeia global”
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