A cultura grega clássica tem seu lado brilhante: filosofia,
matemática, política, ética, idéia versus ilusão da Caverna de Platão etc. Mas essa
cultura também teve seu lado B: uma aceitação desconcertante da pederastia,
embora esse assunto mereça um melhor delineamento.
Os gregos viviam, filosoficamente falando, em meio a um
embate: razão x emoção; racionalidade x irracionalidade. E os embates chegavam
ao plano divino: os deuses se diferenciavam dos homens apenas pela sua
imortalidade. Não eram superiores moralmente, sofriam dos mesmos problemas e
enfrentavam os mesmos dilemas que os homens. Traições e trapaças faziam parte
das relações terrena e olímpica.
Por exemplo: Afrodite foi casada à força com Hefesto, por
Zeus, incomodado com sua beleza; tiveram Eros, mas sempre pairou uma dúvida
sobre a real paternidade do menino; Afrodite também deu à luz um filho de
Apolo, Himeneu, nome de onde se originou a palavra hímen; Afrodite também
engravidou de Príapo, deus da fertilidade; Afrodite ainda teve tempo para
engravidar de Hermes, quando nasceu Hermafrodito (metade homem, metade mulher);
por fim, o grande amor de Afrodite era Ares, deus da guerra. Tiveram quatro
filhos: Anteros, Harmonia, Fobos e Deimos.
Zeus, deus dos deuses, conseguiu superar Afrodite com sua
prolífica descendência. Casado com Hera, irmã de Afrodite, teve filhos com
Métis, Têmis, Mnemósine, Leto, Deméter e Eurímone. Essas foram apenas as
deusas, pois Zeus ainda se relacionou com inúmeros ninfas, 115 mulheres e...
Ganímedes, um belo jovem que seduziu o grande deus disfarçando-se de águia.
Embora estejamos a falar de deuses, eles são produto da
mente humana, especificamente daqueles humanos que criaram tais mitos. Portanto
essa mitologia reflete o comportamento das pessoas envolvidas. Certamente a
vida sexual na Grécia antiga era bem liberal.
As mulheres atenienses (a maior parte dos relatos é sobre
ela) viviam até seus quinze anos com os pais. Em seguida, era casada com alguém
cujos pais considerassem um bom pretendente. Por sua vez, os homens somente se
casavam após os trinta anos. Entre os quinze e os 30 anos, os homens curtiam a
vida solteira.
A prostituição não era endeusada, mas também não era uma
vergonha ser visto de vez em quando saindo da casa de uma cortesã. Sólon, quando
governante, chegou mesmo a estatizar a profissão de prostituta. Ele queria
organizar os serviços, de modo a manter o alto número de homens solteiros vivendo
uma vida sexual ativa. Afinal, muitos homens privados de sexo levam ao aumento da
violência. Solón adquiriu uma grande quantidade de prostitutas e espalhou
bordéis por toda a Atenas, cobrando um preço fixo e acessível às pessoas. As
mulheres ficavam nuas, para que o cliente pudesse escolher a que lhe
aprouvesse.
Aos bordéis estatais ainda se somavam as centenas de outros,
privados, espacialmente localizados na região portuária de Pireu. Nestes
últimos trabalhavam as escravas sexuais, em geral estrangeiras, conhecidas como
“pornê” – origem da palavra pornô. As pornoi – plural de pornê – podiam ser
alugadas por um dia, uma semana, um ano... poderiam ser alugadas em sistema de
pool, por mais de um homem, por exemplo...
Os gregos contavam ainda com as “mousourgoi”, espécie de
animadoras de festas e reuniões de homens. Também estrangeiras (portanto não
poderiam casar com gregos), tocavam oboé, harpa, cítara, cantavam, dançavam
sensualmente e, eventualmente, no final dos encontros, ocorria sexo.
Uma fonte de renda bastante razoável era abrir escolas de
treinamento de mousourgoi. Aprender a tocar cítara era tarefa para anos de
estudos.
Existiam ainda as “hetairai”, ou companheiras. Mulheres
gregas, pertencentes à mesma classe social das demais gregas, as hetairai eram
mulheres que se rebelavam contra o sistema: não aceitavam o claustro da família
ou do casamento. Faziam tudo aquilo que era vedado às mulheres: sentavam-se à
mesa com homens, muitas eram tão cultas quanto os homens mais bem instruídos –
e chegavam a atingir notoriedade social. Targélia foi acusada de ser espiã do
imperador persa Ciro; Taís de Atenas foi amante de Alexandre, o Grande, e
acusada de incendiar Persépolis, histórica capital persa; Aspásia foi cortesã
de Péricles, um dos maiores estadistas gregos, e amiga de Sócrates.
A promiscuidade se fazia sempre presente nas comemorações a
Dionísio. Em procissão solene, cantava-se, dançava-se de maneira descontrolada.
Carregavam-se ânforas enormes cheias de vinho e esculturas de pênis,
ornamentado com fitas. No segundo dia de festas, rapazes nus tentavam ficar de
pé em um saco cheio de cascas de uvas misturadas com óleo. Os tombos em
posições sensuais faziam dessa brincadeira uma espécie de “Banheira do Gugu” só
para os rapazes...
Outra festa muito concorrida em Atenas era a Grande
Dionísia. Após um régio banquete, seguia-se uma procissão, em que pessoas
fantasiadas de ninfas, bacantes e sátiros dançavam conspicuamente. Diversas
brincadeiras sexuais eram realizadas.
Ao longo do ano ocorriam diversos festivais bacantes. O
final do inverno era acompanhado por procissões com mais esculturas fálicas, rapazes
nus, dançando bêbados de vinho. Em Esparta, ocorria a Gymnopedia – festival em
que rapazes nus dançavam e faziam exercícios físicos.
As artes eróticas gregas e romanas levaram à criação de ícones
afrodisíacos, especialmente em cerâmica. Vasos contendo gravuras de orgias com
número abundante de participantes. Desenhos mostrando cenas de masturbação,
carícias anais entre homens, sexo anal, escravas sexuais em serviço... Tudo
isso tinha o mesmo status de cenas de banquetes. Detalhes artísticos eram
apreciados, as estátuas deviam mostrar o corpo bem delineado de jovens
atléticos. E tudo isso era tão apreciado quanto os próprios corpos nus em
competições esportivas.
Por outro lado, a sexualidade na órbita feminina vivia sob
outras regras. Afrodite era uma deusa com várias faces. Havia a Afrodite
Vulgar, que inspirava o amor comum e a prostituição. Havia também a Afrodite
Celeste, inspiradora do amor espiritual, puro e nobre.
Platão foi um dos pensadores que procuraram delinear e
ilustrar o que seria exatamente essa divisão entre prazeres superiores e
inferiores. Dessa oposição surgiu a luxúria, no mundo cristão.
Para Platão, o homem era a união entre um corpo (matéria) e
uma alma (espírito), que habitava o mundo das idéias presa a um corpo. Ao
homem, era essencial desapegar-se das ilusões trazidas pelos sentidos e
descobrir a verdade do mundo das idéias.
Platão dividia a alma em três partes: a “alma concupiscente”
e a “alma colérica”, ambas mortais; e a “alma racional”, esta imortal. É ela
quem controla a concupiscência e a cólera. É a sede do pensamento e habita em nosso
cérebro.
Para Platão, o homem virtuoso não se deixa governar pelas
paixões, pois sua alma racional controla a outras duas almas, ligadas às
emoções e desejos. Este era o conceito do homem temperante.
O mesmo ocorria no campo do amor. O amor vulgar deveria ser
evitado e o amor celeste deveria ser buscado. E o caminho para tanto passava
pela pederastia.
Segundo a filosofia platônica, o amor entre um homem e uma
mulher é de inspiração da deusa Afrodite Vulgar. Era ela quem levava os homens
a estuprar escravas ou buscar cortesãs e prostitutas. Já a Afrodite Celeste inspirava
o amor racional, puro, sublime, constante e fiel... Numa sociedade bastante
misógina, que não reconhecia racionalidade nas mulheres, isso significava que o
amor “de alma” nunca poderia surgir com uma mulher: somente ocorreria entre
homens. Como havia estratos sociais na Grécia antiga, tais homens deveriam
pertencer à mesma classe social.
Mas não era permitido a um homem ateniense subjugar outro
cidadão como ele. A diferença necessária para criar uma superioridade entre os
parceiros surgia da diferença de idade. O mais velho, contando vinte e poucos
anos, era chamado de “erastes”. Seu iniciado era chamado de “eromenos”, em
geral menor de idade, por volta dos 16 anos. O sinal de que a vitalidade
desejada se encontrava presente eram os primeiros fios de barba surgindo no
rosto.
Mas a imagem de pedofilia deve ser melhor analisada. Em
geral, não se representavam ou falavam de sexo entre homens, no sentido físico
da penetração. Em geral, os encontros entre erastes e eromenos eram pontuados
por trocas de idéias, reflexões acerca da política ou da aplicação da justiça,
discutiam sobre a cidade. Não se exigiam as mesmas práticas do relacionamento
entre homem e mulher, afinal este era o relacionamento inferior, segundo os
gregos.
O objetivo era criar um cidadão melhor, virtuoso. Aliás, de
modo geral, a homossexualidade era indesejada. Não há registros claros de
relacionamentos homossexuais estáveis e todo ateniense deveria ser casado com
uma mulher.
O objetivo do “amor celeste” era a complacência entre
guerreiros, a celebração da beleza física, o desejo de educar e proteger e a
honra de ter sido iniciado por um homem experiente e respeitado. Após a mistura
de sentimentos inicial, que carregava a atração física consigo, deveria restar
apenas a profunda amizade entre iniciado e iniciador.
O relacionamento celeste tinha um local para se iniciar: o
gymnasion, onde jovens (ephebi) passavam o dia a se exercitar nus (que se
escreve gymnos, em grego. Ginásio era um local para se ficar pelado).
Nas laterais dos ginásios ficavam os banhos e salões,
ocupados por filósofos, oradores, poetas e outros, em busca de seus eromenos.
Era o lócus do “corpo são, mente sã”. Feminino, ali, eram permitidas apenas as
imagens esculpidas em mármore.
O deus mais respeitado ali era Eros.
Após os exercícios físicos, os jovens gregos iam exercitar
seu intelecto na companhia de seus protetores. Assim surgiram os melhores atletas
gregos em Olimpíadas. E assim também surgiram muitos dos melhores filósofos:
Aristóteles palestrava caminhando pelo gymnasion.
Uma extensão do gymnasion era o “andron”, cômodo da casa
onde homens se reuniam para conversar e beber. Essas reuniões de aristocratas
recebia o nome de “symposion”. Tais encontros se iniciavam com petiscos depois
vinha o vinho. Os homens se sentavam em divãs reclinados, de dois lugares. O
vinho era servido em bacias, trazidas por escravos e escravas, escolhidos pelo
critério da beleza.
Lá se discutiam assuntos políticos, filosóficos,
declamavam-se poemas, comentavam-se resultados de competições esportivas e se entretiam
com jogos e brincadeiras. Mulheres poderiam tomar parte, desde que “respeitáveis”.
Apenas hetairai poderiam participar das conversas. Musicistas, dançarinas e
dançarinos, em geral, participavam dos encontros.
Mas os convidados mais aguardados eram mesmo os eromenos,
vindos em companhia de seus erastes. Não se sentia vergonha de elogiar a beleza
dos rapazes mais atraentes.
Tais regras e reservas transformaram o que seria pura e
simplesmente pederastia no mais acabado exemplo de amor “platônico” – o amor
entre erastes e eromenos -, amor de alma, apenas.
Contudo, como muitos apontam, gravuras em vasos retratam
claramente cenas de pederastia deslavada, com direito a beijos, toques, masturbação,
ereções, felação, órgãos sexuais entre as coxas e muito mais.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”
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