Apesar de toda a ingerência jesuíta em assuntos de
sexualidade – especialmente se relacionadas ao comportamento dos índios -, não
se chegava aos extremos sádicos da Inquisição espanhola, que prezava pelas
punições à base de tortura com requintes de crueldade.
Contudo, entre 1580 e 1640, as crises abertas pela sucessão
ao trono português terminaram por levar à União Ibérica – de fato, Portugal
estava submetido à Coroa espanhola. Nesse período o cristianismo vivia a
Contrarreforma, período em que se acentuaram os dogmas da religião, como forme
de dar uma resposta ao avanço do protestantismo na Europa. E ficava a cargo da
Inquisição garantir que o rebanho de Deus estava a observar tais preceitos
religiosos. Nessa toada investigavam a todos em busca de fornicadores,
feiticeiros, bígamos, sodomitas, adúlteros etc. Nenhum aspecto da vida provada
estava a salvo da sanha moralista dos inquisidores.
A colônia brasileira recebeu três visitas da Inquisição:
entre 1591 e 1595 estiveram nos centros açucareiros (Bahia, Pernambuco
principalmente); em 1618 estiveram na Bahia de novo; entre 1763 e 1769
visitaram o Grão Pará e o Maranhão.
O Brasil recebera muitos degredados, em geral judeus
convertidos, portanto denominados cristãos-novos, porém flagrados cometendo
pecados. Punidos, buscaram o distante Brasil para fugir das perseguições e da
discriminação. Pois bem, a Inquisição dedicava especial atenção a esses “brasileiros”.
Um método usado pela Inquisição era o incentivo à delação: motivavam
sentimentos de vingança ou pelo medo inculcado pelos inquisidores, muitas
pessoas denunciavam conhecidos, familiares, amigos, concorrentes etc. Por
exemplo, um comerciante incomodado por um concorrente chegado do reino, denunciava-o
por judaísmo.
Mas nos autos da Inquisição um pecado se destacava
sobremaneira: a sodomia. O comportamento homossexual representava 35 das 82
denúncias coletadas pela Inquisição na Bahia em 1591 – foram 433 denúncias no
total, sendo 82 relacionadas a sexo, 35 por sodomia, 21 por bigamia, 12 por
fornicação, seis eram sacrilégios sexuais, 4 por adultério e concubinato, 2 por
solicitação (crime sexual praticado apenas por padres) e 2 por negação da
sacralidade da castidade.
A sodomia era um pecado classificado por expressões como “pecado
indigno de nome”, pecado provocador de terremotos, de tempestades, de fome, de
pestes, tão vil que parecia feio até para o Diabo... mas era certamente um dos
mais praticados.
Entre 1591 e 1595, foram acusados de homossexualidade 101
homens e 29 mulheres. Figuravam entre os acusados à Inquisição senhores de
engenho, escravos forros e escravos.
Um dos acusados foi Astrúbal Antônio de Aguiar, de 21 anos.
Assim o descreveu o Santo Ofício (nome mais atualizado da Inquisição):
“Sendo ele de idade de treze ou catorze anos (na época) e
sendo seu irmão mais moço de idade de doze ou treze anos, dormiam ambos
juntamente em uma cama. Um mameluco forro criado em casa, por nome Marcos, que
então seria de idade de dezessete ou dezoito anos, se ia de noite da sua rede
em que dormia, às vezes por si mesmo, às vezes chamado por eles, deitar-se com
eles na sua cama, o qual se deitava entre eles irmãos, e chegaram a
acontecer-lhes que ele Marcos e ele confessante pecaram o pecado nefando
deitando-se ele confessante de bruços e sobre ele se deitava o dito Marcos,
metendo seu membro desonesto pelo vaso traseiro dele confessante, e cumprindo
nele por detrás como homem com mulher por diante, consumando e efetuando o
pecado de sodomia”.
O Brasil não tinha uma urbanização que permitisse a criação
de nichos de homossexuais, algo que já ocorria na Europa. A sodomia era
praticada no mato, na senzala, na casa-grande. Mas em Pernambuco surgiu a
oficina de Lessa, local onde entravam e de onde saíam jovens de idades
diversas, a troco de pão, vinho e presentes. Tratava-se de uma confraria de
homossexuais: cerca de 31 homossexuais vivendo quase em família, praticando
sodomias reciprocamente.
O português Salvador Romeiro se casou com uma mulata. Mas
passou a ser reconhecido pelo comportamento homossexual, foi denunciado pela
sogra e condenado às galés (pessoas que remavam navios). Cumprida a pena, veio
ao Brasil, onde foi condenado por sodomia com seu criado de 17 anos. Condenado
de novo, voltou a Portugal e se casou com uma branca. Dois anos depois,
apaixonou-se por um rapaz de 17 anos. Largou a esposa e voltou ao Brasil, agora
com o rapaz, que apresentava como sobrinho. Foi novamente acusado de sodomia e,
agora, também por bigamia.
Os tão propalados abusos sexuais praticados pelos senhores
contra suas escravas também eram comuns contra seus escravos. Felipe Tomás de
Miranda era proprietário de 30 escravos e bastante afamado por abusar deles.
Após matar um criado que ameaçava denunciá-lo à Inquisição teve de fugir de
Pernambuco, por volta de 1600. Reestabaleceu-se na Bahia, onde voltou a
praticar o pecado nefasto com seus novos escravos.
Pero Garcia, açoriano e dono de 4 engenhos cometeu sodomia
com o mulato forro João Fernandes, de 12 anos. A sodomia era prática tão comum
em sua residência que suas escravas chamavam os mulatos sodomitas de seus senhores.
O comportamento de alguns escravos transparecia a cultura da
sua região de origem, na África. Francisco Manicongo, escravo de um sapateiro
baiano no século XVI, viera de uma região do Congo onde o travestismo masculino
era muito comum. Foi denunciado duas vezes por “usar o ofício de fêmea” nas
relações sexuais. Recusava-se a usar roupas de homem, que seu senhor lhe dava.
O escravo Antônio, originário de Benin, vestia-se de “negra Vitória” e se prostituía
em Salvador amarrando o pênis com uma fita por entre as pernas.
O sexo anal também era proibido pelas regras da Igreja –
pois não gerava filho, portanto deveria era pecado. A pernambucana Ana Seixas confessou,
em 1594, que durante seus 14 anos de casada, por duas vezes usou seu “vaso
traseiro” com seu marido.
O lesbianismo era menos freqüente nos autos da Inquisição,
mas ocorria. A portuguesa Maria Lourenço era casada com Antônio Gonçalves, mas
se encontrava com Felipa de Souza, esposa de um pedreiro:
“depois do jantar, pela sesta, lhe começou de falar muitos
requebros e amores e palavras lascivas (...), e lhe deu muitos abraços e beijos
e, enfim, a lançou sobre sua cama, e estando ela confessante de costas, a dita
Felipa de Souza se deitou sobre ela de bruços com as fraldas (roupas de baixo)
delas ambas arregaçadas, e assim, com seus vasos dianteiros ajuntados, se
estiveram ambas deleitando até que a dita Felipa de Souza, que de cima estava,
cumpriu, e assim fizeram uma com a outra como se fora homem com mulher, porem
não houve nenhum instrumento exterior penetrante entre elas mais que somente
seus vasos naturais dianteiros.”
Felipa de Souza, pouco depois de deixar a residência de
Maria Lourenço, tentou retornar, mas Felipa não permitiu que entrasse.
Os clérigos eram assíduos freqüentadores dos autos, também.
O padre Frutuoso Álvares, português de Braga, já fora acusado de sodomia com um
estudante. Foi condenado às galés, foi exilado em Cabo Verde, onde foi acusado
de praticar relações com dois homossexuais. Foi degredado para o Brasil. Na
Bahia, segundo a Inquisição:
“cometeu a torpeza dos tocamentos desonestos com algumas
quarenta pessoas (...) e tendo cometimentos alguns pelo vaso traseiro com
alguns deles, sendo ele o agente, e consentindo que eles o cometessem a ele
pelo seu vaso baixo e pondo em cima de si os moços e lançando também os moços
coma barriga para baixo, pondo-se ele confessante
em cima deles, cometendo com seu membro os vasos traseiros deles”.
Apenas com Gerônimo, menino de 12 ou 13 anos, foram mais de
10 vezes.
Frei Lucas de Souza se apresentava como mulher a seus
amantes. Ainda capelão em Portugal seduzira um jovem de 23 anos: tiveram “200 cópulas
anais por espaço de ano e meio, sendo sempre paciente”. Dizia que seu ânus era “vaso
de mulher” e que o sangue que escorria era “mênstruo”. Contaram 99 homens em
seu concorrido currículo.
Entre os séculos XVII e XVIII foram feitas 462 denúncias
contra padres que se aproveitaram de mulheres nas confissões. O pai de Maria
Francisca denunciou o padre José Correia, que “a quis violentar, com
desordenado e furioso ímpeto que resultou grande escândalo às pessoas que o
presenciara”.
Crimes desse tipo não eram a alçada da Justiça comum, mas da
Eclesiástica e da Inquisição. A Igreja chamava esse tipo de “solicitação”:
ocorria no confessionário, contra meninas.
O padre Antônio Vieira de Mattos foi acusado de manter uma
concubina, renegou os filhos que tivera com ela e açoitou uma menina negra de
10 anos até a more. Foi inocentado. Evidentemente o corporativismo fazia com
que a culpa pelos crimes de “solicitação” recaíssem sobre a vítima, culpada por
seduzir o clérigo.
O Brasil não contava com universidades. Os filhos da elite
local só tinham duas alternativas para cumprir o curso superior: mudar-se para
a Europa ou entrar para o Seminário. Evidentemente o seminário era mais fácil e
isso explicava a quantidade imensa de religiosos que não apresentavam o menor
pendor para o ofício religioso.
O exposto acima, somado ao vasto tamanho do território,
fizeram Françoise Froger afirmar que “até os religiosos podem manter ‘mulheres
públicas’ sem temer a censura e a murmuração por parte do povo, que os respeita
particularmente”.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”