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sexta-feira, 29 de setembro de 2017

INQUISIÇÃO NO BRASIL: A CHEGADA DOS FISCAIS DE C*


Apesar de toda a ingerência jesuíta em assuntos de sexualidade – especialmente se relacionadas ao comportamento dos índios -, não se chegava aos extremos sádicos da Inquisição espanhola, que prezava pelas punições à base de tortura com requintes de crueldade.  

Contudo, entre 1580 e 1640, as crises abertas pela sucessão ao trono português terminaram por levar à União Ibérica – de fato, Portugal estava submetido à Coroa espanhola. Nesse período o cristianismo vivia a Contrarreforma, período em que se acentuaram os dogmas da religião, como forme de dar uma resposta ao avanço do protestantismo na Europa. E ficava a cargo da Inquisição garantir que o rebanho de Deus estava a observar tais preceitos religiosos. Nessa toada investigavam a todos em busca de fornicadores, feiticeiros, bígamos, sodomitas, adúlteros etc. Nenhum aspecto da vida provada estava a salvo da sanha moralista dos inquisidores.

A colônia brasileira recebeu três visitas da Inquisição: entre 1591 e 1595 estiveram nos centros açucareiros (Bahia, Pernambuco principalmente); em 1618 estiveram na Bahia de novo; entre 1763 e 1769 visitaram o Grão Pará e o Maranhão.

O Brasil recebera muitos degredados, em geral judeus convertidos, portanto denominados cristãos-novos, porém flagrados cometendo pecados. Punidos, buscaram o distante Brasil para fugir das perseguições e da discriminação. Pois bem, a Inquisição dedicava especial atenção a esses “brasileiros”.

Um método usado pela Inquisição era o incentivo à delação: motivavam sentimentos de vingança ou pelo medo inculcado pelos inquisidores, muitas pessoas denunciavam conhecidos, familiares, amigos, concorrentes etc. Por exemplo, um comerciante incomodado por um concorrente chegado do reino, denunciava-o por judaísmo.

Mas nos autos da Inquisição um pecado se destacava sobremaneira: a sodomia. O comportamento homossexual representava 35 das 82 denúncias coletadas pela Inquisição na Bahia em 1591 – foram 433 denúncias no total, sendo 82 relacionadas a sexo, 35 por sodomia, 21 por bigamia, 12 por fornicação, seis eram sacrilégios sexuais, 4 por adultério e concubinato, 2 por solicitação (crime sexual praticado apenas por padres) e 2 por negação da sacralidade da castidade.

A sodomia era um pecado classificado por expressões como “pecado indigno de nome”, pecado provocador de terremotos, de tempestades, de fome, de pestes, tão vil que parecia feio até para o Diabo... mas era certamente um dos mais praticados.

Entre 1591 e 1595, foram acusados de homossexualidade 101 homens e 29 mulheres. Figuravam entre os acusados à Inquisição senhores de engenho, escravos forros e escravos.
Um dos acusados foi Astrúbal Antônio de Aguiar, de 21 anos. Assim o descreveu o Santo Ofício (nome mais atualizado da Inquisição):

“Sendo ele de idade de treze ou catorze anos (na época) e sendo seu irmão mais moço de idade de doze ou treze anos, dormiam ambos juntamente em uma cama. Um mameluco forro criado em casa, por nome Marcos, que então seria de idade de dezessete ou dezoito anos, se ia de noite da sua rede em que dormia, às vezes por si mesmo, às vezes chamado por eles, deitar-se com eles na sua cama, o qual se deitava entre eles irmãos, e chegaram a acontecer-lhes que ele Marcos e ele confessante pecaram o pecado nefando deitando-se ele confessante de bruços e sobre ele se deitava o dito Marcos, metendo seu membro desonesto pelo vaso traseiro dele confessante, e cumprindo nele por detrás como homem com mulher por diante, consumando e efetuando o pecado de sodomia”.    

O Brasil não tinha uma urbanização que permitisse a criação de nichos de homossexuais, algo que já ocorria na Europa. A sodomia era praticada no mato, na senzala, na casa-grande. Mas em Pernambuco surgiu a oficina de Lessa, local onde entravam e de onde saíam jovens de idades diversas, a troco de pão, vinho e presentes. Tratava-se de uma confraria de homossexuais: cerca de 31 homossexuais vivendo quase em família, praticando sodomias reciprocamente.

O português Salvador Romeiro se casou com uma mulata. Mas passou a ser reconhecido pelo comportamento homossexual, foi denunciado pela sogra e condenado às galés (pessoas que remavam navios). Cumprida a pena, veio ao Brasil, onde foi condenado por sodomia com seu criado de 17 anos. Condenado de novo, voltou a Portugal e se casou com uma branca. Dois anos depois, apaixonou-se por um rapaz de 17 anos. Largou a esposa e voltou ao Brasil, agora com o rapaz, que apresentava como sobrinho. Foi novamente acusado de sodomia e, agora, também por bigamia.

Os tão propalados abusos sexuais praticados pelos senhores contra suas escravas também eram comuns contra seus escravos. Felipe Tomás de Miranda era proprietário de 30 escravos e bastante afamado por abusar deles. Após matar um criado que ameaçava denunciá-lo à Inquisição teve de fugir de Pernambuco, por volta de 1600. Reestabaleceu-se na Bahia, onde voltou a praticar o pecado nefasto com seus novos escravos.

Pero Garcia, açoriano e dono de 4 engenhos cometeu sodomia com o mulato forro João Fernandes, de 12 anos. A sodomia era prática tão comum em sua residência que suas escravas chamavam os mulatos sodomitas de seus senhores.

O comportamento de alguns escravos transparecia a cultura da sua região de origem, na África. Francisco Manicongo, escravo de um sapateiro baiano no século XVI, viera de uma região do Congo onde o travestismo masculino era muito comum. Foi denunciado duas vezes por “usar o ofício de fêmea” nas relações sexuais. Recusava-se a usar roupas de homem, que seu senhor lhe dava. O escravo Antônio, originário de Benin, vestia-se de “negra Vitória” e se prostituía em Salvador amarrando o pênis com uma fita por entre as pernas.

O sexo anal também era proibido pelas regras da Igreja – pois não gerava filho, portanto deveria era pecado. A pernambucana Ana Seixas confessou, em 1594, que durante seus 14 anos de casada, por duas vezes usou seu “vaso traseiro” com seu marido.   

O lesbianismo era menos freqüente nos autos da Inquisição, mas ocorria. A portuguesa Maria Lourenço era casada com Antônio Gonçalves, mas se encontrava com Felipa de Souza, esposa de um pedreiro:

“depois do jantar, pela sesta, lhe começou de falar muitos requebros e amores e palavras lascivas (...), e lhe deu muitos abraços e beijos e, enfim, a lançou sobre sua cama, e estando ela confessante de costas, a dita Felipa de Souza se deitou sobre ela de bruços com as fraldas (roupas de baixo) delas ambas arregaçadas, e assim, com seus vasos dianteiros ajuntados, se estiveram ambas deleitando até que a dita Felipa de Souza, que de cima estava, cumpriu, e assim fizeram uma com a outra como se fora homem com mulher, porem não houve nenhum instrumento exterior penetrante entre elas mais que somente seus vasos naturais dianteiros.”

Felipa de Souza, pouco depois de deixar a residência de Maria Lourenço, tentou retornar, mas Felipa não permitiu que entrasse.

Os clérigos eram assíduos freqüentadores dos autos, também. O padre Frutuoso Álvares, português de Braga, já fora acusado de sodomia com um estudante. Foi condenado às galés, foi exilado em Cabo Verde, onde foi acusado de praticar relações com dois homossexuais. Foi degredado para o Brasil. Na Bahia, segundo a Inquisição:

“cometeu a torpeza dos tocamentos desonestos com algumas quarenta pessoas (...) e tendo cometimentos alguns pelo vaso traseiro com alguns deles, sendo ele o agente, e consentindo que eles o cometessem a ele pelo seu vaso baixo e pondo em cima de si os moços e lançando também os moços coma  barriga para baixo, pondo-se ele confessante em cima deles, cometendo com seu membro os vasos traseiros deles”.

Apenas com Gerônimo, menino de 12 ou 13 anos, foram mais de 10 vezes.

Frei Lucas de Souza se apresentava como mulher a seus amantes. Ainda capelão em Portugal seduzira um jovem de 23 anos: tiveram “200 cópulas anais por espaço de ano e meio, sendo sempre paciente”. Dizia que seu ânus era “vaso de mulher” e que o sangue que escorria era “mênstruo”. Contaram 99 homens em seu concorrido currículo.

Entre os séculos XVII e XVIII foram feitas 462 denúncias contra padres que se aproveitaram de mulheres nas confissões. O pai de Maria Francisca denunciou o padre José Correia, que “a quis violentar, com desordenado e furioso ímpeto que resultou grande escândalo às pessoas que o presenciara”.

Crimes desse tipo não eram a alçada da Justiça comum, mas da Eclesiástica e da Inquisição. A Igreja chamava esse tipo de “solicitação”: ocorria no confessionário, contra meninas.

O padre Antônio Vieira de Mattos foi acusado de manter uma concubina, renegou os filhos que tivera com ela e açoitou uma menina negra de 10 anos até a more. Foi inocentado. Evidentemente o corporativismo fazia com que a culpa pelos crimes de “solicitação” recaíssem sobre a vítima, culpada por seduzir o clérigo.
O Brasil não contava com universidades. Os filhos da elite local só tinham duas alternativas para cumprir o curso superior: mudar-se para a Europa ou entrar para o Seminário. Evidentemente o seminário era mais fácil e isso explicava a quantidade imensa de religiosos que não apresentavam o menor pendor para o ofício religioso.

O exposto acima, somado ao vasto tamanho do território, fizeram Françoise Froger afirmar que “até os religiosos podem manter ‘mulheres públicas’ sem temer a censura e a murmuração por parte do povo, que os respeita particularmente”.
        
        
Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”


quinta-feira, 28 de setembro de 2017

MINAS GERAIS: O OURO E AS MINAS DE MINAS


Após a expulsão dos holandeses de Pernambuco, os bávaros foram para as Antilhas, região que conhecemos como Caribe. Levaram consigo técnicas de produção de cana de açúcar e o domínio absoluto da distribuição no grande mercado consumidor: a Europa.

No Caribe deram início a plantações enormes e muito eficientes. A enxurrada de açúcar nos mercados consumidores levou à depreciação do produto. Com isso, os monocultores do nordeste perderam sua galinha dos ovos de ouro e chegou ao fim o ciclo de riquezas incomensuráveis que proporcionadas pela detenção do quase monopólio que detinham.

Mais ou menos nessa mesma época, em 1695, na região das cidades mineiras de Sabará e Caeté, o bandeirante Borba Gato encontrou uma quantidade razoável de ouro. Os quarenta anos seguintes seriam marcados pela descoberta vultosa de ouro, diamante em Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso. Chamam a essa fase de Ciclo do Ouro.

Com a miragem da riqueza trouxe consigo uma leva migratória até então inédita. Segundo Boris Fausto, no século XVIII aportaram no Brasil mais de 600 mil portugueses. Havia ainda o movimento migratório interno, que trouxe gente de toda parte do território.

O resultado foi um desequilíbrio abissal entre o número de homens e de mulheres. Somente iam para as Minas homens, de espírito aventureiro, desacompanhados ou, no máximo, na companhia de alguns escravos. A proporção chegou a incômodos 35:1.

Após a inevitável fome dos primeiros dias, quando não havia qualquer infraestrutura para receber a multidão que afluía, as cidades da região desenvolveram pequenas economias de subsistência: alambiques, fazendas de porcos e gado, comércio, tropeiros.

Muitas mulheres trabalhavam nessas atividades. Eram comuns as mulheres alforriadas que trabalhavam em barraquinhas ou penduravam um tabuleiro em si e vendiam: doces, bolos, frutos, hortaliças, queijos, leite, tecidos, instrumentos de trabalho, bebidas, fumo e sabões. Chamavam-nas de “negras do tabuleiro”.
Havia também as tabernas locais, chamadas quitandas, aonde homens iam para beber. Cerca de 70% delas pertenciam a mulheres, em Vila Rica (atual Ouro Preto).

O fato é: homens demais juntos deram início a uma demanda incontida por sexo rápido e fácil e essa demanda gerou sua oferta: a maior parte das mulheres daquelas regiões se lançou à prostituição.

No caso das quitandas, as proprietárias ofereciam mulheres a seus clientes. As hospedarias em estradas e nas cidades faziam o mesmo. Mulheres muito pobres ofereciam suas casas como se motel fossem: pagava-se pelo encontro. Muitas “negras do tabuleiro” faziam outros serviços além de venderem seus petiscos. As igrejas da região também serviram ao mesmo propósito.

A pobreza reinante levava muitas mães prostituírem suas filhas, homens exploravam enteadas, cunhadas e até mesmo esposas. Tudo servia ao propósito de aumentar a renda familiar numa região reconhecida pela carestia exorbitante.

Os prostíbulos eram chamados “casas de alcouce” e as prostitutas mais famosas atendiam por apelidos como: Rabada, Cachoeira e Foguete. Outras histórias davam conta de uma tal Maria Franca, que explorava sexualmente suas três escravas, como uma cafetina. O mesmo fazia um tal Manuel da Silva, de Itaubira. Este dizia em voz alta que queria que seus escravos se tornassem mulheres, pois elas lhe rendiam mais dinheiro. A negra alforriada Justa de Sampaio também explorava suas escravas, recebendo clientes em sua própria casa.

As índias não escapavam e eram igualmente recolhidas ao meretrício. Chamadas de “carijós” e “bastardas”, encontravam-se essas mulheres em casas de tolerância de toda a região das minas – sozinhas ou ao lado das filhas. Minas era seguramente o grande centro de prostituição de toda a colônia.
Entre as classes mais pobres, o casamento não era o ato de união mais comum: o concubinato era a regra. Ou seja, pessoas que viviam vidas tão instáveis fugiam das regras eternas do matrimônio.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”
   

SINHOZINHO DE ENGENHO – ASSIM NASCEU UMA ELITE...


O sinhozinho praticamente não sabia o que era viver sem escravos. Pouco após o nascimento entrava em cena a ama deleite: escrava responsável por amamentá-lo.

Deixando o berço, recebia logo um escravo, de mesmo sexo e idade: esse era seu brinquedinho e, claro, deveria servi-lo.

Chegada a adolescência, vinham os desejos sexuais – e o senhor, seu pai, queria que esse momento se desse o mais breve possível. Ainda por volta dos 10 anos se davam as primeiras copulações com outros garotos ou com animais domésticos. Depois, seguindo o exemplo paterno, passavam-se às escravas: poderia ser tanto sua ama de leite quanto outra escrava, muitas vezes previamente violentadas pelo senhor.

Nos ensinamento de Freyre: “O que sempre se apreciou foi o menino que cedo estivesse metido com raparigas. Raparigueiro. Femeeiro. Deflorador de mocinhas. E que não tardasse em emprenhar negras, aumentando o rebanho e o capital paternos.”

Isso ajuda a explicar algo?
  

Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”

LUXÚRIAS AÇUCARADAS – VIDA SEXUAL NOS ENGENHOS DO NORDESTE


A história dos portugueses produzindo açúcar remete ao século XV, nas ilhas da Madeira e São Tomé. Portugal se preocupou com a produção, em controlá-la, mas nunca demonstrou interesse em controlar a comercialização do produto. Inicialmente essa distribuição no continente europeu ficava a cargo dos experientes mercadores venezianos.

Portugal desenvolveu toda uma indústria de engenhos e equipamentos para os mesmos. A implantação de novos engenhos tornou-se mais facilitada e a produção não parava de crescer. Em pouco tempo, toda essa quantidade avassaladora de açúcar foi redirecionada para os portos de Flandres, na atual Holanda. Ou seja, os holandeses passaram a refinar o açúcar e redistribuí-lo pelo continente.

Ficou logo patente que a produção daquelas duas ilhas era insuficiente para o imenso mercado que desabrochava. O local para onde esses empreendimentos foram exportados foi o Brasil, o nordeste brasileiro mais especificamente. Cooperaram Portugal e Holanda para esse fim.    

O único obstáculo com que depararam foi a falta de mão de obra. A população de Portugal era incrivelmente pequena. Mas já havia naquela altura inúmeros portugueses instalados em postos e entrepotos comerciais portugueses por toda a costa africana e muitos deles trabalhavam com tráfico de escravos (mantinham contatos comerciais com chefes locais que capturavam homens de aldeias inimigas e os vendiam como escravos). Portanto resolver o problema da falta de mão de obra nas fazendas de açúcar brasileiras era questão de escala, tão somente.

O resultado foi espetacular: no início do século XVII, Pernambuco contava com 120 engenhos e partiam de seus portos de 130 a 140 navios lotados de açúcar todos os anos. Contavam-se os escravos aos milhares. O resultado disso foi o nascimento de uma elite colonial odiosamente ociosa. Os dias passavam lentamente no seu limitado circuito rede-capela. Nas palavras de Gilberto Freyre: os senhores de engenho passaram a contar com duas mãos esquerdas, enquanto os escravos tinham duas mãos direitas. As mãos do senhor “só servindo para desfiar o rosário no terço da Virgem; para pegar as cartas de jogar; para tirar rapé das bocetas (bolsinhas) ou dos corriboques; para agradar, apalpar e amolegar os peitos das negrinhas, das mulatas, das escravas bonitas dos seus haréns”, continuava.

A vida de senhor de engenho começava cedo. Sua futura noiva era escolhida ainda aos 13 anos, na maior parte das vezes sem ter sequer posto os pés para fora da casa-grande: elas saiam da guarda do pai para a guarda do esposo, sempre os servindo, compulsoriamente. O noivo, o “sinhozinho”, era geralmente 10 a 20 anos mais velho. O móvel desses casamentos não era o amor, mas os interesses comerciais – os noivos raramente se conheciam. A moral sob o matrimônio era aquela estabelecida pela Igreja.

Contudo, as regras aqui vigentes não valiam para a fornicação. O sexo com escravas era muito diferente – e sua “moral” era única e cruel. Conforme notara o engenheiro francês Delabat, por volta de 1700: “é costume entre os portugueses deixar suas mulheres brancas, ainda que sejam muito belas, para deitarem-se com as negras e mulatas. Há, a seus olhos, duas vantagens nisso. Em primeiro lugar, dizem, a mudança de carne renova o apetite; em segundo, todas as crianças provenientes de tal relação fazem crescer o plantel de escravos da família.” Isso mesmo: escravizavam seus filhos sem peso na consciência...

A “senhora de engenho”, a odiosa “sinhá”, estritamente mãe e dona de casa, vivia rodeada pelas mucamas, nome dado às escravas do lar (apenas a casa-grande podia ser considerada um lar). As mucamas poderiam ter funções variadas: escravas sexuais dos senhores, concubinas dos senhores (nesse caso, o senhor as libertava e as mantinha em vilas, longe da sinhá). O ditado popular descrevia bem o que se passava nas cabeças masculinas: “branca para casar, mulata para foder e negra para trabalhar.”    

À sinhá, igualmente ociosa, restava engordar no tédio do lar. Em livros, as senhoras eram descritas como “gordas, nédias, flácidas...”. Já as escravas eram “negras e mulatas de boas coxas, bons dentes, peitos salientes, flexíveis.” Não é difícil imaginar os ciúmes e, consequentemente, as violências desmedidas praticadas pelas senhoras contra suas escravas.

A superioridade social que valia para o senhor, valia para a senhora: falavam alto, gritavam e não poderiam ser contrariadas. Mesmo suas ordens mais absurdas e desumanas deveriam ser obedecidas. Como conta Gilberto Freyre: “Sinhás-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença so marido, à hora da sobremesa”, “Baronesas já de idade que mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos”, “que espatifavam o salto de botina nos dentes das escravas; ou que mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas”. Quase sempre por ciúmes do marido.

Já o sexo entre os escravos era absurdamente restrito. Primeiramente, o sexo era voltado para aplacar as necessidades fisiológicas:  a procriação era impensada no caso deles. Separavam-se os dormitórios masculino e feminino. Mesmo casados, os encontros sexuais eram escondidos.

A igreja tentou ajudar, exigindo que os senhores promovessem casamentos religiosos entre seus escravos, mas poucos observavam essa norma. As mulheres eram em número mínimo: de 1/3 a 1/5 do total de escravos. Como bem se sabe, pôr centenas de homens encarcerados, sem mulheres, é receita para uma carnificina. Por isso muitos senhores reservavam algumas mulheres para seus escravos. Segundo Debret: “tem-se o hábito, nas grandes propriedades, de reservar uma negra para cada quatro homens; cabe-lhes arranjar-se para compartilharem sossegadamente o fruto dessa concessão feita tanto para evitar os pretextos de fuga como em vista de uma futura procriação destinada a equilibrar os efeitos da mortalidade.”


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”

      

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

THE WHO – NÃO SEREMOS OTÁRIOS DE NOVO!


Won't Get Fooled Again
The Who

We'll be fighting in the streets
With our children at our feet
And the morals that they worship will be gone
And the men who spurred us on
Sit in judgment of all wrong
They decide and the shotgun sings the song

Lutaremos nas ruas
Com nossos filhos aos nossos pés
E a moralidade que eles tanto adoram vai acabar
E os homens que cavalgavam em nossas costas
Julgam tudo o que há de errado
Eles decidem e as metralhadoras fazem a música

I'll tip my hat to the new constitution
Take a bow for the new revolution
Smile and grin at the change all around me
Pick up my guitar and play
Just like yesterday
And I'll get on my knees and pray
We don't get fooled again

Baterei continência para a nova constituição
Fazer reverência à nova revolução
Sorrir para tudo a meu redor
Pegar minha guitarra e tocar
Assim como fiz ontem
E ficarei de joelhos e rezarei
Não seremos idiotas de novo

Change it had to come
We knew it all along
We were liberated from the fall that's all
But the world looks just the same
And history ain't changed
'Cause the banners, they all flown in the last war

Mudanças têm de acontecer
Soubemos disso ao longo do tempo
Nos livramos do pior, isso é tudo
Mas o mundo simplesmente parece o mesmo
E a história não mudou
Porque  os protestos, eles se foram com a última guerra

I'll tip my hat to the new constitution
Take a bow for the new revolution
Smile and grin at the change all around me
Pick up my guitar and play
Just like yesterday
And I'll get on my knees and pray
We don't get fooled again
No, no!

Baterei continência para a nova constituição
Fazer reverência à nova revolução
Sorrir para tudo a meu redor
Pegar minha guitarra e tocar
Assim como fiz ontem
E ficarei de joelhos e rezarei
Não seremos idiotas de novo

I'll move myself and my family aside
If we happen to be left half alive
I'll get all my papers and smile at the sky
For I know that the hypnotized never lie
Do ya?

Eu e minha família vamos nos mexer para o lado
Caso ainda estejamos meio vivos
Pegarei todas as minhas anotações e sorrirei para o céu
Porque sei que os hipnotizados nunca mentem
E você?

There's nothing in the street
Looks any different to me
And the slogans are replaced, by-the-bye
And the parting on the left
Is now the parting on the right
And the beards have all grown longer overnight

Não há nada nas ruas
Que pareçam diferente para mim
E os cartazes foram realocados, um a um
E o que acontece na esquerda
É o que acontece na direita
E as barbas cresceram durante a noite

I'll tip my hat to the new constitution
Take a bow for the new revolution
Smile and grin at the change all around me
Pick up my guitar and play
Just like yesterday
Then I'll get on my knees and pray
We don't get fooled again
Don't get fooled again
No, no!

Baterei continência para a nova constituição
Fazer reverência à nova revolução
Sorrir para tudo a meu redor
Pegar minha guitarra e tocar
Assim como fiz ontem
E ficarei de joelhos e rezarei
Não seremos idiotas de novo

Yeah!

Meet the new boss
Same as the old boss

Conheça o novo chefe
É igual ao chefe antigo



Rubem L. de F. Auto

THE WHO – ANTES QUE SE SUBMETESSEM AO SISTEMA...


Baba O'Riley
The Who

Out here in the fields
I fight for my meals
I get my back into my living
I don't need to fight
To prove I'm right
I don't need to be forgiven

Nos campos, aqui fora
Eu luto por um prato de comida
Me ponho a viver
Não preciso de lutar
Para provar que estou certo
Não preciso ser perdoado

Don't cry
Don't raise your eye
It's only teenage wasteland

Não chore
Não levante seus olhos
Isso é apenas a terra arrasada da juventude

Sally, take my hand
Travel south crossland
Put out the fire
Don't look past my shoulder

Sally, pegue em minha mão
Cruze o país para o sul
Apague o fogo
Não olhe para trás, sobre meus ombros

The exodus is here
The happy ones are near
Let's get together
Before we get much older

A saída é aqui
As pessoas felizes estão por perto
Vamos ficar juntos
Antes que sejamos velhos demais

Teenage wasteland
It's only a teenage wasteland
Teenage wasteland
Oh, oh
Teenage wasteland
They're all wasted!

A terra destruída dos jovens
É só isso
Terra arrasada da juventude
Oh, Oh
Terra arrasada da juventude
Estão todos arrasados!



Rubem L. de F. Auto

PORQUE NÃO EXISTE PECADO DO LADO DEBAIXO DO EQUADOR...


À primeira vista, sentiam-se adentro o Éden. Não sentiam vergonha por estarem nus. Aqueles índios pareciam Adão e Eva antes da danação provocada por comer o fruto do conhecimento. Mas essa atração pela ingenuidade daquelas pessoas durou pouco.

Logo os colonizadores perceberam que necessitariam de criar alianças caso desejassem explorar aquelas terras recém-descobertas. Eram numericamente muito inferiores aos povos originários.

A primeira estratégia de que lançaram mãos foi aquela que melhor conheciam em suas terras natais: o casamento. Alianças políticas criadas por vínculos familiares estabelecidos pelo casamento deram aos europeus acesso à mão-de-obra usada nas primeiras décadas do Brasil.

Mas não demorou a começarem a desembarcar na costa brasileira escravos de origem africana. Com a mudança étnica, surgiram as mudanças sócio-culturais: agora a sociedade estava dividida em estamentos: casa-grande, senzala e cidade (inicialmente, vilas).

O mesmo ocorreu com a vida sexual da jovem colônia: desde o sexo quase-santificado entre o senhor de engenho branco e sua esposa européia, passando pelo abuso sexual do senhor contra a escrava, o concubinato com negras libertas ou índias, até as relações instáveis entre negros, pardos, mamelucos e brancos pobres.

Inicialmente, aos europeus parecia que os indígenas brasileiros eram escravos do pecado da luxúria. Mas logo perceberam que eles eram dados, desavergonhadamente, àquilo que despertasse prazer. Igualmente notável foi a atração que sentiram pelas formas, pela beleza dos corpos.

Primeiramente a atenção dos europeus foi direcionada aos pênis dos índios. Perceberam que não eram circuncidados, portanto judeus não eram: fácil convertê-los! Depois a atenção se desviou para as mulheres e suas “vergonhas”. Segundo Pero Vaz de Caminha: “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”. Tem-se portanto a descrição de vagina depiladas, aparentemente de índias bastante jovens, que despertaram-lhes a vontade de comparar com aquelas das mulheres que conheciam.

A questão da nudez parecia bem idiossincrática. Afinal, na América do Norte, nos Andes, os índios se vestiam copiosamente, tanto por causa do frio intenso como por motivos relacionados à hierarquia. Já o Brasil era completamente despido de vestimentas – e a nudez não necessariamente estava relacionada ao apetite sexual.

Assim como no Gênesis, os inocentes habitantes deste Jardim do Éden seriam traídos por uma serpente, mas de outro tipo daquela bíblica, que em si faria nascer a vergonha. Os jesuítas ofereceram-lhes roupas àqueles índios que se convertiam. Mas a tarefa não foi fácil, mesmo porque não havia indústria têxtil aqui. 
Manuel da Nóbrega encomendava uma camisa a cada índia, afinal ele não conseguia conceber uma índia nua entrando na igreja e se sentando ao lado de outro cristão.

Pouco tempo depois, perceberam os portugueses que a sensualidade, a sexualidade entre os índios era bastante intensa – embora pouco tivesse a ver com nudez. Como disse Gilberto Freyre: “O ambiente em que começou a vida sexual brasileira foi de quase intoxicação sexual”. E continuava: “Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses.” E o que mais os admirava: não se falava em luxúria, conceito construído ao longo de milênios, altamente turbinado pela moral cristã e, certamente, impermeável aos indígenas de outrora. Como explicar os sacramentos de quem via o ato de tomar banho como pecado e quem se divertia tomando banho em riachos e cachoeiras?

A atração exercida pelas índias chegava a incomodar alguns clérigos, como o frei Vicente de Salvador, que se sentia tentado a quebrar seu voto de castidade. Frei Antônio Rocha dizia não passar uma hora sem que sentisse “estímulos sexuais”. O jesuíta Inácio de Azevedo tratava como milagre a manutenção do celibato em terras brasileiras.

José de Anchieta descreveu a fuga de dois futuros padres “tentados pelo espírito de fornicação”. O motivo, segundo o próprio Anchieta, era que “as mulheres andam nuas e não sabem se negar a ninguém, mas até elas cometem e importunam os homens, jogando-se com eles nas redes porque têm por honra dormir com os Cristãos.”

Conforme descobriam mais sobre aquele povo “inocente”, mais os portugueses se assombravam com seu desprendimento sexual. Entre as índias, logo perceberam que a homossexualidade se fazia presente. Segundo Pero de Magalhães Gândavo em “História da Província de Santa Cruz”: “Estas imitam os homens e seguem seus ofícios. Cortam seus cabelos da mesma maneira que os machos trazem e vão à guerra com seu arco e flechas e à caça: enfim, que andam sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve e que lhe faz de comer como se fossem casados.”

O conceito de casamento, evidentemente, não era o mesmo dos europeus: nenhuma índia desejava guardar a virgindade para o futuro marido, nem sonhavam com uma união eterna. Pelo contrário, frequentemente sabia-se algum velho que abandonava a a família para juntar-se a índias jovens, especialmente capturadas em guerras tribais. Mulheres também costumavam abandonar seus maridos. Quando o homem tinha várias mulheres, não se sabia quem poderia ser a esposa “verdadeira”.

Gabriel Soares de Sousa descreveu detalhadamente – e segundo seu ponto de vista europeus - a vida sexual que conheceu aqui, na sua obra Tratado Descritivo do Brasil, de 1587:

“São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam; os quais sendo de muita pouca idade têm conta com mulheres, e bem mulheres, porque as velhas, já desestimadas pelos que são homens, granjeiam estes meninos, fazendo-lhes mimos e regalos, e ensinam-lhes a fazer o que não sabem, e não os deixam de dia, nem de noite. É este gentio tão luxurioso que poucas vezes têm respeito às irmãs e tias, e porque esse pecado é contra seus costumes, dormem com elas pelos matos, e alguns com suas próprias filhas;(...) E em conversação não sabem falar senão nestas sujidades, que cometem a cada hora. (...) Não contentes estes selvagens (...) são mui afeiçoados ao pecado nefando (homossexualidade), entre os quais se não tem por afronta; e o que serve de macho, se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza. (...) Os machos destes tupinambás não são ciosos, e ainda que achem outrem com as mulheres, não matam ninguém por isso, e quando muito espancam as mulheres pelo caso. E as que querem bem aos maridos buscam-lhe moças com que eles se desenfadem,as quais lhe levam à rede onde dormem, onde lhes pedem muito que se queiram deitar com os maridos (...).”

Num mesmo texto: pedofilia, homossexualidade, incesto e ménage a trois – tudo encarado com normalidade, ou quase isso. Pobre Gabriel, mal sabia que testemunhava uma nação em gestação...


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”

terça-feira, 26 de setembro de 2017

REFORMA, CONTRAREFORMA E O SEXO FOI EMBORA


Martinho Lutero, um dos líderes da reforma protestante, poder-se-ia dizer, era um atormentado pelos assuntos do sexo. Ainda como monge, torturava-se por conta de seus desejos, considerados pecaminosos. Dormiu sobre pedras. Até que percebeu que havia algo a mais no sexo, que vinha sendo desconsiderado na teologia cristã de então.

Ele percebeu que era a atração sexual que levava ao casamento, a assumir o compromisso. Também percebeu que era muito cruel manter jovens no celibato sacerdotal. A permissão para casarem-se evitaria um efeito colateral indesejável do sacerdócio: a vontade de fornicar. Lutero mesmo, ex-padre católico, casou-se com Katharina Von Bora, ex-freira.

A relação da Igreja católica com o sexo era pendular: ora melhorava, ora piorava. Mas ao abrir as portas e sacralizar o sexo conjugal, as Igrejas protestante demonizaram todas as outras formas. A partir de agora, prostituição, fornicação, adultério, sodomia seriam punidos da forma mais dura possível, sem qualquer das temperanças eventualmente concedidas pela Igreja de Roma.

E mais. Ilustração da intelectualidade, artes visuais, poesia, teatro e todas as expressões artísticas que pudessem ser associadas ao prazer e às delícias próprias da Renascença foram todas demonizadas pelas novas Igrejas.

Por fim, mas não menos relevante, os protestantes também extinguiram o perdão. Pecar, confessar-se e se livrar da punição não seria mais possível. Pecou, já era.

O efeito sobre as pessoas mais humildes foi dramático. O primeiro passo foi a extinção de todos os bordéis. Segundo Lutero: “Não é lamentável que nós, cristãos, temos que tolerar em nosso meio casas de má-fama, embora nós todos tenhamos feito o voto de castidade em nosso batismo? Estou ciente de que a resposta comum é a de que é melhor manter casas dessas do que desonrar esposas e moças. Ainda assim, um governo secular, porém cristão, não deveria considerar que esse não é o meio para se livrar de tal odioso costume?”

Não foi fácil. Em diversas cidades a resistência contra a medida levou a enfrentamentos. Lutero então replicou aos desobedientes de suas ordens: “Aqueles que desejam restabelecer essas casas devem primeiro negar o nome de Cristo e reconhecer que, em vez de cristãos, são pagãos.”

A rejeição às prostitutas terminou por trazer outros alvos à baia: adúlteros, mães solteiras e muitos outros passaram a ser atacados por vizinhos. Fornicadores eram expostos em praça pública. Vítimas desse policiamento do comportamento eram demitidas ou expulsas de corporações de ofícios. Mulheres pouco a pouco eram proibidas de andar desacompanhadas.

A Igreja Católica precisava dar uma resposta para não se vê sem fiéis. Primeiramente, trouxe de volta a Inquisição, em 1542, chamando-a de Santo Ofício. Depois convocou o Concílio de Trento, que durou mais de 20 anos. Ao cabo, fora realizada uma reforma administrativa para fortalecer o poder dos órgãos de controle da Igreja. Redefiniu seus dogmas, para reduzir as possibilidades de críticas vindas dos hereges protestantes. A Igreja estava agora mais unida em torne de um único ideal, e mais forte.

Mas o assunto sexo foi pouco “contrareformado” pela Igreja católica. Os padres deveriam continuar a observar o celibato, a virgindade continuaria sacralizada. As proibições à masturbação, poluções noturnas e sexo durante o período menstrual continuavam intactas.

Alguns exageros como o do papa Paulo IV, que mandou pintar vestidos de linho em imagens da obra de Michelangelo na Capela Sistina, foram observados. Iniciou-se também um período de total intolerância à prostituição – embora a ideia de expulsá-las todas de Roma teve como empecilho a extraordinária quantidade de 25 mil mulheres nessa atividade.  

Outra mudança foi a ampliação do leque de fatos sexuais que deveriam ser expostos no confessionário. Às mulheres, restava o confinamento doméstico e a obediência sem critérios ao marido. E assim foi a Igreja católica debater-se por fiéis com os protestantes.

Atores eram tratados como homossexuais ou garotos de programa em diversos países. Atrizes eram sinônimo de prostitutas. A diversos foram negados sepulturas para o enterro.

Banhos públicos foram fechados, sendo que agora havia o argumento sanitário, além dos costumes reprováveis: imaginavam que doenças como sífilis e pestes eram contagiosas e se disseminavam nos banhos públicos. Aliás, tomar banho de água quente passou a Sr pecaminoso, pois atingia a altivez e o vigor. Ele poderia levar ao aborto e ao retardamento mental.

Em meio a essas disputas religiosas, que logo descambaram em guerras civis e externas, os europeus chegaram à América. Poucas décadas após, o espanhol Inácio de Loyola fundou ao lado de outros companheiros uma irmandade religiosa chamada Companhia de Jesus. Sua idéia era iniciar uma conversão em massa, a se iniciar na Palestina. Mas seu início tinha objetivos mais modestos.

Primeiramente o papa criou a Casa Santa Marta, instituição de caridades em Roma, que visava a acolher ex-prostitutas que não demonstrassem vocação para a vida em um convento. O desempenho da Companhia nas tarefas que lhe eram delegadas foi tão grande que a Igreja logo os viu como pontas de lança na sua expansão pelo mundo.

Em pouco tempo estavam presentes na Índia, China, Japão, Filipinas, Malásia, Novo Mundo e muito mais. A conversão ao cristianismo foi, a bem dizer, uma força mais eficiente do que as armas para portugueses e espanhóis. Filhos mestiços nasciam de pais militares ou comerciantes portugueses e mulheres locais, estupradas, feitas concubinas, prostitutas ou mesmo casadas.  

Com a conversão, instalavam-se as novas regras morais: costumes locais eram proibidos e até considerados amaldiçoados, a monogamia passava a ser regra, casamentos segundo os ritos locais eram proibidos em público etc.

Finalmente, em 1560, a Inquisição chegou às colônias, podendo agora os povos subjugados apreciarem o estranho costume europeu de queimar pessoas vivas, em fogueiras, por motivos quase incompreensíveis.
Se a Europa agora se tornava protestante, Portugal e Espanha tornaram o mundo católico. Mas em nenhum lugar esse fato foi mais fantástico do que na América. E foi na América, que a sexualidade indígena desavergonhada mais perturbou os reprimidos europeus.     


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”


RENASCIMENTO E A VOLTA DA SACANAGEM


Mateus Reinaldo Colombo costumava se vangloriar por ter descoberto “a sede do deleite das mulheres”. O que ele julgou ter descoberto, chamou de “amor ou doçura de Vênus”, mas é hoje conhecido como clitóris.
Era 1559 e Colombo certamente estava desatualizado. Esse órgão do prazer feminino estava presente na literatura médica há milênios: gregos, persas e árabes, além das próprias interessadas, ou seja, mulheres curiosas e que gostavam de se acariciar.

Mas é certo que um milênio de monges, bispos e padres recriminando e criminalizando atos sexuais davam certa razão à alegria de Colombo – sim, pode-se dizer que esse Colombo descobriu uma América do sexo, ao menos para os Europeus, quase que com a mesma exatidão de quando se fala da descoberta do outro Colombo.

O enriquecimento de algumas cidades-Estados localizadas na península Itálica no final da Idade Média levaram ao renascimento de ideais artísticos e culturais que remetiam ao período clássico anterior, ocorridos na Grécia e em Roma. Chamam a isso de Renascimento. Tudo isso valia também quando o assunto era sexo!

Em 1353, Giovanni Bocaccio publicou Decameron, reunião de contos, muitos deles eróticos. Matteo Bandello foi outro a publicar histórias como essas. Numa passagem, um moribundo está se confessando com um padre e diz “Divertir-me com rapazinhos era em mim tão natural como beber e comer, e ainda me perguntas se eu pecava contra a natureza! Vai-te, vai-te, que não sabes o que é bom”.    

Também se publicavam muitos livros de poemas eróticos, acompanhados de muitas gravuras igualmente eróticas. Afinal, muita gente não sabia ler, mas gostava de sacanagem. O pintor Giulio Romano se notabilizou como ilustrador erótico na época.

Aliás, a pintura alcançou as técnicas da tridimensionalidade na Renascença, tornando-se capazes de representar o corpo humano nu com perfeição – o que despertou muitas críticas dos mais conservadores e moralistas. A luxúria saía dos pensamentos pecaminosos e tomava as telas e murais.

Multiplicavam-se as pinturas de Vênus envolvida apenas em vestidos transparentes, ninfas nuas atraíam sátiros sedentos. Não sobravam críticas à nova decoração das igrejas, bela e rica, mas que chegava a lembrar templos dedicados a deuses “pagãos”.

Chama a atenção a modificação do padrão de beleza naquele período. Até então, a mulher bela que se costumava retratar era pálida, magra, tinha seios pequenos e trazia a gravidade de quem se guiava por estritos padrões morais. Agora, a bela do Renascimento era uma mulher que não escondia seus desejos, tinha quadris largos, seios proeminentes e tinham muitas gordurinhas. Agora, a mulher magra representava a feiúra, a doença, a pobreza. Talvez fosse conseqüência daqueles tempos em que a abundância somente chegara às mesas aristocráticas.

A vestimenta sofreu transformação semelhante. Os vestidos compridos e de cintura estreita deram lugar a vestidos decotados. Os novos cosméticos apareceram nas pinturas, com mulheres de lábios pintados, maças do rosto rosadas e sobrancelhas bem marcadas.     

O cenário de “renascimento da luxúria” era completado por artistas afamados que desdenhavam da monogamia desfilando com belas e muitas mulheres, aristocratas se lançando vorazmente às suas concubinas. E, como se não bastasse, com o assalto de luxúria que tomou os religiosos, especialmente a Cúria da Igreja romana.

Em 1434, o papa Eugênio IV, durante o concílio da Basileia, declarou: “Das solas dos pés ao cocoruto da cabeça, não há no corpo da Igreja uma única parte sã.” A vida monástica e casta dos monastérios havia ficado no passado. Sobrevam hiostórias de padres que se envolviam frequentemente em brigas, que tinham concubinas e que freqüentavam prostíbulos. Alguns não iam rezar as missas, outros cobravam pela realização dos sacramentos (batismo, confissão...). Alguns clérigos não tinha vocação sacerdotal alguma, mas não demonstravam inclinação para o casamento: suas famílias os levavam compulsoriamente para a vida religiosa.

Conforme se escalava na hierarquia da Igreja, piores se tornavam as histórias de luxúria. Erasmo de Roterdã chegou a declarar: “os papas fazem com que Cristo seja esquecido, acorrentam-no a leis de traficância, desnaturam-lhe os ensinamentos com interpretações manipuladas e matam-no com o seu vergonhoso comportamento.”

O papa era, além de líder religioso, chefe dos Estados Papais. Isso levou famílias poderosas a ambicionarem o cargo, de olho nas possibilidades políticas e na relação entre as diversas cidades-Estados italianas. Os Médici, os Sforza, os Orsini, os della Rovere, os Savelli, todas colocaram filhos na carreira religiosa, conquistaram vagas no Colégio de Cardeiais e, assim, compraram os votos necessários para a escolha do novo papa que mais lhes agradassem.

O papa Sisto IV, famoso por ter encomendado a Capela Sistina, tinha seis sobrinhos entre os 34 cardeais. Fez tantos inimigos que foi acusado de sodomita (homossexual) por um secretário do Senado romano.

Conforme assumia o papel de príncipe de um Estado, o papa se tornava mais corrupto. O papa Inocêncio VIII assumiu o papado tendo já dois filhos ilegítimos – e após isso os reconheceu. Para fechar uma aliança com Florença, nomeou um membro da família Médici cardeal, quando o menino tinha apenas 13 anos de idade. Chagou a hipotecar bens da Igreja para pagar o casamento da filha. Foi só o começo de uma longa história de leilões da fé.

O sucessor de Inocência fazia-o parecer um pecador comedido. O cardeal espanhol Rodrigo Bórgia, após coroado papa Alexandre VI, obviamente subornando o máximo de cardeais do Colégio, alcançou o cume da libertinagem. Teve quatro filhos com a cortesã, Vanozza dei Cattanei. Morava no palácio mais elegante da Itália, próximo à casa de sua cortesã favorita. Também tinha uma segunda cortesão do seu agravo, Giulia Farnese, cujo irmão seria nomeado cardeal, Alessandro Farnese, ou papa Paulo III.

Suas festas eram um capítulo à parte. No “Balé das Castanhas”, ocorrida em 30 de outubro de 1501, após o jantar, Alexandre pôs 50 cortesãs para dançarem, inicialmente vestidas, depois nuas. Depois ele mandou que se pusessem os candelabros no chão e espalhou castanhas por todo o piso. As moças tinham que apanhar as castanhas engatinhando entre as velas, divertindo os homens em posições bastante sensuais. Fazia campeonatos em que distribuía prêmios a quem ejaculassem o maior número de vezes com prostitutas. Além disso, boatos davam conta de que tanto Alexandre VI quanto seu filho mantinham relações incestuosas com Lucrécia, sua filha.

Rodrigo Bórgia tinha uma mente tão luxuriosa quanto estratégica: casou seus filhos com as nobrezas da Itália, da Espanha e da França. Era um dos clãs mais poderosos da Europa.

Júlio II, sucessor de Alexandre VI, destacou-se como um grande mecenas. Bancou Michelangelo e Rafael, com seus quadros e esculturas nus, no Vaticano e na Capela Sistina e em outros lugares.

A revolta contra o que se considerava práticas pecaminosas no seio da Igreja despertou ódios, como no padre Jerônimo Savonarola, que pregava abertamente contra os papas em Florença. Quando passou a criticar o papa Alexandre VI, em 1497, foi excomungado pelo próprio Alexandre, torturado, enforcado e queimado vivo em praça pública.

Com o tempo, os insatisfeitos começaram a clamar por reformas. Foi isso o que fez Martinho Lutero, em 1517, quando pregou suas 95 teses na porta da Igreja de Wittenberg. Martinho questionou: Por que o papa não esvazia o purgatório em nome do amor sagrado e da enorme necessidade das almas que lá estão, se ele resgata inúmeras almas em troca de um dinheirinho miserável para construir uma igreja?”

Mas agora os nobres também estavam incomodados com os abusos fiscais para financiar guerras e cruzadas, construir igrejas, patrocinar artistas e financiar o luxo. Logo surgiu em Genebra outra organização do tipo, fundada por João Calvino. Na Inglaterra, Henrique VII fundou outra denominação religiosa diretamente subordinada ao Estado, para permitir seu divórcio de Catarina de Aragão, que não tinha gerado herdeiros.

Esses fatos estavam no âmbito da Reforma Protestante, que baixou a temperatura da vida sexual na Europa a níveis glaciais.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

COMO CRISTO CONQUISTOU A EUROPA


O Império romano viveu seu auge nos séculos I e II. Depois disso se iniciou sua derrocada, até 476 d.C., com a deposição do imperador Rômulo Augusto.

O milênio seguinte seria chamado de Idade Média, em geral encarado como um retrocesso da civilização. Foi também a época em que o cristianismo se expandiu e se consolidou em todo o continente. Após a queda do Império, a Europa perdeu sua unidade econômica, política e militar; mas a unidade cultural foi garantida pelo Cristianismo. A conversão se deu sobre cada um dos povos que habitavam a região: as tribos germânicas, cujos ataques abalaram as fronteiras do Império, foram convertidas no século V; os visigodos, entre 382 e 395 d.C.; os ostrogodos, entre 456 e 472 d.C.; os lombardos, entre 488 e 505 d.C.; os borgonheses, entre 412 e 436 d.C.; os vândalos, entre 409 e 417 d.C.

Assim foram formados os reinos cristãos que pululariam o continente.

Bispos, pertencentes a famílias de aristocratas, governavam cidades e aldeias a partir de suas catedrais. Arcebispos partilharam o território cristão conforme a estrutura administrativa do Império: dioceses. No século VI, o arcebispo de Roma recebeu uma denominação específica: Papa.

O poder da Igreja se expressava pela cobrança do dízimo, pelo fato de suas terras não serem divididas entre herdeiros e pelo quase monopólio da escrita. Era ela quem fornecia os escribas que transcreviam para o papel, tanto leis quanto a história da origem dos mais diversos povos: em geral, elas ganharam um novo final, com direito a conversão e promessas de um futura feliz, do alto da nova fé.

Mas a mudança para o cristianismo demoraria bastante para se consolidar. São Bonifácio viveu entreveros com os anglo-saxões, pois tanto os católicos quanto os pagãos “recusam-se a ter esposas legítimas e continuam a viver na luxúria e no adultério à maneira dos cavalos rinchantes e dos asnos zurrantes.”

O rei Etelbado, em 756 d.C., continuava a praguejar contra os costumes anglo-saxões: “O vosso desprezo pelo matrimônio legal, se fora por causa da castidade, seria louvável; mas uma vez que vos chafurdais na luxúria e até em adultério com freiras, é vergonhoso e condenável. Ouvimos dizer que quase todos os nobres da Mércia seguem o vosso exemplo, abandonam suas esposas legitimas e vivem numa intimidade culposa com adúlteras e freiras.”  

Os pecados eram muitos, freqüentes e a necessidade de confessá-los era condição básica para o perdão. Poucos confessavam pecados como roubo, feitiçaria etc. Mas todos cometiam pecados da carne e o assunto sexo passou a ser o mais disputado dos confessionários. Dever-se-ia confessar tudo: sonhos, pensamentos, masturbações, posições sexuais, infidelidades. As penitências eram definidas pelos próprios padres – passar um ano a pão e água era uma das mais comuns.

Mas a necessidade de se homogeneizarem os “castigos” levou à elaboração dos penitenciais: manuais que traziam penas preestabelecidas para diversos pecados. O mais famoso foi o penitencial de Cummeans, do século VII. Ele dispunha, por exemplo que: aquele que pecar com um animal deverá cumprir penitência por um ano; se pecar consio mesmo, deverá cumprir três períodos de 40 dias; se for com um garoto de 15 anos, cumprirá por 40 dias; aquele que corromper sua mãe deverá cumprir penitência por três anos, com exílio perpétuo; aqueles que cometerem sodomia deverão cumprir penitência por sete anos; coito interfemural, pena de 2 anos; pecar pensando em fornicação, mesmo não a realizando, pena de um ano; mas se for atacado por pensamentos arrebatadores sobre sexo, pena de sete dias; polução na cama levaria imediatamente a pessoa a levantar-se, ajoelhar-se e cantar nove salmos, além de passar o dia seguinte a pão e água; se um leigo que desonrar a mulher ou a filha virgem de seu vizinho deverá cumprir penitência por um ano a pão e água, sem sua própria mulher... E muito mais.   

Somando todas as datas em que os cônjuges estavam proibidos de ter relações sexuais, chegava-se a 91 dia por ano (sem levar em conta os períodos de menstruação). E a fornicação (sexo fora do casamento) era considerada pecado mais grave do que o homicídios, segundo um penitencial do século XV.
Para aqueles que precisavam de um incentivo a mais para ir se confessar com um padre, contavam-se nos sermões histórias tenebrosas de filhos de casais que não se confessavam, nascidas com defeitos ou com lepra.

Esse tipo de ameaça era necessário. Afinal, a conversão nunca vinha sem resistência. Pr exemplo, no dia 14 de janeiro, diversas cidades francesas comemoravam a Festa do Asno, e que uma jovem se fantasiava de Virgem Maria, fingindo fugir do Egito. Lá chegando, um jumento que a acompanhara ficava a ouvir a missa, ao lado do altar. Havia também a Festa dos Loucos, em que se fazia piada da alta hierarquia eclesiástica.

Sem dúvidas a perseguição da Igreja aos pecados da carne deu origem a um cinismo desmedido e ao deboche mal disfarçado.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”

A IDADE MÉDIA E A PERSEGUIÇÃO À LIBERDADE SEXUAL


Após ter sido estatizada pelo Império Romano, a Igreja Católica passou a ser a líder da moralidade no Ocidente. Os primeiros séculos do cristianismo foram marcados pela oposição entre a moralidade pré-cristã e a nova moralidade, cristã.

Por muitos milênios, o sexo era uma fonte de prazer a ser celebrado: deuses do amor foram criados, festas regadas a vinho. Mesmo defendendo as virtudes das matronas (típica dona de casa romana, dedicada à família e fiel ao marido), o Império não havia restringido as liberdades sexuais, nem proibido prostitutas, nem a manutenção de concubinas.

Agora, a religião disseminada por Paulo se opunha a qualquer prazer sexual. Aos poucos, romanos iam abraçando os ideais da castidade, a restrição do sexo ao casamento (e quando a esposa não estivesse menstruada), a condenação do aborto e da bissexualidade.  A crise profunda vivida ao longo da decadência do Império ajudou sobremaneira nessa conversão em massa. Povos cansados da pobreza e da violência tornavam-se cristãos a um ritmo impressionante.

O resultado foi um “império da fé”, uma igreja única, universal: daí o nome “católica”, termo derivado da palavra grega para única. Mas seu crescimento, inevitavelmente levaria à sua cisão em seitas diversas. Era necessário homogeneizar a interpretação da palavra de Deus, vedar textos que contradissessem o cânone aceito – como os textos apócrifos.

O passo inicial para essa padronização foi o Concílio de Nicéia, sob a batuta do imperador Constantino, em 325 d.C. Quatro padres se destacaram nessas ocasiões, passando a serem referenciados como os “Doutores da Igreja”: Ambrósio de Milão, Jerônimo de Estridão, Agostinho de Hipona e Gregório Magno. Apesar de os assuntos abordados nesses encontros fossem os mais variados, tudo o que dizia respeito aos “pecados da carne” recebeu o foco das atenções. Seguindo a doutrina da “sexofobia” de Pàulo, agora até pensamentos poderiam levar ao cometimento de pecados.

Ambrósio de Milão resumiu bem seu horror ao sexo: “Mesmo um bom casamento é escravidão. O que, logo, será um casamento ruim?” Ambrósio só via virtude na virgindade: virgem era aquela que tinha Deus por esposo. Se a desgraça se abatera sobre o mundo por causa de uma mulher, Eva, fora salvo por uma virgem, a virgem Maria...

Jerônimo é mais famoso como o tradutor da Bíblia do hebraico e do grego para o latim. Ele repudiava o concubinato, encarado com normalidade durante o Império, incentivava que as pessoas largassem tudo em nome de Cristo, aconselhava as mães a oferecerem o primeiro filho a Deus, em sacrifício, e pedia que as garotas mantivessem sua virgindade em casa, ainda que não pudessem entrar para um convento. Sua aversão ao casamento era a mesma: “Eu somente louvo o casamento por causa das virgens que produz. Colho a rosa do espinho, o ouro da terra, a pérola da ostra.”

Mas suas críticas também alcançavam as virgens: “Note, porém, que há também as virgens más. O Senhor diz que ‘qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela.’ A virgindade pode, portanto, perder-se até com um pensamento. Tais são as virgens más; virgens de carne, mas não de espírito.”  

Mas a Igreja acumulava poder, e com o poder vinha a luxúria. Era inquestionável a decadência moral que atingia o clero, que praticava os mesmos pecados dos aristocratas pagãos de outrora. Jerônimo ficava irado com os clérigos que bajulavam as ricas viúvas romanas: “Pareciam mais noivos do que religiosos. O clero, que deveria inspirar assombro com seus ensinamentos e autoridade, beija essas senhoras na testa e, colocando as mãos para frente como se para abençoar, cobra dinheiro pelas visitas.”

Mas o mais celebrado dos três Doutores foi Agostinho de Hipona, mais tarde Santo Agostinho. Foi o pilar da Igreja cristã mais destacado após Paulo. Foi ele quem trouxe o pensamento grego para o arcabouço teológico da Igreja, ao adaptar a teoria da alma de Platão. Dividiu a alma em três: a alma concupiscente, responsável pelo apetite sexual; a alma irascível, sede dos sentimentos; e a alma racional, que controlava as outras duas. Era cedendo à concupiscência da carne que o homem se afastava de Deus.

Mas Agostinho não nasceu santo. Em Confissões, sua autobiografia, ele descreve seu processo de conversão. E seu maior esforço foi despendido no sentido de superar seus instintos sexuais: “Desde a adolescência, ardi em desejos de me satisfazer em coisas baixas, ousando entregar-me como animal a vários e tenebrosos amores! Desgatou-se a beleza da minha alma e apodreci aos Teus olhos.”

Agostinho teve de interromper seus estudos aos 16 anos, por problemas financeiros de sua família. Foi quando, identificou, seus instintos sexuais tomaram seu mente. Sua Mãe, Santa Mônica, tentava mantê-lo no caminho de Deus, mas Agostinho insistia em desviar-se. Seu pai, adúltero confesso e desabrido, mostrava orgulho por cada sinal de virilidade demonstrado pelo filho. Passou a andar com outro homens e a se orgulhar de conquistas sexuais.

Aos trinta anos, tornou-se professor de retórica. Tinha uma concubina desde os dezessete anos, com quem tinha um filho. Embora fosse algo bastante comum, sua mãe não aceitava aquele arranjo e o obrigou a despacha a moça para um convento na África. Depois, contraiu noivado com uma menina de apenas 10 anos. Mas o casamento só seria possível após ela completar doze anos.

Mas Agostinho era incontrolável naquele momento de sua vida. Arranjou outra concubina e pronunciou uma de suas frases imortais, direcionada a Deus: “Daí-me castidade e continência, porém não agora.”

Mas eis que a busca da verdade toma Agostinho, que a encontra nas epístolas de Paulo. Na Páscoa de 387 d.C., foi à catedral de Milão, onde foi batizado pelo bispo Ambrósio (de Milão, seu tutor na altura). Convertido, agora cristão ferrenho, Agostinho partiu para a África, onde atuou como monge. Estava agora magro, apático, e destituído de todo o seu patrimônio, do qual abriu mão em nome dos pobres. Em Hipona, atualmente Argélia, construiu um mosteiro. Após, foi nomeado bispo.  

Ao longo de sua extensa obra, nenhum tema foi tão trabalhado quanto o pecado original. O tema é antigo, veio do Antigo Testamento. A história também é bastante conhecida: Adão recebe de Eva o fruto proibido da árvore do conhecimento e o come; daí em diante os dois passam a ter o conhecimento do bem e do mal, descobrem-se nus e se cobrem com uma tanga de folhas de figueira. A desobediência custa ao casal a imortalidade e passam a sentir dores. A mulher foi condenada a sofrer de dores do parto e a viver subordinada ao homem; o homem foi condenado a viver do suor do próprio trabalho: “do suor do teu rosto comerás o pão”.

O único acréscimo a essa história, dado pelos cristãos, foi o nome: pecado original. Todos os humanos herdaram esse pecado e por ele estão condenados a priori. É ele quem explica porque Deus deixa inocentes morrerem, por exemplo (é tão inocente assim, ou carrega um pecado desde o nascimento?).

O mandamento divino “crescei e multiplicai-vos”, somado à simples existência da mulher, quem Deus disse que deveria ser esposa do homem, tornavam um tanto complexo encaixar o pecado da carne. Agostinho resolveu essa contradição defendendo que, antes do pecado original, existia o desejo divino de que os homens proliferassem na Terra. Mas, antes do pecado original, a excitação dos órgãos sexuais ocorria por motivos racionais, pela razão! Isso é o que está explícito em Cidade de Deus, sua monumental obra. A fecundação, portanto, ocorreria desacompanhada da luxúria e da vergonha. Ao simples pensamento “Vamos nos reproduzir?”, seguir-se-ia a copulação. Ter o pênis ereto seria um processo físico como dar um passo adiante. Tudo feito, mas sem incorrer na maldição dos sentidos.

Mas tudo isso só acontecia no Jardim do Éden. Mas de lá fomos expulsos. Desde então o sexo passou a ser indissociável do pecado da luxúria, e essa maldição é passada naturalmente, de geração em geração. Mas havia um fim louvável possível para o ato sexual: procriação.

Portanto o casamento seria, segundo Agostinho, um meio-de-campo: comunica um lado positivo (filhos, sacramento) com um lado negativo (sexo, ainda que conjugal). O casamento era, assim, necessário para trazer um tanto de razão a algo tão condenável, justamente por não ser racional.

Já Gregório Magno procurou por um ponto final no sexo casual: era pecado capital!     


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

O APÓSTOLO PAULO E A AVERSÃO AO SEXO


Paulo foi o principal teólogo do cristianismo ainda no berço. Sua doutrina foi exposta em suas epístolas (cartas): escreveu uma aos romanos, duas aos coríntios e uma infinidade de outras aos gálatas, efésios, colossenses, tessalonicensses.

Dos 27 livros do Novo Testamento, 13 teriam sido escritos por ele. E são neles que se encontram sua maneira de encarar os assuntos do sexo.

Paulo via o nosso corpo como “membro de Cristo” – um templo do Espírito Santo, a serviço do Senhor. Portanto, quando um homem se deitava com uma prostituta, seu corpo e o dela se tornavam apenas um, levando a prostituta a fazer parte do Espírito Santo, fazendo-a um templo do Senhor.

Paulo achava isso errado e aconselhava que se fizesse como ele mesmo fazia: nada de sexo. Nas suas palavras: “é bom ao homem não tocar em mulher.”

Havia mais um motivo para a castidade absoluta de Paulo. Ele entendia que solteiros teriam mais disponibilidade para cuidar das coisas de Deus; enquanto os casados despenderiam tempo demais tentando agradar ao cônjuge.

Aos que não tinham a mesma disposição para a castidade, Paulo aconselhava o casamento, como alternativa a passar a eternidade queimando no fogo do inferno: “bom seria que o homem não tocasse a mulher; mas, por causa da fornicação, é melhor que cada um tenha sua própria mulher, e cada uma tenha seu próprio marido.”

Paulo vedava um novo casamento a quem se separasse. Dizia também que as mulheres deveriam obedecer aos maridos. Para Paulo, a união do matrimônio não era de direitos iguais. Ele via o homem como mediador entre Deus e a mulher.

Portanto as mulheres estavam proibidas de exercer funções sacerdotais. O homem também não estava obrigado a cobrir sua cabeça com um véu, por ser ele a imagem da perfeição divina; já a mulher deveria cobrir sua cabeça, pois ela era a glória do homem, ao ser feita a partir de sua costela. Nas palavras do apóstolo: “se a mulher não se cobre com véu, mande cortar os cabelos”.

Para os momentos de celebração religiosa, assim Paulo aconselhava o comportamento feminino: “Durante as instruções, que a mulher conserve o silêncio, com toda submissão. Eu não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Que ela conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão.” Também exigia que elas vestissem roupas decentes e se comportassem com modéstia, piedosamente.

Típica moralidade judaica somada à misoginia grega...


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”


NOS INFERNINHOS DO IMPÉRIO


No dia 1º de abril, o Império Romano ficava mais agitado. Enquanto as matronas, mães de família respeitáveis, renovavam seus votos à deus Vênus Verticordia, as prostitutas invadiam os banhos romanos à busca de clientes. Essas mulheres acendiam incensos em nome da deusa Fortuna Virilis.

Para Roma afluíam pessoas de todas as partes, em busca do sucesso: astrólogos, sacerdotes, artistas, gladiadores... cafetões e prostitutas.

O comércio de sexo tinha muitas prestadoras “possíveis”: escravas sexuais, prostitutas livres, cortesãs.   
Os locais onde ocorriam os “serviços” eram muitos e variados. Um dos mais conhecidos eram os labirintos do bairro de Suburra. As arcadas de teatros, circos e estádios eram também bastante concorridas: arco em latim é chamado de fornix; daí o termo fornicação.

Pelas ruas de Roma podia-se cruzar com as “scorta erratica” – atualmente chamadas de vagabundas, putas. Eram prostitutas clandestinas, sem autorização e sem local para receber seus clientes.

Nas tavernas, todas as mulheres eram consideradas prostitutas: as copae (garçonetes), as ambubiae (cantoras), as citharistae (harpistas), cimbalistrae (tocadoras de címbalo), dentre outras. Eram muito baratas, daí serem chamadas genericamente de “blitidae”, nome de uma bebida barata e de péssima qualidade.

Os banhos públicos romanos eram dos locais mais freqüentados na cidade. Era onde se relaxa, conversava. No início eram separados em masculinos e femininos. Mas logo prostitutas passaram a freqüentar os banhos masculinos com tal assiduidade que se instalaram cubículos individuais. Ali eram realizadas massagens à base de óleos aromáticos, muitas vezes terminando em sexo oral, a cargo das “fellatrices” – profissionais que deram origem à palavra felação.

As prostitutas oficiais realizavam seus encontros em “lupanares” – covis das lobas, hoje conhecidos como puteiros. Esses locais deveriam ser identificados e as garotas ficavam nuas, à espera dos clientes. Eram bem adornadas com o espírito do negócio: estátuas e murais eróticos, luminárias em formato de órgãos sexuais. A qualidade das instalações variava conforme o bairro onde se localizavam.

Ao se deixar a cidade, deperavam-se mais prostitutas diante de si. Algumas ocupavam pequenas construções de pedra, dentro de moinhos de trigo: chamavam-se aelicariae (ou garotas do moinho). As vendedoras de pãezinhos em formato de pênis e vagina dentro dos templos de Vênus e Príapo também recebiam esse nome.

Os bosques eram habitados pelas lupae (lobas). Elas emitiam uivos para atrair clientes. À noite, os cemitérios eram invadidos pelas “bustuariae”: de dia trabalhavam como carpideiras, mulheres pagas para chorar em enterros; à noite, recebiam seus clientes sobre os túmulos.       

As prostitutas, durante muito tempo, trabalharam sem qualquer regulamentação. O imperador Augusto, no entanto, instituiu um registro compulsório. Agora elas deveriam informar nome, idade, local de nascimento e pagar uma taxa para emissão da licença. A partir de então recebiam o nome de “meretrices”, que significa merecedoras.

Aquelas que não procedessem ao registro eram chamadas de “prostibulae”, ou prostitutas. Esse nome se deve ao fato de que ficavam em frente aos “stabulum”, locais edificados para acomodar cavalos (estábulos), mas transformados em puteiros (tavernas) de baixíssimo nível.

Com o tempo surgiu outro tipo de prostituta, que se prostituía para viver melhor, embora já tivessem uma fonte de renda razoável. Eram chamadas de cortesãs e algumas, de fato, viveram em meio a muita abundância.

Eram elegantes e muito caras. Eram parte da ambiente aristocrático do império. Elas conseguiam um nível de independência impensável a uma matrona. A atriz Volúmnia Citéris fazia espetáculos de strip tease, cantava e era amante do general Marco Antônio e de Bruto, senador que assassinou Júlio César. A cortesã Flora foi amante do senador Pompeu.

As cortesãs não vestiam as volumosas vestes típicas das matronas, mas sedas translúcidas e leves. Maquiavam-se logo pela manhã, com o auxílio de escravas. Começavam limpando o creme da noite anterior. Depois, passavam para o cabelo. Aplicavam loções para dar brilho, mais claro ou mais avermelhado, dependendo da moda em voga. Seguia-se uma sessão de aplicação de perfumes, trazidos da Arábia, terminando com uma espécie de babyliss da antiguidade: peça de ferro quente usada para moldar os cachos. Caso quisessem, poderiam usar uma peruca de cabelos importados da Índia.

Passavam então para o rosto, tratado com cremes à base de cevada, chifre de cervos ou mel. Finalizavam a sessão de embelezamento com sombra de antimônio, pó de chumbo branco e tintas as mais variadas.

Por fim, jóias.    

  
Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Luxúria: como ela mudou a história do mundo”


quinta-feira, 21 de setembro de 2017

LIBERDADE EM CÉU LUSITANO


Quando na madrugada de 25 de abril de 1974, a rádio Renascença tocou a música “Grândola, Vila Morena” que havia sido censurada pela ditadura de Salazar, o aís pode respirar aliviado: o regime, finalmente, expirara seu último suspiro.

Exaltados pelos recentes ares de liberdade, jovens oficiais que escutavam a canção entenderam o momento como o sinal para o início das ações orquestradas silenciosamente por meses. O amanhecer trazia tanques e soldados pelas ruas, apontando suas miras para edifícios públicos militares e do Governo, aeroportos, instalações de polícia etc.

Salazar estava morto desde 1970. Em sua casa no Estoril, na varanda, sentado numa cadeira de praia enquanto sua manicure fazia-lhe as unhas, caiu abruptamente da cadeira. Bateu com a cabeça no chão, não deu muita importância ao fato, mas passou a se queixar de cansaço. Levado ao hospital, descobriu-se um coágulo no seu cérebro. Foi submetido a uma cirurgia, mas não sobreviveu.

O sentimento nacional em relação a Salazar ainda hoje se mantém ambíguo: o regime que tirou o país da bancarrota também trouxe uma névoa fascista e autoritária consigo, embora um pouco menos violento. O auge do desrespeito aos direitos humanos ocorreu, certamente, nas colônias africanas, mas os portugueses puderam sentir a ameaça da tortura e das prisões políticas inaceitáveis também.

Salazar foi sucedido no cargo por Marcelo Caetano, até então presidente do Conselho de Ministros e protegido de Salazar. Professor de direito, simpatizava com o regime de Mussolini e atuou ativamente na Constituição do Estado Novo. Depois foi reitor da Universidade de Lisboa. Pediu demissão do cargo após desentender-se com membros do governo, quando sua universidade foi invadida pela polícia sem que se pedisse sua autorização previamente.

Em meio aos movimentos rebeldes, Caetano foi alertado no meio da noite sobre tropas não autorizadas se movimentando por Lisboa. Amanheceu com seu quarte cercado pelos rebeldes. Abriram fogo contra o prédio, mas Caetano concordou recebê-los. Deram voz prisão ao Presidente e exigiram sua renúncia imediata.

Caetano telefonou ao general Spínola, quem recebeu seu pedido de renúncia. Spínola então foi nomeado chefe da Junta de Salvação Nacional, ao lado de outros sete membros.

Dois dias depois Caetano e o Presidente da República (Almirante Américo Tomás) foram transportados de avião até o exílio, no Brasil. Foi o inglório fim de quase 5 décadas de fascismo em Portugal.  

O saldo de mortos e feridos foi baixo. Apenas membros da polícia secreta PIDE abriram fogo contra os soldados quando invadiram sua sede: 2 mortos e 13 feridos. Este golpe militar recebeu o nome de “Revolução dos Cravos” – os soldados traziam cravos presos no cano de suas armas. Multidões saíram às ruas e abraçaram os novos heróis libertadores da pátria.

Mas poucos demonstraram mais exultação do que os jovens que já se preparavam para ir lutar nas guerras colônias na África. Inesperadamente abriram os portões dos quartéis onde eles se concentravam e lhes disseram que poderiam ir sair.

Logo após Portugal viu deixarem os país famílias ricas pró-regime, levando consigo todo o dinheiro e bens de luxo que puderam carregar. Passaram a residir em imóveis de luxo em Paris, Londres e no Rio de Janeiro.

Mas o regime ainda tinha seus apoiadores, especialmente na classe média. Essas pessoas associavam o regime à prosperidade econômica que testemunharam, à segurança e à ordem: os serviços de correio eram muito eficientes, as ruas estavam sempre limpas e varridas, a criminalidade exibia índices insignificantes, as estradas de ferro eram mantidas impecáveis e os trens eram sempre pontuais. Alem disso, pessoalmente Salazar era discreto, seus hábitos eram simples, era claramente honesto e orgulhosamente português.
Nas colônias africanas, contudo, a imagem do ditador não gozava de qualquer prestígio. As guerras coloniais arruinaram a imagem dos portugueses como bons e verdadeiramente interessados no progresso daquela gente. Mortes de jovens enviados ao fronte se multiplicavam e a notícia delas na metrópole arrasava as famílias e a opinião pública. Muitos jovens em idade de alistamento tentavam escapar do país de qualquer maneira. Aos poucos, formaram-se comunidades de jovens portugueses em Amsterdam, Paris, Brasil e África do Sul.

O general Spínola foi nomeado comandante das tropas que lutavam em Guiné. Após enviar relatório a Caetano informando que os portugueses não tinham qualquer chance de vitória, foi repreendido. Demitiu-se, escreveu um livro intitulado “Portugal e o Futuro”, no qual declarava não ver qualquer hipótese de manutenção daquele regime autoritário e centralizador e defendeu referendos acerca da independência de Angola e Moçambique, decididos pela própria população. Sua obra foi censurada, mas ao fim ele conseguiu publicá-la.

Dois meses depois, o governo de Caetano caiu.

Spínola integrou um núcleo de Governo integrado também por Mário Soares, histórico líder socialista, e por Álvaro Cunhal, líder comunista. Ambos estavam exilados no exterior.

O governo dos revolucionários iniciou estatizando bancos e indústrias – e ninguém foi indenizado. Confiscaram grandes terras em nome dos camponeses. A linha claramente comunista dos novos ocupantes do governo levou Spínola a pedir demissão e liderar um grupo de oficiais em direção a um novo golpe de Estado. Quase foi preso, conseguiu seqüestrar um helicóptero e fugiu para a Espanha.

E as promessas de eleições livres não foram cumpridas, nem parecia que seria um dia.

A censura acabou, mas a imprensa foi quase totalmente nacionalizada. Uma ditadura de esquerda se avizinhava. A televisão em Portugal era propriedade do Estado e, após a Revolução, foi ocupada pelos marxistas-leninistas agora donos da bola. Álvaro Cunhal e Mário Soares passaram a contar com todo o tempo do mundo para expor ao país seus planos para o futuro de Portugal.

Realizou-se um embate entre os dois líderes, em que se esperava que o líder comunista desse um banho no concorrente e passasse a ser a grande liderança política nacional. Mas Soares, brilhantemente, inverteu o jogo e levou toda a opinião pública consigo.

Cunhal era líder cujo passado na clandestinidade, quando fundou o Partido Comunista, o moldou. Soares era advogado e fez sua luta contra o fascismo defendendo aqueles que o regime perseguia. Ambos foram presos, torturados e exilados. Em Paris, Soares fundou o Partido Socialista português.

Após a Revolução, Spínola o nomeou Ministro dos Negócios Estrangeiros. Viajou pela Europa toda, quase sempre com recursos doados por partidos socialistas de outros países, defendendo eleições livres em Portugal. Tornou-se uma espécie de símbolo da liberdade em seu país.

Sua postura o tornou principal oposição aos comunistas, que pretendiam uma ditadura do proletariado. Os portugueses passaram a ver em Cunhal, um Salazar de extrema-esquerda.

Foi sob esse clima que se iniciou outro golpe militar em Portugal, em 24 de novembro, agora com o fito de extirpar dos quartéis comandantes associados a Álvaro Cunhal e ao Partido Comunista. O líder desse movimento foi o general Ramalho Eanes, liberal e veterano das guerras africanas.  

Em abril de 1976, Mário Soares foi eleito primeiro-ministro. Ramalho Eanes foi eleito Presidente, sinal claro da gratidão do povo pelo seu feito, quase dois anos antes.

O resultado do período de Salazar, especialmente no seu estertor, foi um atraso social humilhante. Portugal tinha a mais alta taxa de analfabetismo e de tuberculose da Europa. Salazar respondia aos clamores populares com frases como a de que os portugueses deveriam se alimentar de “fado, Fátima e futebol”. A dívida nacional galopava novamente e Salazar ainda se pôs contra a distribuição gratuita de remédios contra a tuberculose.

A independência das colônias africanas ainda impôs o custo de receber mais de 500 mil refugiados, formada especialmente por pessoas da classe média e operários. Voltaram desprovidos de dinheiro, abarrotados em quartos de hotéis, abandonados. Faltava gasolina, dinheiro nos bancos.

Mas havia uma notícia positiva para o governo Soares, que se iniciava. As diversas convulsões pelas quais o país passou levaram à fuga de mais de 10 mil técnicos qualificados nas mais diversas áreas para o exterior. Agora eles retornavam e eram essenciais para a indústria. Também empresários retornaram, dispostos a investir.

O PIB de Portugal galopava agora, o país alcançava seus pares europeus, era chamado de “Tiger economy” por economistas. Um governo prudente conseguiu reduzir a dívida pública a um patamar considerado baixo internacionalmente. Anteriormente, economistas julgavam que a redução daquela dívida custaria duas gerações.

Novas leis para a área social colocaram o país na vanguarda dos direitos civis. O ensino melhorou muito.
Os partidos de direita sumiram – o mais à direita era o Partido Popular. OS comunistas ainda tinham uma imagem positiva, mas galgada a um certo esforço. A excelente gestão que realizaram em Évora foi um desses fatores.

Portugal serviu de modelo para a recuperação dos países do leste europeu. Até Havel foi ao país para se aconselhar sobre uma nova Constituição tcheca. Lech Walesa foi a Fátima, agradecer pela livertação da Polônia.

Depois veio o Cristiano Ronaldo... J    


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A primeira aldeia global”