O pardo Antônio Francisco Granjeiro trabalhava para seu
senhor, o capitão Joaquim Vicente dos Reis, na profissão de alfaiate. Habilidoso,
trabalhando “nas horas vagas do dia e da noite”, com o apoio da esposa,
conseguiu finalmente o dinheiro necessário para pagar sua alforria. Seria
finalmente livre e poderia viver do produto do seu trabalho, que tão bem
realizava.
Recolheu suas economias, procurou seu senhor e fez a
proposta, propondo-se a pagar o valor que o capitão determinasse! Mas a
história que se seguiu saiu bastante diferente do que imaginara.
O capitão Joaquim Vicente dos Reis era indecentemente rico.
Declarou possuir, em 1799: quatro engenhos (produzia açúcar e aguardente),
curral de gado com 43 mil metros quadrados, 900 escravos (na verdade eram mais
de 2 mil), 17 imóveis (16 alugados). A capela do engenho era reconhecida para
celebrações oficiais. Foi um dos maiores doadores de dinheiro para que Portugal
enfrentasse diversas guerras européias, em fins do século XVIII. Era um súdito de
“alto coturno” na Corte.
Porém, segundo seus empregados e escravos, Reis era um homem
mal, cruel mesmo. Nas suas terras fazia valer suas leis. Construiu um
pelourinho em frente à sua capela, onde demonstrava toda a sua brutalidade contra
aqueles que julgava indisciplinados. Diversos morreram nesse local.
Após ser denunciado ao vice-rei, Reis foi obrigado a
destruir seu pelourinho privado. Mas Granjeiro não parou de espancar seus
escravos. Fazia-o do mesmo jeito, no mesmo lugar.
Esses eram os atores da disputa que se seguiu.
A lei da época garantia a liberdade ao escravo que pudesse
pagá-la. Mas o capitão Reis não pretendia concedê-la assim tão facilmente – se
havia uma coisa de que ele não precisava em maior monta era de dinheiro. Como
represália, Reis confeccionou um documento pelo qual doava o escravo alfaiate à
Santa Casa de Misericórdia... de Luanda, em Angola!
Percebendo que a demora nos procedimentos de libertação
estavam muito morosos, Granjeiro procurou a Justiça, quando foi preso e
embarcado compulsoriamente para o seu destino africano.
No entanto, ao aportar em Salvador para uma breve escala,
Granjeiro conseguiu fugir do navio e embarcou noutro, que ia para Lisboa.
Conseguiu audiência com o príncipe regente D. João, explicou a S. M. os
percalços por que passava no Brasil, e obteve sucesso. Aviso régio de 1798
determinava que o conde de Resende avaliasse o valor justo de Granjeiro, para
que este efetuasse o pagamento e obtivesse sua tão desejada liberdade.
Determinou-se também a expedição de seu passaporte: “Manda a
Rainha Nossa Senhora que se não ponha impedimento algum a passar para a Bahia,
e dali com sua família para o Rio de Janeiro – Antônio Francisco Granjeiro.”
Granjeiro foi avaliado em 153 mil e 600 réis. Pagou tal valor
e teve sua sonhada carta de alforria expedida.
Capitão Joaquim não o perdoaria! Só pretendia parar quando
fizesse Granejrio retornar ao cativeiro.
Reis fez o juiz ordinário de Campos prender Granjeiro e
abrir imediatamente um processo contra ele “para averiguação” das “denúncias”
de Reis contra o ex-escravo.
As denuncias acusavam Granjeiro de: ser briguento, desacato,
não atender com presteza e cordialidade às ordens recebidas, desordeiro e de
omitir à Rainha o fato de que fora doado à Santa Casa de Misericórdia de
Luanda. E ainda o acusava de ser fujão.
Não foi difícil a um homem tão poderoso juntar um número
significativo de “testemunhas” que corroborassem tudo o que falara.
Preso na cadeia pública do Rio e estando seu processo tramitando
no Tribunal da Relação, Granjeiro solicitou averiguar com diversos tabeliães do
Rio se havia qualquer registro de ato que o desabonasse. As respostas todas o
favoreciam.
Indicou ainda os nomes de sete testemunhas de defesa. Todas
inocentavam Granjeiro.
Em face de tantas ilegalidades processuais, Granjeiro
solicitou a extinção do processo e o alvará de soltura. O ouvidor e o
corregedor da Comarca, desembargador José Albano Fragoso, encerrou o processo,
mas não deu o despacho de soltura.
Em Lisboa, a rainha ouviu o Conselho Ultramarino, revogou os
atos processuais anteriores, mas confirmou a doação de Granjeiro à Santa Casa
de Misericórdia angolana.
Ainda vivendo seu inferno, Granjeiro escreveu a Dom João
suplicando que retornasse à sua família.
Seja como for, os atos processuais passaram a ser cada vez
mais esparsos. O último, solicita parecer ao conselheiro chanceler da Relação
do Rio.
O final da história, ainda é um mistério...
Rubem L. de F. Auto
Fonte: Livro “Histórias de Conflitos no Rio de Janeiro
Colonial”
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