A religião oficial e compulsória no Brasil colonial era a
Católica Romana. Praticar o protestantismo era crime punido com prisão, após
denúncia ao Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Evidentemente era proibido
erguer templos de qualquer outra religião.
Situação diversa ocorria quando da visita de autoridades
estrangeiras, caso de muitos representantes de nações europeias, muitas delas
protestantes. Especialmente quando ocorria prévia recomendação régia para que o
visitante fosse tratado com toda a dignidade. Discriminá-lo poderia ser
encarado como ofensa ao Rei português.
Foi esse o caso do marechal de campo alemão Johann Henrich Bohn
– devidamente aportuguesado para João Henrique Bohm. Fora nomeado por dom José
I, em 1767, para o cargo de tenente-geral: encarregado do Governo e
Comandamento de todas as Tropas de Infantaria, Cavalaria e Artilharia no
território brasileiro e de sua Inspeção Geral. Desejava o rei que seus
regimentos dispusessem da mesma capacidade e disciplina daquelas próprias das
tropas alemães.
Acompanhando o marechal alemão, vieram os capitães
engenheiros Elias Schierling e Francisco João Rocio.
O vice-rei conde da Cunha forneceu ao ilustre recém-chegado:
casa, carruagem, cavalos, criados e guarda de honra. A residência de Bohm era a
casa construída pelo ex-tesoureiro da Casa da Moeda, Alexandre de Faria e Silva,
alugada para o novo morador.
Tantos cuidados pareciam ter sido suficientes. Entretanto,
um pequeno “detalhe” passou despercebido às autoridades locais: não se pagou o
soldo a que o marechal fazia jus. Este reclamara também de ter sido tratado
como se fora um exilado. O vice-rei, apavorado pela reação explosiva do alemão,
entrou em contato com a Corte e explicou que não fora comunicado do valor do
soldo acordado com o valho militar; por isso não o pagou até então.
Rapidamente a pendência foi sanada.
O tenente-geral Johann Henrich Bohm foi fundamental na
organização do Exército brasileiro, além de ter sido o principal comandante
durante as rusgas entre Portugal e Espanha na região Sul do Brasil, quando os
lusitanos conseguiram fazer valer a posse sobre as terras demarcadas pelo
Tratado de Santo Ildefonso, de 1777.
Aos 74 anos, Bohm ainda cultivava sua paixão por passear a
cavalo. Num desses passeios, cerca da Praia de Botafogo, seu cavalo ficou
enganchado numa rede de pescadores e ambos caíram. No entanto, o cavalo caiu
sobre Bohm, ferindo-o gravemente. Passantes conseguiram cortar a corda, mas o tenente-geral
já se encontrava desacordado.
Bohm foi levado rapidamente para sua residência, onde foi
acompanhado por uma equipe de médicos e cirurgiões respeitados, tratados como “Professores”.
Constataram que sua perna direita estava quebrada , tendo seu fêmur saído da
posição correta. Puderam observar que Bohm também passara a sofrer sérias
convulsões em várias partes do corpo.
Um leve toque em seu corpo era capaz de desencadear dores
terríveis. Ao tentar repor seu fêmur na posição correta, Bohm gritou
enlouquecidamente por quase 10 minutos. Desistiram do procedimento.
Bohm passou a suar bicas. Administraram-lhe soro de arnica e
ópio, mas sem sucesso, haja vista apresentar quadro de convulsão e fortes
delírios. Sofreu de febres contínuas até o dia 17 do mês seguinte, quando teve “um
acidente apoplético sem respiração sensível nem pulso, por alguns minutos. Além
disso, mostrava sofrer delírios os mais diversos.
Após rápida melhora, Bohm pediu a presença do bispo dom José
Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco, seu amigo. O biso procurava
acamá-lo e reconfortá-lo nos seus momentos de lucidez.
Presenciaram-se também momentos de delírio, durante os quais
declarava ora simpatia à religião católica, ora repúdio.
No dia 21, Bohm sofreu outra crise, fazendo uma violenta
crise, por quase uma hora e meia. Nenhum remédio parecia garantir-lhe qualquer
melhora. Somente saiu daquele quadro e recobrou os sentidos após dor intensa,
voluntariamente provocada pelos doutores, após moverem seu fêmur.
Pelos cinco dias seguidos, Bohm não conseguiu dormir, o que
o levou, no dia 24, a um quadro de completo maníaco.
Em 25 de julho de 1782, Bohm entrou em um quadro de letargia
que pareceu a muitos ser o seu fim. Mais uma vez, Bohm mandou chamar o bispo à
sua presença. Aos presentes, parecia que o velho militar desejava morrer
católico. Assoberbados, indagaram mais uma vez se esse era realmente seu
desejo. Respondeu Bohm: “... mando que o avisem já”. Manifestou ainda o temor
de que não resistisse até a chegada do religioso, seu amigo.
Ainda que doente e febril, o bispo atendeu ao chamado do
amigo.
Incrivelmente, quando da chagada do bispo, Bohm
encontrava-se alegre, animado. Surpreendentemente, Bohm beijou a “Santa Cruz
Peitoral” do bispo e solicitou a “reconciliação”, “pois queria morrer na
comunicação da Santa Igreja Católica Romana, reconhecendo os erros em que até
ali tinha vivido em Calvinista; e dar ao mundo uma satisfação pública, com a
sua reconciliação”.
Naquela noite, Bohm recebeu os Sacramentos da Penitência, da
Eucaristia e da Extrema-Unção. Este último, por receio dos Professores de que
não vivesse muitas oras, ainda.
Nas horas seguintes, Bohm parecia sereno e tranqüilo. Disse
ao médico que o assistia: “Que admirável mudança! A certeza, em que tenho agora
juízo, ou o vacilante, que estava há vinte e quatro horas, quando não podia
combinar umas palavras com outras: louvado seja Deus!”.
Agora católico, Johann Henrich Bohm recuperou-se
gradativamente, mental e fisicamente. Os remédios curaram-no da gangrena. Os
Professores puderam ainda recolocar sua perna na posição correta.
Faleceu em 22 de dezembro de 1783, tendo sido enterrado na
cidade do Rio de Janeiro.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: Livro “Histórias de Conflitos no Rio de Janeiro
Colonial”
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