Embora protegidos por lei, no século XIX um índio poderia
ser feito escravo caso fosse derrotado em “guerra justa”. Após a chegada da
família Real, em 1808, o príncipe regente decretou guerra contra os índios
botocudos de Minas Gerais. Muitos deles foram ameaçados com a escravidão.
Os dóceis que assumissem a religião católica e a viver em
aldeias, permaneciam sob a proteção do Rei. Eram reconhecidos como cidadão e,
em tese, poderiam assumir qualquer cargo público.
Em geral, a Coroa provia terras de área de 2 léguas
quadradas com o fim de conformar patrimônio da aldeia. Era normalmente dada a
quem tivesse escravos e recursos suficientes para montar um engenho de açúcar.
Entretanto, não foi isso que ocorreu na Aldeia de Itaguaí.
Como se localizava na Fazenda de Santa Cruz, icônica propriedade da Companhia
de Jesus, não foram doadas sesmarias. As áreas indígenas deveria ser doadas
pela própria Companhia.
Após a expulsão dos jesuítas do Reino, em 1759, suas
propriedades passaram à Coroa. Somente quando a Coroa resolveu por privatizar o
eficiente engenho estatal de Itaguaí, no fim do século XVIII, percebeu-se que a
doação não havia sido realizada.
O resultado dessa omissão foi que os índios lá residentes
poderiam ser expulsos sem direito a indenização. Foi exatamente esse cenário
que o capitão-mor da aldeia, Jose Pires Tavares, denunciou à rainha Don Maria
I, em carta de 1785. Invasores de terras ameaçavam constantemente os índios. O
capitão-mor chegou a descrever o conluio entre autoridades e particulares,
interessados na expulsão dos índios.
A resposta de Dona Maria I foi favorável aos invasores, pois
recomendou que procurassem outro local para erguer sua aldeia, onde contariam
com o auxílio estatal. Os índios insistiram e disseram que permaneceriam onde
já estavam.
Uma delegação de índios e índias foi despachada para o Rio,
onde conseguiram audiência com o vice-rei. Após imploraram apoio à sua causa,
foram aprisionados na fortaleza da Ilha das Cobras. Foram quase duas semanas no
cárcere.
O ouvidor geral manteve a decisão régia: os índios poderiam
ir aonde quisessem, desde que pelo menos a 10 léguas da Fazenda de Santa Cruz.
Passo seguinte, os índios foram presos por soldados e
escravos sob o comando do inspetor Manuel Joaquim da Silva e Castro. Foram levados
cativos para a Aldeia de Mangaratiba.
José Pires Tavares conseguiu fugir, procurou amigos e
conseguiu viajar para Lisboa, em busca de ajuda.
No Rio, autoridades confeccionaram um parecer totalmente
desfavorável à causa indígena. Foram qualificados como: bêbados, ladrões e
preguiçosos; as índias eram prostitutas, dadas a se deitarem com boiadeiros e
soldados que passavam pelas aldeias... Por fim, sugeriam sua transferência para
as Aldeias de Mangaratiba ou José Del-Rei.
Por fim, o parecer tratava da questão da titularidade das
terras (desfavorável aos índios) e procurava desqualificar o capitão-mor, ao
anexar documentos de transferência de propriedade rural, acusando-o de estar
interessado apenas em se apossar de terras, torná-las sítios e vendê-las
posteriormente.
Esse litígio tomou um rumo totalmente diverso após a chegada
do novo vice-rei, conde de Resende. Este era contrário à privatização da Fazenda
de Santa Cruz. Preferia que o Estado a explorasse melhor.
O novo vice-rei, portanto, construiu dois engenhos para a
produção de açúcar: Itaguai e Piai. Também ergueu uma fábrica de farinha de
mandioca. Reativou os currais (havia 17 no total) e diversificou a produção
agrícola: milho, feijão, mandioca, anil, café e arroz.
O resultado foram olhares ainda mais ambiciosos em direção à
Fazenda. Choveram propostas de compra daquelas terras. Um dos argumentos, ainda
hoje repetido à exaustão pelos privatistas, era que o Estado não saberia gerir
propriedades rurais... justamente quem a criou!
Por incrível que pareça, tais argumentos tiveram efeito
sobre a Fazenda Real, que mandou avaliar a propriedade. No entanto a venda
deveria ser precedida de parecer do vice-rei, que foi totalmente contrário à
operação. Argumentou que a Fazenda era lucrativa e especialmente importante
para fornecer alimentos aos contingentes militares, podendo-se assim evitar os
preços especulativos praticados no mercado. Fez notar ainda a importâncias da madeira de
lei existente na Fazenda, como matéria-prima para a construção de embarcações.
Continuando em suas linhas, o conde de Resende desferiu
ainda críticas às avaliações feitas pelos peritos. Pareciam a ele bastante
coniventes com os interesses dos compradores, posto serem exageradamente
baixos.
Resultado: enquanto o conde aqui esteve, a Fazenda esteve
protegida, assim como os índios em seu interior.
No entanto o mandato do conde terminou em 1801. Em 1804, a
venda foi concluída e os índios, expulsos para uma conservatória (espécie de reserva
indígena, sob responsabilidade de um juiz).
Rubem L. de F. Auto
Fonte: Livro “Histórias de Conflitos no Rio de Janeiro
Colonial”
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