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terça-feira, 28 de agosto de 2018

CINEMA E CONTRACULTURA – SEM ORIGEM E SEM DESTINO



O verão de 1969, nos EUA, é historicamente lembrado por um festival de bandas de rock, ocorrido numa localidade no norte do estado de NY e cuja marca ressoa ainda hoje: Woodstock. Mas não foi apenas isso.

Foi em 1969 que o homem pôs os pés na lua, em meio aos temores da Guerra Fria. Foi em 1969 que o movimento gay “saiu do armário”, numa época em que era crime ser gay em muitos estados norte americanos.  O estopim se deu em meio aos protestos em Stonewall, bar localizado no Greenwich Village, NY, cujo estopim foi uma violenta repressão policial. Foi também em 1969 que estreou a peça “Oh! Calcuta”, celebrizada por seus atores se apresentarem nus.

O ano 1969 também seria marcado pela volta das apresentações de Elvis Presley, após 10 anos longe dos palcos. Seria o ano que marcaria ainda a morte de Brian Jones, um dos fundadores dos Rolling Stones.

De memória ainda mais triste foi o brutal assassinato da esposa do cineasta polonês Roman Polanski, além de alguns convidados da mansão que alugara em Los Angeles, pelos membros da “família” do sociopata Charles Manson.

Em 1969 ocorreu uma revolução na indústria cinematográfica – e o início dessa revolução se deu de maneira completamente inesperada e surpreendente. Na década de 1940, foi produzido um desenho de Walt Disney chamado Fantasia. Não chamou a atenção e muito menos fez sucesso, mas cerca de 30 anos após foi reapresentado nas telas e causou um frisson impressionante. Os hippies correram às salas de cinema atrás do que o escritor William Zinsser descreveu nas seguintes palavras: “Disney estava nos dando uma experiência sensorial, o primeiro acontecimento lisérgico da América”. As imagens ligeiras acompanhadas da belíssima “Tocata e Fuga em Ré Menor”, de Bach, agradaram a tal ponto que a associação nacional de cinemas teve de preparar os donos das salas de exibição por meio da seguinte carta: “Não fiquem tensos em relação à plateia potencial. Eles são gente boa, cidadãos maconheiros pouco ligados em banho. A galera pirada. Eles estão aqui para uma viagem. Eles se encaminharão para as poltronas da frente, se deitarão nos corredores e em cima uns dos outros, mas bem na frente. Fumarão um baseado e oferecerão conselhos ao Mickey Mouse.”

Mas nada se compararia à pedra fundamental do novo cinema, aquele que seria o alicerce da New Hollywood, já destituída das leis que mantinham o monopólio do Studio System. Easy Rider, por aqui intitulado “Sem Destino”, chegou ao patamar de block buster tendo recebido um investimento total de singelos 500 mil dólares – faturou mais de 18 milhões ao final do primeiro ano. Após essa obra, Hollywood se esmearia em produzir filmes baratos, dando total liberdade de produção a jovens diretores, desejosos de pôr abaixo a velha ordem, exageradamente identificada com filmes que mais remetiam a uma sociedade que não sobreviveu muitos anos após a II Guerra Mundial. Agora os diretores de cinema eram barbudos, jovens recém-formados, utilizavam largamente técnicas desenvolvidas no cinema underground europeu. Simultaneamente, era revogado o código de censura que vigia desde os anos 1930. Até a sexualidade era tratada de maneira mais amena, fruto da enxurrada de filmes suecos, notadamente livres dos pudores saxões puritanos e hipócritas.
“Sem Destino” saiu da mente imaginativa de dois jovens, Peter Fonda e Dennis Hopper, produtores e atores da película. Contaram com a participação do indefectível Jack Nicholson, com quem já haviam encenado em The Trip (Viagem ao mundo da alucinação). Eram todos amigos e parceiros de roqueiros da época, usavam drogas comuns naquela época, como LSD e maconha. Peter Fonda era filho do ator veterano de Hollywood Henry Fonda. Dennis Hopper se destacara atuando ao lado de James Dean em Juventude Transviada.

“Sem Destino” quase não tinha roteiro. O filme seguia uma filmagem que lembrava os Westerns, com planos que valorizavam mais a paisagem do que os atores. Tudo proposital. O filme procurava passar uma perspectiva dos fatos políticos e sociais que haviam atormentado  a América nos últimos anos, por meio de analogias e metáforas com pessoas e paisagens da “deep America”, a América profunda.
Dois hippies, Wyatt e Billy, compram uma boa quantidade de cocaína no México e a revendem a um contato na fronteira com a Califórnia. Com o dinheiro, compram duas motos Harley-Davidson e caem na estrada em direção a New Orleans, onde pretendem curtir o carnaval local, chamado Mardi Gras. Mais à frente decidiriam seguir até a Flórida.

O tema central da obra é a liberdade, simbolizada pela cena em que os motoqueiros jogam fora seus relógios. Interessante notar que a entrada da cocaína na história tem o condão de fazer oposição às drogas mais identificadas com os movimentos hippies, como LSD e maconha. O fim desses movimentos contra culturais foi marcado pela entrada em cena de drogas pesadas e identificadas com a individualidade, com o egoísmo, como cocaína e heroína.

Ao longo da viagem, a dupla conhece alguns outros personagens. O primeiro deles é um hippie, que os apresenta a comuna (comunidade hippie autossuficiente) onde mora. Todos consomem apenas o que plantam. Ficam bem impressionados, mas reagem como a sociedade reagiu aos hippies: com uma certa indiferença. Apesar de terem se desfeito de seus relógios, a pressa e a vontade de ir em frente são irresistíveis. Na despedida, recebem um LSD de presente.

Mais à frente, entram numa confusão, após tentarem participar de um desfile a bordo de suas motos. São presos e conseguem sair da cadeia com a ajuda de um advogado, interpretado por Jack Nicholson: George Hanson. Alcoólatra, George está em meio a uma crise existencial e decide seguir viagem com a dupla. Quando param para acampar, à noite, George é apresentado à maconha. Primeiro repete o discurso proibicionista, cheio de preconceitos, diz que aquilo o levaria a drogas mais pesadas... Mas termina fumando e até se impressiona quando lhe dizem que ela não faz mal.

Finalmente na Lousiana, o agora trio enfrenta o preconceito mortal de toda uma cidade. O filme agora tenta fazer um paralelo com a maneira como a sociedade americana reagiu à contracultura em seus estertores. Ao entrarem num restaurante, são ignorados pelas atendentes e ouvem que dificilmente conseguirão sair daquele lugar. Percebem o ódio mórbido contra seus cabelos compridos, seus aspectos desgrenhados, vestindo roupas esquisitas.

Receosos, deixam o lugar e acampam no entorno da cidade. É quando George faz seu discurso, dizendo que a América era um lugar ótimo para se viver, mas agora se afundava em mares de preconceito e racismo. George defende que o povo fala muito em liberdade, mas quando se deparam com a liberdade travestida em hippies como aqueles dois, sentem medo e repulsa.

Mais tarde, o trio é atacado por alguns dos clientes do restaurante que visitaram mais cedo. Billy consegue reagir com uma faca, mas George é morto ali mesmo, enquanto Wyatt sofre um ferimento no braço. Certamente George representa todos os líderes sociais vitimados naqueles anos turbulentos.
Em New Orleans, os motoqueiros conhecem duas prostitutas num bordel local e as levam até o local de celebração do Mardi Gras. Entram num cemitério e finalmente consomem o LSD com que foram presenteados no início da jornada. As cenas da viagem lisérgica são perturbadoras, dignas de uma “bad trip”.

Por fim, decidem estender o roteiro até a Flórida. No caminho, cruzam com uma caminhonete cheia de pessoas que nutriam um ódio profundo por qualquer coisa que lembrasse um hippie. Decididos a provocar os motoqueiros, os rapazes da caminhonete de aproximam e desferem uma série de insultos. Depois, ameaçam atirar neles. Difícil não ver aqui uma referência aos confrontos entre policiais e manifestantes, cena bem comum naqueles dias.

Billy responde às provocações erguendo o dedo médio contra seus antagonistas. Enfurecido, um dos provocadores atira contra Billy,q eu cai no acostamento. Wyatt para ajudá-lo, enquanto a caminhonete faz a volta e atiram novamente, agora contra a moto de Wyatt, que explode devido ao tiro ter acertado no tanque de combustível.

A cortina abaixa pouco depois de o personagem de Peter Fonda pronunciar sua frase lapidar: “nós estragamos tudo”. Certamente uma referência ao agravamento dos conflitos sociais, que levou ao recrudescimento da reação conservadora, a cargo de reacionários de plantão, a postos em todos os grotões do país – mas não só lá...


Rubem L. de F. Auto

Fontes: O Som da Revolução

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