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quinta-feira, 28 de junho de 2018

SOB A BATUTA DO MESTIÇO: ANACLETO DO CORETO DE PAQUETÁ



Em meados de 1907, um sentimento de tristeza e saudade se abateu sobre a população da ilha de Paquetá, na Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro. Uma procissão caminhava em direção ao largo do Medeiros, atualmente Praça do Bom Jesus. Estando os homens vestidos com sobrecasacas vistosas, gravatas inglesas, sapatos italianos; acompanhados de suas senhoras a exibir saias compridas, chapéus e leques, todos usavam um guarda-sol para se protegerem do calor implacável do Rio de Janeiro. O ponto de concentração da multidão era o coreto, onde os músicos do Recreio Musical Paquetaense, responsáveis pela principal diversão dos habitantes locais. Não sabiam, mas iriam assistir à última apresentação da banda, regida por seu querido maestro.

Alguns meses mais tarde, a cena se repetiria – contudo, num dia triste, nublado e chuvoso. Mas agora os músicos das bandas do Recreio, do Corpo de Bombeiros e da Fábrica Bangu se reuniam para fazerem a última homenagem ao mentor e fundador, músico já famoso na capital e reconhecido regente da banda do Recreio: Anacleto Augusto de Medeiros.   

Embora em luto, as pessoas cantavam polcas, marchas, valsas, quadrilhas, dobrados e xótis pelas ruas de Paquetá, numa clara invocação das obras do regente que os deixava. A última pá de terra despejada sobre o caixão do mestre foi acompanhada do som de orações, cornetas, clarinetas, pratos, tambores, pistões e trombones tocados por alunos e professores do Instituto Nacional de Música. Anacleto tinha 41 anos e morrera de infarto.

A ilha de Paquetá foi ocupada inicialmente pelos franceses da expedição de Villegagnon em 1556, que pretendiam fundar a França Antártica. Expulsos os inimigos pelos homens de Estácio de Sá, em 1565, a ilha foi dividida em sesmarias, as quais foram doadas a colonos. Paquetá se tornou então importante fornecedora de cal, pedras, hortigranjeiros e pescados para o Rio de Janeiro por séculos.
A ilha fica a apenas 15 quilômetros da praça XV, no centro da cidade do Rio. Porém, essa pequena distância durava várias horas até o início do século XIX, quando a travessia era feita em botes, faluas e saveiros movidas pelo esforço de escravos. Tudo mudou em 1838, quando da inauguração da Companhia de Navegação da Piedade, que começou a fazer regularmente o trajeto em barcos a vapor.

A ilha de Paquetá também era um local procurado por personalidades do império que desejavam se depurar das intrigas e dos percalços do poder. Foi o caso de José Bonifácio, também conhecido como patriarca da independência, ou “timoneiro da independência do Brasil”. Destituído de praticamente toda a autoridade que detinha após a eleição de Antônio Feijó como regente, quem o exonerou do seu cargo ministerial, Bonifácio se mudou para Paquetá e foi viver lá, em paz e longe da política.

Mas Bonifácio não foi a primeira celebridade a procurar abrigo nas águas pacatas da ilhota. A primeira delas ali aportou em 1808, forçado, por conta de uma chuva torrencial que o apanhou no seu trajeto, quando fugia da Europa em meio às invasões napoleônicas. D. João VI se sentiu cativado pela paisagem bucólica e, não menos importante, pelas águas do poço São Roque, que julgava serem ótimas para tratar sua úlcera nas pernas.  

Paquetá voltou a ocupar lugar de destaque no noticiário após a proclamação da República. Foi em meio à Revolta da Armada, de 1893, conflito suscitado pela Marinha de Guerra do Brasil, então integrada por monarquistas que não se conformavam com os desmandos do presidente da República, o marechal Floriano Peixoto.

Esta Revolta isolou a ilha do resto da cidade por meses, enquanto era usada pelos revoltosos como base para seus ataques contra as tropas inimigas. Evidentemente isso obrigou os moradores a se retirarem temporariamente para outras paragens. A família de Anacleto, então com 27 anos, abrigou-se em Magé. Contudo, os revoltosos conseguiram tomar um pedaço daquela cidade, mas foram expulsos em 28 de fevereiro em 1894. Em “homenagem” à derrota dos antiflorianistas, Anacleto compôs uma canção, “Fantasia”, mais tarde tornada famosa como “28 de fevereiro”. Findo o conflito, Floriano enviou o coronel Moreira César prender todos os que tivessem prestado algum auxílio aos revoltosos.

]Anacleto era filha de uma escrava alforriada, Isabel de Medeiros – não consta o nome do pai em sua Certidão de Nascimento. Isabel foi tornada liberta antes da abolição da Escravidão. Provavelmente Isabel era escrava de ganho (a quem era permitido obter ganhos com seu trabalho, desde que dividisse parte dos rendimentos com seu senhor) praticava o biscate, vendendo doces e outras guloseimas pelas ruas, maneira pela qual acumulou o dinheiro necessário para comprar sua liberdade. Isabel teve outros 5 filhos.

Outro morador da ilha bastante famoso e respeitado atendia por João da Silva Pinheiro Freire. Médico conhecido pela preocupação com os mais carentes, era uma espécie de autoridade reconhecida pelo povo: unia os papéis de doutor, administrador, delegado e juiz de paz em uma só pessoa.

Baiano, Dr. Pinheiro Freire morou em aquetá por 40 anos, período em que travou amizade com poderosos, como o Conde D`Eu e o marechal Deodoro da Fonseca. Faleceu em 1904, deixando toda a ilha entristecida e a Anacleto, particularmente consternado – em homenagem ao amigo, Anacleto compôs a marcha fúnebre “Dr. Pinheiro Freire”. Dr. Pinheiro foi fundamental na vida do regente, pois o indicara para ingressar na Escola de Menores do Arsenal de Guerra e no Conservatório de Música do Rio de Janeiro.

Anacleto animava as noites serenas da ilha. Frequentemente saía com seus músicos nas noites enluaradas tocando músicas românticas, fazendo breves paradas em locais românticos ou aos pés da janela de alguma moça receptiva ao galanteio, seguindo a tradição das serestas. Este gênero é produto do romantismo do século XIX e surgiu ao reunir letras de poetas e melodia de compositores populares. Tomou parte da paisagem urbana das principais cidades brasileiras.

Algumas composições de Anacleto também foram letradas. A mais conhecida, o xóti “Yara”, ganhou letra do poeta Catulo da Paixão Cearense, quando foi rebatizada para “Rasga o coração”. Foi uma das canções mais tocadas pelos seresteiros do início do século XX.

Anacleto era fã declarado de um dos maiores músicos brasileiros de todos os tempos: o maestro e compositor Carlos Gomes – considerado por muitos como o maior músico das Américas. O autor de O Guarani se encontrou com Anacleto em Paquetá poucos anos antes de falecer, na casa do amigo Júlio Tavares. Ao saber da presença de seu ídolo na ilha, Anacleto pediu autorização para homenagear Carlos Gomes com algumas músicas de sua lavra.

Quando se aproximava do final de “Protofonia do Guarani”, Carlos Gomes já estava emocionado, lacrimejando e desejando dar um caloroso abraço em seu novo amigo mestiço. Terminou por emitir um breve lamento, por não ter tido a oportunidade de levar o “seu caboclo”, como passou a chama-lo,  para aperfeiçoar seus estudos na Itália.  


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Rio musical de Anacleto de Medeiros”

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