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quinta-feira, 28 de junho de 2018

FOI UM RIO DE JANEIRO QUE PASSOU...



Em 1883, ano em que Anacleto de Medeiros se tornou aluno do Conservatório de Música, a cidade do Rio de Janeiro vivia um período intenso, que desaguaria, em 1889, na Proclamação da República.

Embora o sistema de governo tivesse mudado – mediante um Golpe militar -, a estrutura social continuava tão deplorável quanto antes, poucos tinham uma participação política efetiva. O bem comum e a coisa pública nunca foram objeto de preocupação dos novos “eleitos”.

Os dois primeiros presidentes da nascente República eram militares e usaram seus mandatos quase integralmente para conter revoltas promovidas por monarquistas. O terceiro presidente, primeiro civil, Prudente de Moraes, instituiu o “jogo de comadres” conhecido como política do café-com-leite, segundo a qual Minas Gerais e São Paulo passariam a República Velha dando as cartas na política nacional.

Aliás, o direito ao voto era bem pouco republicano. A Constituição de 1891 dizia que todos poderiam votas, exceto 95% da  população: mulheres, analfabetos, padres, soldados. Considerando-se o fato de que os 5% que votavam estavam submetidos ao voto de cabresto – isto é, tinha-se que votar sob coação do coronel local, aquele direito se tornava uma boa piada.

O Rio de Janeiro do início do século XX era uma cidade medonha. Mais de 800 mil pessoas se espremiam por entre ruas estreitas, vielas sujas, becos imundos. As praças eram pouco arborizadas, o que aumentava ainda mais a sensação térmica numa cidade quente.

O centro da cidade, local de residência de nobres que aqui aportaram após 1808, era agora marcado por doenças e caos. Os mais ricos fugiam em direção à zona sul da cidade: Glória, Catete, Laranjeiras, Flamengo, Botafogo. Os casarões da velha aristocracia se tornaram, então, cortiços: o imóvel era subdividido em pequenos cômodo, alugados às pessoas mais humildes. Essas moradias mais do que precárias se tornaram comuns, sendo que a mais famosa atendia por Cabeça de Porco. De propriedade do Conde D`Eu, esposo da princesa Isabel, chegou a abrigar milhares de pessoas e possuía um pórtico em sua entrada com a figura de uma cabeça de porco.

Em seu interior eram encontrados sobrados, oficinas, barbearia e criação de animais. Em meio àquela imundície, multiplicavam-se doenças as mais variadas. A mais difundida era a febre amarela, que no verão atingia toda a cidade. Moradores da cidade ou passageiros que desembarcavam no porto morriam aos milhares.

O inverno não era muito mais seguro: varíola, peste bubônica, tuberculose se faziam presente. Todos eram vítimas em potencial, mas os mais pobres evidentemente sofriam mais.

Anacleto lembrou dos cortiços em sua polca “Cabeça de Porco”, gravada com a execução pela banda do Corpo de Bombeiros entre 1904 e 1907, porém na forma de maxixe.

Os moradores mais abastados da cidade, no verão, fugiam da imundície e do calor em direção a Petrópolis. Podia-se perceber essa debandada dos endinheirados no esvaziamento da rua do Ouvidor, reduto das lojas mais caras da cidade, nos teatros de portas cerradas, ou pela pouca atividade das mulheres dos bordéis de luxo.

Mas havia um desejo encoberto de modernidade, de se criar uma cidade de padrões europeus nos trópicos, que fizesse desaparecer toda aquela desordem urbana, inadequada a um país que se pretendia grande.

Tendo como modelo Paris, começaram os trabalhos para civilizar o Rio. Inicialmente, o prefeito Pereira Passos nomeou o sanitarista Osvaldo Cruz, em 1903, para pôr exterminar as doenças que assolavam a cidade. Decretou-se guerra aos ratos, a vacinação foi tornada obrigatória, o serviço de limpeza das ruas foi instituído. Os resultados foram imediatos.

Os engenheiros Francisco Bicalho e Paulo de Frontin lideraram o “bota-abaixo”: obras de remodelamento do porto, de construção de jardins, alargamento de ruas. No centro, foi construída a avenida Central, atual Rio Branco. A Floresta da Tijuca ganhou novos traçados e a avenida Beira-Mar chegou em Botafogo.

Anacleto não estava alienado daquele progresso todo e compôs o dobrado “Avenida”, obra que reproduziu debaixo de chuva na inauguração da homenageada avenida Rio Branco, regendo os músicos da banda dos bombeiros.

Construídas as primeiras vias modernas, não demorou para que os automóveis se integrassem à paisagem urbana, antes composta apenas por bondes a tração animal ou elétricos, charretes, carroças e que tais. Em 1907 já eram centenas ou automóveis em circulação.

Toda aquela novidade, no entanto, trazia benefícios a muitos poucos. Embora a questão da saúde pública estivesse mais ou menos resolvida, os moradores que perderam suas moradias não foram indenizados, tendo sido portanto expulsos para favelas ou subúrbios longínquos. E ali surgiram algumas das maiores riquezas musicais surgidas neste país.  

O Rio do final do século XIX já era reconhecido pela riqueza musical. Casas de todos os estratos sociais eram alegradas pelo som do piano e do violão, em meio a saraus-literários. O bel canto se fazia presente nos teatros. Com a presença cada vez mais frequente de Companhias de Teatro europeias, discutir sobre compositores da estirpe do italiano Verdi tornava-se comum, assim como ouvir pianistas tocando árias famosas.

A praça da República, atual praça Tiradentes, abrigava uma série de teatros que se dedicavam ao gênero de revista: um texto musicado sobre atualidades. Era a maneira mais comum de divulgar obras musicais – só seria superado pelo cinema, anos depois. Foi o gênero adotado por Chiquinha Gonzaga, que a consagrou em todo o país.

Nesse período, Anacleto tirava seus rendimentos da comercialização de suas partituras em casas especializadas: casas Narciso-Arthur Napoleão, Lyra de Apolo, Viúva Canongia e outras. Essa forma de comercializar obras musicais só seria superada com a Era do Disco.

A modernização do centro do Rio levou à inauguração dos cinemas, boa parte deles localizados na avenida Central. Os filmes eram mudos, portanto cabia aos músicos dar-lhes vida sonora. Era a oportunidade para músicos como Ernesto Nazaré, um dos maiores nomes do país.

A música se fazia presente também em cafés-cantantes e nos chopes.

Mas tocar para uma multidão era ocasião reservada Às grandes festas populares. A maior de todas era a Festa da Penha, comemorada desde o século XVIII. Tambores de zé-pereira, choros, maxixe, bandas musicais, músicos e compositores da cidade se reuniam por lá em outubro. Aliás, mostrou ser a ocasião ideal para avaliar os sucessos do carnaval seguinte.

Anacleto viveu isso tudo. E em homenagem à diversidade musical carioca compôs “Os boêmios”, em 1901.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Rio musical de Anacleto...”    

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