Em 1883, ano em que Anacleto de Medeiros se tornou aluno do
Conservatório de Música, a cidade do Rio de Janeiro vivia um período intenso,
que desaguaria, em 1889, na Proclamação da República.
Embora o sistema de governo tivesse mudado – mediante um
Golpe militar -, a estrutura social continuava tão deplorável quanto antes,
poucos tinham uma participação política efetiva. O bem comum e a coisa pública
nunca foram objeto de preocupação dos novos “eleitos”.
Os dois primeiros presidentes da nascente República eram
militares e usaram seus mandatos quase integralmente para conter revoltas
promovidas por monarquistas. O terceiro presidente, primeiro civil, Prudente de
Moraes, instituiu o “jogo de comadres” conhecido como política do
café-com-leite, segundo a qual Minas Gerais e São Paulo passariam a República
Velha dando as cartas na política nacional.
Aliás, o direito ao voto era bem pouco republicano. A
Constituição de 1891 dizia que todos poderiam votas, exceto 95% da população: mulheres, analfabetos, padres,
soldados. Considerando-se o fato de que os 5% que votavam estavam submetidos ao
voto de cabresto – isto é, tinha-se que votar sob coação do coronel local, aquele
direito se tornava uma boa piada.
O Rio de Janeiro do início do século XX era uma cidade medonha.
Mais de 800 mil pessoas se espremiam por entre ruas estreitas, vielas sujas,
becos imundos. As praças eram pouco arborizadas, o que aumentava ainda mais a
sensação térmica numa cidade quente.
O centro da cidade, local de residência de nobres que aqui
aportaram após 1808, era agora marcado por doenças e caos. Os mais ricos fugiam
em direção à zona sul da cidade: Glória, Catete, Laranjeiras, Flamengo,
Botafogo. Os casarões da velha aristocracia se tornaram, então, cortiços: o
imóvel era subdividido em pequenos cômodo, alugados às pessoas mais humildes.
Essas moradias mais do que precárias se tornaram comuns, sendo que a mais
famosa atendia por Cabeça de Porco. De propriedade do Conde D`Eu, esposo da
princesa Isabel, chegou a abrigar milhares de pessoas e possuía um pórtico em
sua entrada com a figura de uma cabeça de porco.
Em seu interior eram encontrados sobrados, oficinas,
barbearia e criação de animais. Em meio àquela imundície, multiplicavam-se
doenças as mais variadas. A mais difundida era a febre amarela, que no verão
atingia toda a cidade. Moradores da cidade ou passageiros que desembarcavam no
porto morriam aos milhares.
O inverno não era muito mais seguro: varíola, peste
bubônica, tuberculose se faziam presente. Todos eram vítimas em potencial, mas
os mais pobres evidentemente sofriam mais.
Anacleto lembrou dos cortiços em sua polca “Cabeça de Porco”,
gravada com a execução pela banda do Corpo de Bombeiros entre 1904 e 1907,
porém na forma de maxixe.
Os moradores mais abastados da cidade, no verão, fugiam da
imundície e do calor em direção a Petrópolis. Podia-se perceber essa debandada
dos endinheirados no esvaziamento da rua do Ouvidor, reduto das lojas mais
caras da cidade, nos teatros de portas cerradas, ou pela pouca atividade das
mulheres dos bordéis de luxo.
Mas havia um desejo encoberto de modernidade, de se criar
uma cidade de padrões europeus nos trópicos, que fizesse desaparecer toda
aquela desordem urbana, inadequada a um país que se pretendia grande.
Tendo como modelo Paris, começaram os trabalhos para
civilizar o Rio. Inicialmente, o prefeito Pereira Passos nomeou o sanitarista Osvaldo
Cruz, em 1903, para pôr exterminar as doenças que assolavam a cidade.
Decretou-se guerra aos ratos, a vacinação foi tornada obrigatória, o serviço de
limpeza das ruas foi instituído. Os resultados foram imediatos.
Os engenheiros Francisco Bicalho e Paulo de Frontin
lideraram o “bota-abaixo”: obras de remodelamento do porto, de construção de
jardins, alargamento de ruas. No centro, foi construída a avenida Central,
atual Rio Branco. A Floresta da Tijuca ganhou novos traçados e a avenida
Beira-Mar chegou em Botafogo.
Anacleto não estava alienado daquele progresso todo e compôs
o dobrado “Avenida”, obra que reproduziu debaixo de chuva na inauguração da
homenageada avenida Rio Branco, regendo os músicos da banda dos bombeiros.
Construídas as primeiras vias modernas, não demorou para que
os automóveis se integrassem à paisagem urbana, antes composta apenas por
bondes a tração animal ou elétricos, charretes, carroças e que tais. Em 1907 já
eram centenas ou automóveis em circulação.
Toda aquela novidade, no entanto, trazia benefícios a muitos
poucos. Embora a questão da saúde pública estivesse mais ou menos resolvida, os
moradores que perderam suas moradias não foram indenizados, tendo sido portanto
expulsos para favelas ou subúrbios longínquos. E ali surgiram algumas das
maiores riquezas musicais surgidas neste país.
O Rio do final do século XIX já era reconhecido pela riqueza
musical. Casas de todos os estratos sociais eram alegradas pelo som do piano e
do violão, em meio a saraus-literários. O bel canto se fazia presente nos
teatros. Com a presença cada vez mais frequente de Companhias de Teatro europeias,
discutir sobre compositores da estirpe do italiano Verdi tornava-se comum,
assim como ouvir pianistas tocando árias famosas.
A praça da República, atual praça Tiradentes, abrigava uma
série de teatros que se dedicavam ao gênero de revista: um texto musicado sobre
atualidades. Era a maneira mais comum de divulgar obras musicais – só seria
superado pelo cinema, anos depois. Foi o gênero adotado por Chiquinha Gonzaga,
que a consagrou em todo o país.
Nesse período, Anacleto tirava seus rendimentos da
comercialização de suas partituras em casas especializadas: casas
Narciso-Arthur Napoleão, Lyra de Apolo, Viúva Canongia e outras. Essa forma de
comercializar obras musicais só seria superada com a Era do Disco.
A modernização do centro do Rio levou à inauguração dos
cinemas, boa parte deles localizados na avenida Central. Os filmes eram mudos,
portanto cabia aos músicos dar-lhes vida sonora. Era a oportunidade para
músicos como Ernesto Nazaré, um dos maiores nomes do país.
A música se fazia presente também em cafés-cantantes e nos
chopes.
Mas tocar para uma multidão era ocasião reservada Às grandes
festas populares. A maior de todas era a Festa da Penha, comemorada desde o século
XVIII. Tambores de zé-pereira, choros, maxixe, bandas musicais, músicos e
compositores da cidade se reuniam por lá em outubro. Aliás, mostrou ser a
ocasião ideal para avaliar os sucessos do carnaval seguinte.
Anacleto viveu isso tudo. E em homenagem à diversidade musical
carioca compôs “Os boêmios”, em 1901.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Rio musical de Anacleto...”
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