Em sua magnífica obra, Imperialismo, a fase superior do
capitalismo, Lênin buscou alargar os horizontes dos leitores quanto ao caráter
colonizador implícito no sistema capitalista moderno:
“Para o capital financeiro não são apenas as fontes de
matérias-primas já descobertas que têm importância, mas também as possíveis,
pois a técnica avança, nos nossos dias, com uma rapidez incrível, e as terras
hoje não aproveitáveis podem tomar-se amanhã terras úteis, se forem descobertos
novos métodos (para cujo efeito um banco importante pode enviar uma expedição
especial de engenheiros, agrônomos, etc.), se forem investidos grandes
capitais. O mesmo acontece com a exploração de riquezas minerais, com os novos
métodos de elaboração e utilização de tais ou tais matérias-primas, etc. etc.
Daí a tendência inevitável do capital financeiro para ampliar o seu território
econômico e até o seu território em geral. Do mesmo modo que os trusts
capitalizam os seus bens atribuindo-lhes o dobro ou o triplo do seu valor,
tomando em consideração os lucros (e não os lucros presentes) e tendo em conta
os resultados ulteriores do monopólio, o capital financeiro manifesta a
tendência geral para se apoderar das maiores extensões possíveis de território,
seja ele qual for, encontre-se onde se encontrar, por qualquer meio, pensando
nas fontes possíveis de matérias-primas e temendo ficar para trás na luta
furiosa para alcançar as últimas parcelas do mundo ainda não repartidas ou por
conseguir uma nova partilha das já repartidas.”
Em razão da escala que alcançou, a exportação de capitais
passou a ser uma necessidade vital do sistema: na forma de créditos, a entes
privados ou públicos, os capitais se globalizaram. Ao financiar missões
diplomáticas, guerras, expedições científicas, financiaram por conseguinte a
globalização e a partilha do mundo entre os grandes de então: Alemanha, França,
Inglaterra e EUA. A segurança de ter disponíveis todas as matérias-primas de que
necessitavam era assegurada mediante investimentos em infraestruturas de
escoamento: estradas, ferrovias, portos etc. Nas palavras do mestre russo:
“No limiar do século XX assistimos à formação de monopólios
de outro gênero: primeiro, uniões monopolistas de capitalistas em todos os
países de capitalismo desenvolvido; segundo, situação monopolista de uns poucos
países riquíssimos, nos quais a acumulação do capital tinha alcançado
proporções gigantescas. Constituiu-se um enorme “excedente de capital” nos
países avançados (...)
A possibilidade da exportação de capitais é determinada pelo
fato de uma série de países atrasados terem sido já incorporados na circulação
do capitalismo mundial, terem sido construídas as principais vias férreas ou
iniciada a sua construção, terem sido asseguradas as condições elementares para
o desenvolvimento da indústria, etc. A necessidade da exportação de capitais
obedece ao fato de que em alguns países o capitalismo “amadureceu
excessivamente” e o capital (dado o insuficiente desenvolvimento da agricultura
e a miséria das massas) carece de campo para a sua colocação “lucrativa”.
“O traço característico deste período - conclui o autor - é,
por conseguinte, a partilha da África e da Polinésia.” Como nem na Ásia nem na
América existem terras desocupadas, isto é, que não pertençam a nenhum Estado,
há que ampliar a conclusão de Supan e dizer que o traço característico do
período que nos ocupa é a partilha definitiva do planeta, definitiva não no
sentido de ser impossível reparti-lo de novo "pelo contrário, novas
partilhas são possíveis e inevitáveis", mas no sentido de que a política
colonial dos países capitalistas já completou a conquista de todas as terras
não ocupadas que havia no nosso planeta. Pela primeira vez, o mundo encontra-se
já repartido, de tal modo que, no futuro, só se poderão efetuar novas
partilhas, ou seja, a passagem de territórios de um "proprietário"
para outro, e não a passagem de um território sem proprietário para um
"dono".”
Quanto à questão da posse de um território e,
simultaneamente, gozar de independência real, Lênin cita o caso de Portugal.
Exemplo eloqüente de dependência financeira e diplomática, ainda que fosse formalmente
um país independente, soberano, na realidade desde a Guerra da Sucessão
Espanhola (1701-1714), Portugal estava sob protetorado britânico. A Inglaterra
defendeu os lusitanos, tanto na metrópole quanto nas colônias, com vistas a
reforçar sua própria posição nas disputas contra seus adversários: Espanha e
França.
Em troca, os ingleses obtiveram vantagens comerciais,
assegurou suas exportações, tanto de mercadorias quanto de capitais, para
Portugal ou para suas colônias, utilizando-se para tanto dos portos e das ilhas
portuguesas, seus cabos telegráficos etc.
No entanto, a partilha do planeta não foi tão rentável
quanto se supunha em princípio. Após a Revolução Soviética, toda a Rússia quanto
todo o território da URSS ficou de fora do sistema capitalista, portanto sem
contribuir de nenhuma maneira para seu desenvolvimento. A África se manteve sob
o julgo do colonialismo, portanto de uso exclusivo da metrópole correspondente.
As duas Guerras Mundiais serviram apenas para dar sobrevida
a essa realidade. Apenas após a II Grande Guerra surgiram novos movimentos de
capitais, quando as ex-colônias e os países da América do Sul passaram a ser
destino das exportações de capitais.
Mas esse movimento necessitou de alguns fatores precedentes,
e o principal deles atendia pelo nome de Plano Marshall. O financiamento dos
EUA para reconstrução da economia européia pôs o continente novamente no papel
de produtos e exportador de bens, possibilitou a acumulação de excedentes de
capitais, que seguiram sua natureza, em busca de aplicações rentáveis.
Outro fator ocorreu em 1973, quando do Choque do Petróleo: a
alta assombrosa do preço desse recurso essencial da vida moderna fez com que se
acumulassem fortunas imensas nos países produtores, quase todos no Oriente
Médio; no entanto, esses países não dispunham de uma infraestrutura financeira
para aplicar esse excedente; ao aplicar esses montantes nos bancos ocidentais,
que dispunham de uma rede mundial de investimentos, nasciam os petrodólares,
que eram imediatamente aplicados nos países em desenvolvimento... a taxas
baixas, de forma a “fidelizar” o cliente.
Outro mecanismo engenhoso criado pelos financistas
internacionais entrou em cena. O choque do petróleo levou à retração dos
mercados europeu e norte-americano. Em razão das vendas internas em queda,
desenvolveram-se mecanismos de reciclagem de capitais, pelos quais parte dos
empréstimos era destinada à compra de mercadorias exportadas pelo próprio país
credor.
Viu-se assim ao maior crescimento dos empréstimos norte-sul
na história – e ao maior endividamento do Sul também. E essa dívida toda se
revelaria um fardo, com os juros consumindo grande parte dos Orçamentos
nacionais.
Evidentemente essa estratégia somente foi possível graças às
manipulações políticas do período pós-colonial, que impediam o surgimento de
processos de desenvolvimento “não alinhados”. E isso foi agravado pela Guerra
Fria, quando as tentativas de criação de fatores de desenvolvimento nacionais
eram vistas pelas ex-metrópoles como ameaças de se quebrarem as amarras que
permitiam a super-exploração de suas riquezas nacionais.
A cada tentativa de desenvolvimento autônomo correspondia um
movimento das potências, que traziam crises políticas, cisões internas,
até que os políticos que lideravam os processos autonomistas fossem substituídos
por membros das nascentes burguesias locais, em regra corruptos e alienados de
seu povo.
Olhando-se o caso da Árica, todos os líderes nacionais que
tiraram seus países do jugo colonial nos anos 1960 foram assassinados, no
âmbito de operações comandadas pela CIA e pelas suas equivalentes belga,
francesa, britânica e portuguesa. Foram eles: Patrice Lumumba, Luís Cabral,
Eduardo Mondlane e muitos outros. Não por coincidência, foi o período quando se
multiplicaram ditaduras sanguinárias, muitas delas na América Latina.
Golpes findos, a segunda geração de ditadores africanos e
latinos abriu suas fronteiras para todo tipo de empréstimo externo, sem
restrições: Banco Mundial, bancos privados (americanos, alemães, japoneses),
todos encontraram as portas abertas para aplicar seu rico dinheirinho a taxas
generosas.
O caso do Banco Mundial é esclarecedor. Nos 20 anos após a
II Guerra, orientava-se aquela instituição para a reconstrução das estragos da
guerra, quando seu papel foi no mínimo insignificante. Mas no período 1968-1981,
essa instituição foi dirigida por Robert McNamara, quando mudou seu foco para o
escoamento das riquezas do Terceiro Mundo, mediante remuneração pelo capital
investido em operações, em sua maioria, improdutivas. Aí então o Banco assumiu
papel mais relevante.
Como comparativo, se nos seus primeiros 21 anos o Banco
Mundial emprestou 10,7 milhões de dólares para 708 projetos, nos 5 anos de
McNamara esse núlero saltou para 13,4 milhões aplicados em 760 projetos.
Os anos 1970 viram um aumento da coação sobre o Terceiro
Mundo para que incorresse nas linhas de financiamento do BM. Os técnicos do BM
também foram coagidos a criarem projetos mais caros, que deveriam vender para o
Sul.
Tudo isso foi revelado pela economista Susan George em seu “Crédis
sans frontière, la religion sécularie de la Banque Mondiale”:
“O País informado da possibilidade dum projeto assim
identificado e concebido pelo BM, apenas tinha que solicitar que o banco
estudasse o financiamento.
Os governos já raramente se procupavam em saber como
re-embolsariam a sua dívida: como poderiam recusar os capitais caindo nos seus
bolsos sem esforço? O Bm define o lugar, o conteúdo, a organização e as
prioridades do projeto.”
Demais bancos privados viam os empréstimos do BM como
avalizadores de crédito, abriam suas burras para tais países e... assim
surgiram os maiores devedores do Planeta Terra, que encarariam uma crise
avassaladora na década de 1980.
As dificuldades para pagar suas dívidas decorreram de
diversos fatores: queda do preço dos produtos exportados por eles (commodities,
em geral); o protecionismo dos países ricos, após a crise da década de 1970; a
fuga de capitais em direção ao Norte, ao primeiro espirro do Sul; os péssimos
resultados gerados pelos projetos que os endividaram (afinal, foram decididos
geralmente por regimes ditatoriais, portanto nada transparentes); e, não menos
importante, o aumento brutal da taxa de juros até então praticada nos contratos
de empréstimo (a partir de 1982 e como resultado de políticas monetárias
restritivas).
Pois bem, após os países e desenvolvimento gastarem até seu
último centavo tentando pagar uma dívida impagável, o Banco Mundial se juntou
ao FMI para conceber mais uma estratégia de pilhagem: os malfadados Planos de
Ajustamento Estrutural. Agora o alvo era o Orçamento Público e suas rubricas
destinadas a financiar programas sociais e serviços públicos (saúde, educação,
tansporte, etc.) e as amargas privatizações das empresas púbicas (setores de
minérios, portos, etc.).
Apenas para termos uma idéia do estrago que essa guerra não
declarada do Norte contra o empobrecido Sul, Susan George traz dados à luz: da
declaração da crise da dívida, em 1982, e até 1990, portanto ao longo de 108
meses, a cada mês os países devedores pagaram aos credores, e apenas a título
de juros, uma média de 6,5 bilhões de dólares. Se somarmos a isso o pagamento
do principal, o número salta para 12,45 bilhões de dólares, em média.
Esse montante equivale a 6 Planos Marshall!
E, pasme: no início da década de 1990, os países endividados
estavam 61% mais endividados do que em 1982. E mesmo assim os fluxos
financeiros se inverteram, o que vitimou todos os países em desenvolvimento,
que não contavam mais com aquela complacência toda dos bancos, como na década
de 1970.
Para fazer caixa e pagar seu credores, os países devedores
aumentaram ainda mais sua produção de matérias-primas para exportação, o que
afundou ainda mais o preço desses produtos. Como resposta, reduziram seus
custos, o que estagnou os salários reais: na América Latina, a queda dos
salários urbanos chegou a 41%; no Brasil, em 1987, os salários eram os mais
baixos dos 37 anos anteriores. O primeiro trimestre de 1987 viu o desemprego
duplicar. O México viu os salários do setor industrial caírem 50% em 5 anos. Na
África, que já vinha de crises nos anos 1970, viu uma queda adicional de 30%
nos anos 1980.
Ainda hoje o quadro de dependência se mantém, e 1/3 em média
das exportações da América Latina servem para pagar dívidas. Essa realidade é
também conseqüências dos calotes decorrentes das condições escorchantes dos
empréstimos passados.
Esse cenário apocalíptico no Terceiro Mundo ensejou a
criação dos temidos Planos de Ajuste Estruturais. Aplicado em países que
enfrentavam dificuldade par ao pagamento dos juros de suas dívidas,
configura-se em um conjunto de regras do FMI objetivando “achar” os recursos
necessários para pagar seus credores. A fórmula usada é a aplicação dos
conceitos ultraliberais de gestão econômica: sovar o cidadão até que toda a
economia e as riquezas nacionais retornem às condições coloniais, satisfazendo
assim o Capital.
O país-vítima tinha de concordar com: fim de subsídios para
aquisição de alimentos, desvalorização cambial, taxas de juros elevadas,
orientação da agricultura para exportação, fim de barreiras alfandegárias, fim
de controles de capitais, política tributária draconiana, garantia ao capital
estrangeiro, privatizações e fim do Estado-empreendedor. Somente uma ditadura
genocida, ou governos que claramente pisem sobre os direitos humanos poderia
implantar algo nesse sentido.
Se o FMI idealiza que os países endividados devem exportar o
máximo para gerar divisas para o pagamento de suas dívidas, a implosão das
condições sociais os leva, em última instância, a exportar até mesmo sua
população...
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Pobre e Ricos: Globalização e Neoliberalismo”
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