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terça-feira, 10 de julho de 2018

RACISMO E VIOLÊNCIA NA COPA DO MUNDO – 1930



O ano de 1928 foi marcante sob vários aspectos. Houve o lançamento do imortal Bolero de Ravel, baseado uma música folclórica; houve também o lançamento do primeiro filme sonoro, Mickey Mouse, pela Walt Disney; Alexander Flaming descobriu acidentalmente a penicilina; em Amsterdã, eram disputados os Jogos Olímpicos; enquanto isso, no Brasil, o conde Francisco Matarazzo inaugurava a Ciesp, a proto-Fiesp, dando impulso ao esforço de industrialização do país.

E foi em Amsterdã que foram dadas as primeiras pinceladas num futuro torneio de futebol, a Copa do Mundo. Enquanto Uruguai e Argentina disputavam a final olímpica de futebol – que viu a vitória do Uruguai por 2x1, tornando-se assim bicampeão olímpico, pois vencera a Suíça na edição anterior, em Paris -, ocorria o congresso da FIFA, cujo objetivo era elaborar um torneio que reunisse tanto jogados profissionais quanto amadores.

A cisão entre jogadores profissionalizados ou amadores era relevante na época. Os países que conformavam a Grã-Bretanha não participavam das disputas de futebol nas Olimpíadas, pois alegavam que os jogadores sul-americanos dedicavam-se por meses à disputa, sobrevivendo por meio de subsídios pagos pelos seus governos. Por outro lado, os ingleses, até então quase imbatíveis no esporte que inventaram, tinham o melhor campeonato de futebol do mundo e agiam de maneira insular – não eram filiados à FIFA, por exemplo -, não vendo qualquer razão prática para medirem força com outros países – e, claro, arrastavam consigo Irlanda do Norte, Escócia e País de Gales.

Já a FIFA não se importava com a eventual profissionalização do esporte: queria ver todos jogando contra todos. E este era sonho de seu presidente, Jules Rimet. Embora o futebol, como todos os esportes, ainda carregasse um certo ar aristocrata, privilégio de pessoas ricas, especialmente na América do Sul se via uma grande popularização desse esporte, onde multidões eram arrastadas para as partidas.

O elitismo em torno do futebol descambava para o mais puro racismo, presente por exemplo na proibição de que pessoas negras frequentassem as dependências de clubes – como ocorria no Fluminense, que somente contornou essa regra infame quando obrigou os poucos negros que aceitou a jogarem com pó de arroz no rosto, para disfarçar seu tom de pele  -, nem vestissem seus uniformes.
O Brasil naqueles anos nem sonhava um dia carregar a fama de jogar o melhor futebol do mundo. Os reis desse esporte eram Argentina e Uruguai, que protagonizaram as duas finais Olímpicas ocorridas até então.

Pois bem, o resultado do Congresso foi a decisão pela realização da primeira Copa do Mundo. Os mais animados para sediarem o evento eram os bicampeões uruguaios, especialmente pela comemoração dos 100 anos de sua orgulhosa Constituição, de 1830. Para reforçar o desejo, prometeram construir um enorme estádio, para 80 mil pessoas, que se chamaria Estádio Centenário, pelo motivo já citado. Ah! Comprometeram-se também a pagar todas as despesas dos participantes no torneio. Claro, não poderiam prever a enorme crise mundial iniciada pelo Crash da Bolsa de NY em 1929, que poria todo o planejamento em risco.

A escolha do país-sede se deu em Barcelona, quando Hungria, Itália, Holanda, Espanha, Suécia e Uruguai apresentaram suas candidaturas. Após todas as costumeiras manobras de bastidores, o Uruguai foi declarado o vencedor.

Mas, quando da realização dos convites aos filiados – a FIFA possuía cerca de 30 países filiados -, a coisa ameaçou desandar. Dinamarca, Estônia, Finlândia, Noruega e Suécia não aceitaram participar do mundial. A Alemanha preferiu abster-se. Os demais europeus todos demonstraram seu descontentamento por ter de deslocar-se para fora da Europa para disputar um campeonato de futebol -  a viagem até o Uruguai demorava 14 dias em navio.

A Itália aproveitou o clima de discórdia e logo propôs um campeonato exclusivamente europeu, que somente foi rejeitado porque Jules Rimet agiu energicamente. Ao fim, ficaram de fora da Copa no Uruguai Itália, Holanda, Suíça, Suécia, Dinamarca, Estônia, Finlândia, Noruega e Espanha.

Pouco depois, Hungria, Tchecoslováquia e Áustria, que tinham futebol profissional, disseram ser impossível fazerem seus clubes liberarem seus jogadores durante o torneio, que poderia tomar um período total de mais de 2 meses.

A América do Sul não apresentou problemas: Argentina, Brasil, Chile, Peru, Paraguai e Bolívia – além, claro, do Uruguai -, confirmaram presença. Estados Unidos e México também aceitaram o convite.

Jules Rimet então usou sua proeminência no seu país para garantir a participação da França. Usou sua reputação de bom advogado para garantir a liberação de cada um dos jogadores de seus empregos: o goleiro Thépot foi liberado de seu trabalho na aduana, Capelle não foi convocado para o exército até o fim da Copa, Pnel foi transferido temporariamente para o consulado francês em Montevidéu. Somente ficaram de fora o grande craque Manuel Gaston, não liberado pelo Racing de Paris e Gaston Barreau, que tinha um importante exame para entrar numa faculdade de música erudita.

A Bélgica confirmou presença por ser o vice-presidente da FIFA o belga Rodolphe Seeldrayers. Dentre os jogadores, somente não foi possível levar o melhor jogador belga, Raymond Braine – que se mudou para a Tchecoslováquia, para jogar profissionalmente.

A Romênia foi um caso bem peculiar. Desejava participar, até porque seu rei, Karol, era fã do esporte bretão. Contudo, seus jogadores eram em sua maioria empregados de uma empresa petrolífera inglesa, que não queria nem ouvir falar em liberar empregados para jogar a Copa. Pois bem, um dos jogadores conhecia uma tal de madame Magda Lopescu, amante do rei. Ela mesma tratou de informar o rei sobre o impasse com a empresa inglesa. Como a concessão para exploração do petróleo era dada pelo rei, pessoalmente, não foi difícil dobrar os diretores da companhia e, assim, liberar seus jogadores.

Tendo a Romênia confirmado presença, sua arqui-inimiga Iugoslávia logo fez um esforço e fez o mesmo – claro, Jules Rimet se encarregou de atiçar o ânimo dos iugoslavos, explorando as rivalidades nacionais.

A FIFA tinha agora a confirmação de 13 países, sendo 4 deles europeus. Tudo pronto! Havia agora um torneio verdadeiramente mundial.

Jules Rimet descolou-se até o Museu de Artes de Rodez e encomendou uma Taça, a ser entregue ao campeão. O artesão Abel Lafleur contruiu, pela pequena fortuna de 50 mil francos, uma Taça com asas de ouro – símbolo da vitória -, com 30 entímetros de altura, pesando 4 quilos, sendo 1,8 de puro ouro, sustentada por uma base de mármore. Desde 1946 passou a se chamar Taça Jules Rimet.

O deslocamento dos europeus até o Uruguai se deu no transatlântico Conte Verde, que deixou o porto de Barcelona em 20 de junho, tendo a bordo a delegação belga. No dia seguinte aportou perto de Nice e recebeu os jogadores franceses e a delegação da FIFA. Em Gênova, embarcaram os romenos. No dia 25, outro transatlântico, o Flórida, levou os iugoslavos, que não queriam dividir a mesma embarcação com os romenos.

A participação do Brasil primou pela tradição: foi uma imensa baderna, uma balbúrdia sem fim. O presidente da CBD (antiga CBF), Renato Pacheco, apesar dos inúmeros entreveros resultantes do regionalismo renitente, decidiu formar uma comissão técnica composta apenas por cariocas. Em represália, os paulistas proibiram todos os seus jogadores de participarem da Seleção – haviam convocado 11 jogadores cariocas e 11 paulistas, inicialmente. Aliás, não houve a preocupação sequer de levar um técnico: essa posição foi ocupada até pelo árbitro brasileiro convocado para o torneio.  

Dentre os jogadores paulistas não liberados não estavam Arthur Friedenreich, maior artilheiro brasileiros de todos os tempos, com 1329 gols. O selecionado inteiro contava com apenas um jogador negro, Fausto, maranhense, e que chegou a jogar no exterior.

Diante do caos provocado entre as federações do Rio e de São Paulo, Pacheco convocou Poly, jogador do Americano de Campos, e mais dois cariocas para a comissão técnica. O Brasil embarcava para o Uruguai com um seleção e uma comissão técnica quase exclusivamente do DF (Rio de Janeiro à época), com exceção de Poly.

Quando o navio Conte Verde, após aportar no Rio de Janeiro e receber os brasileiros, aportou em Santos, houve uma enorme e muito bem vinda surpresa: Araken Patusca, centroavante importante em São do Santos, rompeu com seu clube e embarcou para o Uruguai com sua esposa. Dias após, mais dois rebelados se juntaram ao escrete cararinho: o goleiro Joel e o ponta-esquerda Theophio. O Brasil tinha agora mais jogadores do que poderiam sei inscritos: 24 em vez de 22. - inaugurava assim outra tradição que se manteria ao largo dos anos, a de delegação inchada e cara.

A preparação da Seleção se deu com apenas 2 treinos, um no Rio e o outro em Niterói. Araken não esteve presente, mas seu patriotismo o fez ser escalado entre os titulares.  

O Brasil enfrentaria, no dia 14 de julho, a Iugoslávia; dia 20, a Bolívia – era o Grupos 2. O grupo 1 tinha Argentina, Chile e México. O 3, agrupava Uruguai, Romênia e Peru. O grupo 4 era composto por Estados Unidos, Paraguai e Bélgica.

O início do torneio se deu entre França e México, jogando em Pocitos, enquanto Estados Unidos e Bélgica se enfrentavam no campo do Nacional. Se os belgas não tinham seu melhor jogador, os Estados Unidos estavam completos, com seu brutamontes escoceses patrocinados pela Bethlem Steel.
E foi um escocês quem fez o primeiro gol das Copas: Bert MsGhee. Ele converteu aos 10 e aos 15 minutos do primeiro tempo. Incrivelmente a honra do primeiro gol foi dada oficialmente ao francês Lucien Laurent, que só fez seu gol aos 19 minutos.

Fim de jogo, França saiu-se vencedora contra o México,por 4x1; a Bélgica perdeu por 3x0 dos Estados Unidos. A marca registrada dessas partidas foi a violência.

O Brasil enfrentou a Iugoslávia em 14 de julho, no parque Central. Se o Brasil realizou uma preparação patética e estava desfalcada de praticamente todos os grandes jogadores brasileiros, a Iugoslávia estava completa e confiante. O primeiro tempo terminou em 2x0 para os iugoslavos. No segundo tempo, Preguinho (filho do escritor Coelho Neto), fez o primeiro gol brasileiro em Copas. Mas foi insuficiente e o Brasil perdeu – como o grupo do Brasil tinha apenas 3 seleções, esta derrota praticamente eliminava o país do torneio. O destaque brasileiro foi o único jogador negro, Fausto.
O jogo Romênia x Peru, vencido pelos romenos por 3x1, viu a primeira expulsão em Copas – Galindo quebrou a perna do zagueiro romeno Steiner.

O árbitro brasileiro Almeida Rego estreou no apito no jogo Argentina x França. Os uruguaios apoiaram tresloucadamente os franceses, o jogo foi duro, mas Monti, melhor jogador da Arentina, fez um gol de falta aos 36 do segundo tempo. Mas, inexplicadamente, o árbitro brasileiro apitou fim de jogo aos 39 minutos. Após um inevitável tumulto, os times retornaram para disputar os 6 minutos que faltavam, mas a França desanimou e o jogo terminou mesmo em 1x0. A polícia teve de intervir ao fim da partida.

No dia 16, o Chile derrotou o México por 3x0. A Iugoslávia dispensou a Bolívia por 4x0 e passou às semifinais ao lado dos EUA, que derrotaram o Paraguai por 3x0.

O Uruguai vinha levando aquele torneio a sério. Ainda na preparação, o goleiro Andrés Lazzali foi dispensado após fugir da concentração para uma noitada. O atacante Scarone também foi dispensado. Em seu lugar entrou o atacante maneta (não tinha o braço esquerdo) “Manco” Castro, que fez o gol da vitória contra o Peru, por 1x0.

No dia 19, o Chile derrotou a França por 1x0. Já a Argentina não tomou conhecimento do México: 6x3. Aqui se viu o primeiro pênalti em Copas, a favor do México. Aquela chave viu o embate Chile x Argentina.

O Brasil se despediu vencendo a Bolívia por 4x0. No outro grupo, o Paraguai ganhou da Bélgica, 1x0.

No dia 21, o Uruguai garantiu sua vaga na semifinal vencendo a Romênia por 4x0. A outra chave viu a Argentina dispensando o Chile: 3x1. Nessa partida, o craque Monti foi socado no rosto pelo chileno Subiare. Era o primeiro efeito que o excesso de cobrança e as ameças à sua vida e à vida de sua mãe tiveram sobre o valente craque argentino. Ele praticamente não jogaria a final.

Quanto à batalha campal, ninguém foi expulso e Subiare teve de deixar a partida devido à chuva de socos e pontapés que levou.

Nas semifinais, a Argentina mandou os yankees para casa, vencendo por humilhantes 6x1. Interessante notar que o médico norte-americano faleceu em campo, correndo nervosamente em direção ao árbitro, por conta de um pênalti mal marcado. Ao correr, o médico quebrou um vidro de clorofórmio, causa de seu falecimento.

Os Uruguaios também venceram a Iugoslávia por 6x1.

Portanto, a final se deu entre os velhos inimigos: Uruguai x Argentina. Guerra à vista!

A polícia reduziu a capacidade do Centenário em 10 mil lugares, esquemas policiais dentro e fora do estádio foram elaborados, mas o clima continuava tenso – construiu-se uma sala de cirurgia dentro do estádio. Barcas atravessavam o Rio da Prata lotadas de argentinos – tiveram reservados 20 mil lugares.

O árbitro belga só aceitou apitar a partida após receber um gordo seguro de vida e com a garantia de que seria evacuado do país num barco logo após o apito final.

Apesar das rusgas, argentinos e uruguaios dividiam o mesmo amor pelo tango. Carlos Gardel foi convocado para aplacar os ânimos exaltados de ambas as seleções.  

Na partida, a Argentina venceu o primeiro tempo por 2x1, mas o Uruguai marcou três no segundo tempo. Um pênalti contra o Uruguai mas não marcado pelo árbitro desestabilizou completamente os argentinos. Uruguai, campeão, 4; Argentina, 1.

Quanto ao Brasil, Preguinho deu depoimentos sobre a péssima participação canarinho e sobre seu gol inaugural do Brasil em Copas. O goleiro Joel falou do terrível frio que enfrentou. E nosso primeiro herói, o negro e maranhense Fausto, falou dos obstáculos quase intransponíveis enfrentados pelos negros no futebol – e em quase qualquer coisa.

Quando da eliminação do Brasil, Fausto declarou: “Perder não é feio. Feio é ter medo. O Araken jogou como uma bailarina. Poli tinha medo da própria sombra. Nilo fugiu da bola e Teófilo nem se aproximava da área. Mas tivemos gente brava. A Itália lutou do começo ao fim, o Fernando Guidicelli deu o que pôde e o Preguinho foi um Davi, fazendo ziguezague no meio daqueles gigantes iugoslavos. No final, pensei em ir ajudar o Prego lá na frente. Mas lembrei que era o único preto do time e, se tomássemos outro gol, acabaria levando a culpa. O racismo no Brasil me impediu de ir à frente.”

Fausto foi ídolo do Vasco. Após a Copa, transferiu-se para o Barcelona, depois para o Young Fellows da Suíça, e para o Nacional de Montevidéu. Saudoso da pátria, decidiu retornar ao Brasil, quando jogou pelo Flamengo.

Em 1939, Fausto foi internado num hospital no interior de Minas Gerais, com tuberculose. Morreu pouco após, pobre e doente.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “O arquivo secreto das Copas: 1934-1954”

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