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terça-feira, 17 de julho de 2018

O TERREMOTO CULTURAL DE LISBOA E SEUS ECOS ALÉM-MAR



Durante os primeiros séculos após o descobrimento, em abril de 1500, os planos de Portugal para o Brasil não superavam a fase de extrativismo madeireiro. Após algumas décadas e frente aos perigos decorrentes da posse de tão largas terras, El Rey ordenou a divisão dessas terras em latifúndios e as doou a aristocratas correligionários e assim se deu a fundação de engenhos e a exportação de açúcar. Após as crises com Holandeses e a entrada dos franceses no mercado internacional do açúcar, finalmente a Coroa encontrou ouro e diamantes, cuja exploração ajudou na superação da crise econômica que atingia o Reino.

Pois bem, durante todo esse período, a língua predominante foi o tupi-guarani, a língua do povo e até dos “remediados”, a tal classe média. A língua portuguesa era considerada uma língua culta, cujos falantes pertenciam aos estamentos mais elevados. E essa realidade não mudaria, não fosse uma tragédia que atingiu Lisboa.

Em 01 de novembro de 1755, ironicamente véspera do Dia de Finados, um terremoto de proporções bíblicas atingiu Lisboa, gerando ondas entre 10 e 30 metros que destruíram completamente a cidade, assim como o Algarve e Setúbal. Estima-se em mais milhares os mortos. Até fortalezas vieram abaixo. Documentos oficiais, relacionados às grandes navegações, Vasco da Gama, Cristóvão Colombo forma perdidos para sempre.

Entre os sobreviventes, estavam o rei D. José I e seu Secretário de Estado e futuro Primeiro-Ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Por conselho deste e consentimento daquele, dariam início à reconstrução de Portugal – tarefa que perduraria todo o tempo do Marquês à frente do governo, até 1777.

Os mais diversos serviços e obras relacionados à tarefa consumiram grandes investimentos públicos. Para tanto, foram necessários cortes de gastos da própria administração pública e aumentos de impostos, tanto na metrópole quanto nas colônias, sendo o Brasil a principal delas naquela altura. Além disso, as atividades da Cia. de Jesus foram proibidas e os jesuítas, banidos da colônia sul-americana. Os próprios investimentos educacionais na Colônia foram reduzidos ao nível mínimo.

Outra ordem do Marquês foi a proibição de falar o tupi-guarani. O português era obrigatório, embora tenha sofrido tantas adaptações locais que se tornou um tanto diferente daquele falado no Reino.

Durante todo o período colonial, a cultural brasileira esteve em fermentação. À cultura indígena, presente na produção de redes, no preparo da mandioca ou da pipoca, assim como nas músicas e instrumentos musicais, somavam-se as contribuições trazidas pelos africanos, com instrumentos de percussão (berimbau, bambolê), cultos religiosos de matriz africana, culinária (vatapá, pé-de-moleque, acarajé, angu), danças como capoeira e muito mais. Essa criação cultural, no entanto, ocorria apesar dos obstáculos que enfrentavam: os indígenas sofriam uma guerra de extermínio e os negros eram mantidos isolados em senzalas e eram trazidos da África misturados entre grupos étnicos distintos, justamente para que não formassem laços familiares e culturais no Brasil. Mesmo eles assim foram capazes de produzir riquezas culturais como o samba e a umbanda.

Existia, portanto, uma incipiente cultura popular, amplamente ignorada pela elite local (que consumia aquilo que vinha da metrópole). A ela se somou o barroco, que aqui viveu relativamente independente do barroco de Portugal, vigente nos séculos XVII e XVIII. Foi quando o poeta Manuel Botelho de Oliveira lançou Música do Parnaso, que foi publicado em Portugal mas possui o mérito de ter sido a primeira publicação literário de alguém nascido no Brasil. A ela se somavam as obras musicais do padre Caetano Melo de Jesus, os poemas de Gregório de Matos e as esculturas do artista plástico Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

Outros poetas surgiram no âmbito da Conjuração Mineira (nome mais apropriado à história nacional do que Inconfidência Mineira), como os arcádios Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa. Importante notar que o lirismo presente em seus versos foram mais tarde resgatados nas composições do Clube da Esquina.

O episódio seguinte, que ajudou a definir uma cultural nata, foi a chegada da Família Real, em 1808, após sua fuga de Portugal. A cidade do Rio de Janeiro, que embora completasse mais de 24 de sua fundação, há apenas 45 servia como capital colonial, mas teve de abrigar dentro de seus limites mais de 75 mil portugueses que, de egos inflados, tinham a sensação de que poderiam escorraçar os antigos moradores a seu bel-prazer. Criou-se uma crise com os cariocas indignados.

Todavia, surgiram academias, bibliotecas, faculdades (mas Universidade mesmo só viria no século XX), da imprensa (embora o único jornal a circular por essas bandas, o Correio Braziliense de Hipólito da Costa, continuasse a ser impresso em Londres, mas por necessidade editorial, haja vista a oposição que fazia à monarquia portuguesa). Este mesmo jornal retornaria à ativa após um interstício, quando da sua aquisição pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand, e se tornou símbolo de Brasília, após sua fundação como Capital Federal.

O Brasil pós-1808 e, especialmente, pós-1822, viu a eletrificação nas cidades, a ferrovia encurtando distâncias, o empreendedorismo do Barão de Mauá. Viu também a literatura sendo influenciada pelo romantismo, dando à luz O Guarani, em 1857.

Mas também continuava a ser um país de conflitos – os índios não eram considerados cidadãos e assim permaneceria seu status, até a CF de 1988. Os escravos continuariam nessa condição, mesmo após a Independência, muito em função da pressão da elite monocultora e culturalmente diminuta que dependia de mão-de-obra a custo risível para fazer com que seus negócios de modelo obsoleto dessem algum lucro (que corriam para os bolsos dos importadores de escravos, deixando-os apenas com as dívidas que se arrastariam por gerações).  

O Brasil também já desenhava seu atual aspecto de “túmulo de jovens”. A Guerra do Paraguai expunha, de um lado, jovens obres treinados “nas coxas” para lutarem (e morrerem, claro) no conflito; de outro, ricos latifundiários que doavam seus jagunços e escravos aos quase inexistente Exército brasileiro e que, em troca e após a vitória, receberam a patente de coronéis do exército, que ficaria após alguns anos associado aos líderes políticos regionais que comandavam seus estados com mãos de ferro. Nosso caráter de país sem soberania também se fez presente, após sucumbirmos à exigência inglesa para ajudarmos Argentina e Uruguai e exterminar o valente Paraguai.

Aqueles anos também expuseram nossas entranhas de país que vive uma tragédia social, produzida ao longo de séculos. O fim da Guerra do Paraguai fez surgirem escravos libertos (prêmio prometido caso atuassem no conflito), escravos traídos por seus senhores (pois não foram libertos, como havia sido prometido), e toda a gama de citadinos pré-existentes. O resultado disso foi uma crise política que descambou na decretação da Abolição da Escravidão pela princesa Isabel de Bragança e Boubon, quem exercia a chefia de Estado enquanto seu pai cumpria compromissos na Europa. Interessante notar que a escravidão se encontrava em declínio no nordeste, tradicional regional escravista, mas em crescimento vertiginoso no sudeste, lançado à atividade cafeicultora – o comércio interno de escravos, enquanto a importação estava sob fogo cerrado inglês, floresceu.

Sem sombra de dúvidas, a resistência irracional dos fazendeiros ao fim do comércio escravo apresentava ao mundo o caráter retrógrado e insular dos brasileiros, frente às mudanças ocorridas no mundo.

Voltando à perspectiva musical da análise cultural brasileira, a interação entre as mais diversas culturas adicionadas a esse caldeirão cultural a que chamamos Brasil, deu surgimento a diversos estilos musicais: modinhas, catiras, sambas, lundus. A música erudita, de cepa europeia, tinha no Brasil o maestro Carlos Gomes como seu representante maior. Carlos se tornou mundialmente famoso após sua obra-prima, O Guarani, baseada na obra literária de José de Alencar.

A pianista e compositora Chiquinha Gonzaga criou obras musicais nos ritmos da polca, dos lundus, dos maxixes, dentre outras. Aqueles tempos imprimiram mudanças relevantes, embora nem de longe espelhassem a revolução por que passava a Europa.

Findo o instituto da escravidão (oficialmente, pois ilegalmente ela persiste no país, agora tendo como alvo não apenas africanos importados como escravos, mas qualquer pessoa no limiar da linha da pobreza), os ex-escravos passaram à marginalidade (com algumas exceções) e, em decorrência desta e em muitos casos, ao banditismo – afinal, nada receberam após séculos de labor intenso, levando uma agricultura medieval a exportar produtos para todo o mundo. Aquela grande massa de miseráveis se acumulou em bolsões de pobreza, nas favelas urbanas ou em suas equivalentes rurais.

Os ex-senhores de escravos não tinham mais escravos, nem receberam uma indenização equivalente. Em represália, apoiaram o movimento republicano, que queria pôr um ponto final na exótica monarquia brasileira, a única abaixo do Equador.    

Assim caminhava o Brasil: a monarquia, sistema de governo milenar e geralmente conservador, foi enfrentada por republicanos, que defendiam um sistema de governo moderno, mas eram apoiados pelo que havia de mais retrógrado no país. E contradições como essas ainda se multiplicariam ao longo das décadas.  


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Música brasileira e cultura popular em crise”

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