Durante os primeiros séculos após o descobrimento, em abril
de 1500, os planos de Portugal para o Brasil não superavam a fase de extrativismo
madeireiro. Após algumas décadas e frente aos perigos decorrentes da posse de
tão largas terras, El Rey ordenou a divisão dessas terras em latifúndios e as
doou a aristocratas correligionários e assim se deu a fundação de engenhos e a exportação
de açúcar. Após as crises com Holandeses e a entrada dos franceses no mercado
internacional do açúcar, finalmente a Coroa encontrou ouro e diamantes, cuja
exploração ajudou na superação da crise econômica que atingia o Reino.
Pois bem, durante todo esse período, a língua predominante
foi o tupi-guarani, a língua do povo e até dos “remediados”, a tal classe
média. A língua portuguesa era considerada uma língua culta, cujos falantes
pertenciam aos estamentos mais elevados. E essa realidade não mudaria, não
fosse uma tragédia que atingiu Lisboa.
Em 01 de novembro de 1755, ironicamente véspera do Dia de Finados,
um terremoto de proporções bíblicas atingiu Lisboa, gerando ondas entre 10 e 30
metros que destruíram completamente a cidade, assim como o Algarve e Setúbal.
Estima-se em mais milhares os mortos. Até fortalezas vieram abaixo. Documentos
oficiais, relacionados às grandes navegações, Vasco da Gama, Cristóvão Colombo forma
perdidos para sempre.
Entre os sobreviventes, estavam o rei D. José I e seu
Secretário de Estado e futuro Primeiro-Ministro Sebastião José de Carvalho e
Melo, o Marquês de Pombal. Por conselho deste e consentimento daquele, dariam
início à reconstrução de Portugal – tarefa que perduraria todo o tempo do
Marquês à frente do governo, até 1777.
Os mais diversos serviços e obras relacionados à tarefa consumiram
grandes investimentos públicos. Para tanto, foram necessários cortes de gastos
da própria administração pública e aumentos de impostos, tanto na metrópole
quanto nas colônias, sendo o Brasil a principal delas naquela altura. Além
disso, as atividades da Cia. de Jesus foram proibidas e os jesuítas, banidos da
colônia sul-americana. Os próprios investimentos educacionais na Colônia foram
reduzidos ao nível mínimo.
Outra ordem do Marquês foi a proibição de falar o
tupi-guarani. O português era obrigatório, embora tenha sofrido tantas
adaptações locais que se tornou um tanto diferente daquele falado no Reino.
Durante todo o período colonial, a cultural brasileira esteve
em fermentação. À cultura indígena, presente na produção de redes, no preparo
da mandioca ou da pipoca, assim como nas músicas e instrumentos musicais, somavam-se
as contribuições trazidas pelos africanos, com instrumentos de percussão
(berimbau, bambolê), cultos religiosos de matriz africana, culinária (vatapá,
pé-de-moleque, acarajé, angu), danças como capoeira e muito mais. Essa criação
cultural, no entanto, ocorria apesar dos obstáculos que enfrentavam: os
indígenas sofriam uma guerra de extermínio e os negros eram mantidos isolados
em senzalas e eram trazidos da África misturados entre grupos étnicos
distintos, justamente para que não formassem laços familiares e culturais no
Brasil. Mesmo eles assim foram capazes de produzir riquezas culturais como o
samba e a umbanda.
Existia, portanto, uma incipiente cultura popular,
amplamente ignorada pela elite local (que consumia aquilo que vinha da
metrópole). A ela se somou o barroco, que aqui viveu relativamente independente
do barroco de Portugal, vigente nos séculos XVII e XVIII. Foi quando o poeta Manuel
Botelho de Oliveira lançou Música do Parnaso, que foi publicado em Portugal mas
possui o mérito de ter sido a primeira publicação literário de alguém nascido
no Brasil. A ela se somavam as obras musicais do padre Caetano Melo de Jesus,
os poemas de Gregório de Matos e as esculturas do artista plástico Antônio
Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Outros poetas surgiram no âmbito da Conjuração Mineira (nome
mais apropriado à história nacional do que Inconfidência Mineira), como os
arcádios Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa. Importante notar que
o lirismo presente em seus versos foram mais tarde resgatados nas composições do
Clube da Esquina.
O episódio seguinte, que ajudou a definir uma cultural nata,
foi a chegada da Família Real, em 1808, após sua fuga de Portugal. A cidade do
Rio de Janeiro, que embora completasse mais de 24 de sua fundação, há apenas 45
servia como capital colonial, mas teve de abrigar dentro de seus limites mais
de 75 mil portugueses que, de egos inflados, tinham a sensação de que poderiam
escorraçar os antigos moradores a seu bel-prazer. Criou-se uma crise com os
cariocas indignados.
Todavia, surgiram academias, bibliotecas, faculdades (mas
Universidade mesmo só viria no século XX), da imprensa (embora o único jornal a
circular por essas bandas, o Correio Braziliense de Hipólito da Costa,
continuasse a ser impresso em Londres, mas por necessidade editorial, haja
vista a oposição que fazia à monarquia portuguesa). Este mesmo jornal
retornaria à ativa após um interstício, quando da sua aquisição pelos Diários
Associados de Assis Chateaubriand, e se tornou símbolo de Brasília, após sua
fundação como Capital Federal.
O Brasil pós-1808 e, especialmente, pós-1822, viu a
eletrificação nas cidades, a ferrovia encurtando distâncias, o empreendedorismo
do Barão de Mauá. Viu também a literatura sendo influenciada pelo romantismo,
dando à luz O Guarani, em 1857.
Mas também continuava a ser um país de conflitos – os índios
não eram considerados cidadãos e assim permaneceria seu status, até a CF de
1988. Os escravos continuariam nessa condição, mesmo após a Independência,
muito em função da pressão da elite monocultora e culturalmente diminuta que
dependia de mão-de-obra a custo risível para fazer com que seus negócios de modelo
obsoleto dessem algum lucro (que corriam para os bolsos dos importadores de
escravos, deixando-os apenas com as dívidas que se arrastariam por gerações).
O Brasil também já desenhava seu atual aspecto de “túmulo de
jovens”. A Guerra do Paraguai expunha, de um lado, jovens obres treinados “nas
coxas” para lutarem (e morrerem, claro) no conflito; de outro, ricos latifundiários
que doavam seus jagunços e escravos aos quase inexistente Exército brasileiro e
que, em troca e após a vitória, receberam a patente de coronéis do exército,
que ficaria após alguns anos associado aos líderes políticos regionais que
comandavam seus estados com mãos de ferro. Nosso caráter de país sem soberania
também se fez presente, após sucumbirmos à exigência inglesa para ajudarmos
Argentina e Uruguai e exterminar o valente Paraguai.
Aqueles anos também expuseram nossas entranhas de país que
vive uma tragédia social, produzida ao longo de séculos. O fim da Guerra do
Paraguai fez surgirem escravos libertos (prêmio prometido caso atuassem no
conflito), escravos traídos por seus senhores (pois não foram libertos, como havia
sido prometido), e toda a gama de citadinos pré-existentes. O resultado disso
foi uma crise política que descambou na decretação da Abolição da Escravidão
pela princesa Isabel de Bragança e Boubon, quem exercia a chefia de Estado
enquanto seu pai cumpria compromissos na Europa. Interessante notar que a
escravidão se encontrava em declínio no nordeste, tradicional regional
escravista, mas em crescimento vertiginoso no sudeste, lançado à atividade
cafeicultora – o comércio interno de escravos, enquanto a importação estava sob
fogo cerrado inglês, floresceu.
Sem sombra de dúvidas, a resistência irracional dos
fazendeiros ao fim do comércio escravo apresentava ao mundo o caráter retrógrado
e insular dos brasileiros, frente às mudanças ocorridas no mundo.
Voltando à perspectiva musical da análise cultural
brasileira, a interação entre as mais diversas culturas adicionadas a esse
caldeirão cultural a que chamamos Brasil, deu surgimento a diversos estilos
musicais: modinhas, catiras, sambas, lundus. A música erudita, de cepa europeia,
tinha no Brasil o maestro Carlos Gomes como seu representante maior. Carlos se
tornou mundialmente famoso após sua obra-prima, O Guarani, baseada na obra
literária de José de Alencar.
A pianista e compositora Chiquinha Gonzaga criou obras
musicais nos ritmos da polca, dos lundus, dos maxixes, dentre outras. Aqueles
tempos imprimiram mudanças relevantes, embora nem de longe espelhassem a
revolução por que passava a Europa.
Findo o instituto da escravidão (oficialmente, pois
ilegalmente ela persiste no país, agora tendo como alvo não apenas africanos
importados como escravos, mas qualquer pessoa no limiar da linha da pobreza),
os ex-escravos passaram à marginalidade (com algumas exceções) e, em
decorrência desta e em muitos casos, ao banditismo – afinal, nada receberam
após séculos de labor intenso, levando uma agricultura medieval a exportar
produtos para todo o mundo. Aquela grande massa de miseráveis se acumulou em
bolsões de pobreza, nas favelas urbanas ou em suas equivalentes rurais.
Os ex-senhores de escravos não tinham mais escravos, nem receberam
uma indenização equivalente. Em represália, apoiaram o movimento republicano,
que queria pôr um ponto final na exótica monarquia brasileira, a única abaixo
do Equador.
Assim caminhava o Brasil: a monarquia, sistema de governo milenar
e geralmente conservador, foi enfrentada por republicanos, que defendiam um
sistema de governo moderno, mas eram apoiados pelo que havia de mais retrógrado
no país. E contradições como essas ainda se multiplicariam ao longo das
décadas.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Música brasileira e cultura popular em crise”
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