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sexta-feira, 27 de julho de 2018

OS ÔNIBUS DOS ARRASTÕES E AS CARAVANAS DE CHICO BUARQUE



As imagens da polícia carioca impedindo ônibus vindos dos subúrbios de chegarem às praias da Zona Sul, transportando  passageiros indesejados pelos moradores locais, deram munição para mais uma crítica social produzida pelo cantor de voz suave e de versos ferinos.


AS CARAVANAS – CHICO BUARQUE


É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o buchicho, é a charanga

A canção começa descrevendo um belo dia de céu azul e mar calmo, daqueles que tiram os cariocas da cama mais cedo e os levam a procurar as areias escaldantes das praias.
É quando chegam os “inimigos”. Vindos de Caxangá, Chatuba, Irajá, Penha nomes que soam como favelas e bairros periféricos pobres, os “favelados” chegam, e consigo levam o temor de assaltos, arrastões e quetais, medos típicos de sociedades caóticas.
Contudo, apesar dos “apelos” dos cidadãos “de bem”, ainda vivemos numa democracia, o direito de ir e vir é, ainda que mal e muito porcamente, estendido a todos. Pode-se tentar, mas é impossível impedir que um cidadão frequente um local público.
Jardim de Alá, além de conectar a palavra “muçulmano”, que traz consigo o imaginário do homem-bomba, já bastante associado com traficantes e marginais dos morros cariocas, também remete à riqueza: este local divide os bairros do Leblon e de Ipanema.

Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré

Aqui, poeticamente, Chico fala dos discursos absurdos que tentam legitimar tamanha violência: fala do medo de  que estejam todos portando armas e que assim ameacem os banhistas e os roubem...
Depois, conecta com o racismo de outrora, que criou o imaginário de negros robustos – racismo esse que apenas se transportou das senzalas dos latifúndios monocultores para as favelas, que em quase nada se diferem.    

Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné

Novamente, a relação implícita entre negros x brancos, pobres x “ricos”, e a semelhança entre favelas e países africanos fornecedores de escravos.

Sol
A culpa deve ser do sol que bate na moleira
O sol que estoura as veias
O suor que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar

Os aspectos caóticos da sociedade carioca têm idiossincrasias que não se percebem em outras cidades do Brasil. A irritabilidade, a violência explícita, em muitas situações são “justificadas” pelo calor infernal, o que vitima até mesmo as relações interpessoais.
Na parte final, mais uma analogia comum, mas longe de estar desgastada: prisões contemporâneas e porões de navios negreiros. Chico aproveita para encaixar mais uma crítica social: tendo uma conformação desumana, impossível esperar que as pessoas ali se comportem de maneira civilizada e ordeira.

Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há

E então passa para a reação do lado “oficial”: incentivo à reação violenta, desmesurada e, sobretudo, covarde, por parte dos policiais (servidores públicos), tudo isso incentivado e até desejado pela sociedade à qual servem. Isto é: o medo leva à raiva, que leva à covardia da sanha persecutória.
Temor comum o que Chico expressa no terceiro verso: diante de uma sociedade que grita “A”, e da minha discordância, pois grito “B”, o louco sou eu ou são os demais? Machado de Assis já escrevia sobre isso no século XIX.
No fim, sua conclusão: a sociedade é “doida de pedra”, assim como eu. Nem naqueles ônibus lotados daquela “gente terrível” há mais insanidade do que em nós...

Sol
A culpa deve ser do sol que bate na moleira
O sol que estoura as veias
O suor que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar



Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana
Nem caravana
Nem caravana do Arará


Rubem L. de F. Auto

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