As imagens da polícia carioca impedindo ônibus vindos dos subúrbios de chegarem às praias da Zona Sul, transportando passageiros indesejados pelos moradores locais, deram munição para mais uma crítica social produzida pelo cantor de voz suave e de versos ferinos.
AS CARAVANAS – CHICO BUARQUE
É um dia de real
grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la
Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os
miolos
Quando pinta em
Copacabana
A caravana do Arará,
do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá,
o comboio da Penha
Não há barreira que
retenha esses estranhos
Suburbanos tipo
muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim
de Alá
É o bicho, é o
buchicho, é a charanga
A canção começa descrevendo um belo dia de céu azul e mar
calmo, daqueles que tiram os cariocas da cama mais cedo e os levam a procurar
as areias escaldantes das praias.
É quando chegam os “inimigos”. Vindos de Caxangá, Chatuba, Irajá,
Penha nomes que soam como favelas e bairros periféricos pobres, os “favelados” chegam,
e consigo levam o temor de assaltos, arrastões e quetais, medos típicos de sociedades
caóticas.
Contudo, apesar dos “apelos” dos cidadãos “de bem”, ainda
vivemos numa democracia, o direito de ir e vir é, ainda que mal e muito
porcamente, estendido a todos. Pode-se tentar, mas é impossível impedir que um
cidadão frequente um local público.
Jardim de Alá, além de conectar a palavra “muçulmano”, que
traz consigo o imaginário do homem-bomba, já bastante associado com traficantes
e marginais dos morros cariocas, também remete à riqueza: este local divide os
bairros do Leblon e de Ipanema.
Diz que malocam seus
facões e adagas
Em sungas estufadas e
calções disformes
É, diz que eles têm
picas enormes
E seus sacos são
granadas
Lá das quebradas da
Maré
Aqui, poeticamente, Chico fala dos discursos absurdos que
tentam legitimar tamanha violência: fala do medo de que estejam todos portando armas e que assim
ameacem os banhistas e os roubem...
Depois, conecta com o racismo de outrora, que criou o
imaginário de negros robustos – racismo esse que apenas se transportou das
senzalas dos latifúndios monocultores para as favelas, que em quase nada se
diferem.
Com negros torsos nus
deixam em polvorosa
A gente ordeira e
virtuosa que apela
Pra polícia despachar
de volta
O populacho pra
favela
Ou pra Benguela, ou
pra Guiné
Novamente, a relação implícita entre negros x brancos,
pobres x “ricos”, e a semelhança entre favelas e países africanos fornecedores
de escravos.
Sol
A culpa deve ser do
sol que bate na moleira
O sol que estoura as
veias
O suor que embaça os
olhos e a razão
E essa zoeira dentro
da prisão
Crioulos empilhados
no porão
De caravelas no alto
mar
Os aspectos caóticos da sociedade carioca têm idiossincrasias
que não se percebem em outras cidades do Brasil. A irritabilidade, a violência
explícita, em muitas situações são “justificadas” pelo calor infernal, o que vitima
até mesmo as relações interpessoais.
Na parte final, mais uma analogia comum, mas longe de estar
desgastada: prisões contemporâneas e porões de navios negreiros. Chico
aproveita para encaixar mais uma crítica social: tendo uma conformação
desumana, impossível esperar que as pessoas ali se comportem de maneira
civilizada e ordeira.
Tem que bater, tem
que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a
raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que
escuto vozes
Não há gente tão
insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há
E então passa para a reação do lado “oficial”: incentivo à
reação violenta, desmesurada e, sobretudo, covarde, por parte dos policiais
(servidores públicos), tudo isso incentivado e até desejado pela sociedade à
qual servem. Isto é: o medo leva à raiva, que leva à covardia da sanha persecutória.
Temor comum o que Chico expressa no terceiro verso: diante
de uma sociedade que grita “A”, e da minha discordância, pois grito “B”, o
louco sou eu ou são os demais? Machado de Assis já escrevia sobre isso no
século XIX.
No fim, sua conclusão: a sociedade é “doida de pedra”, assim
como eu. Nem naqueles ônibus lotados daquela “gente terrível” há mais
insanidade do que em nós...
Sol
A culpa deve ser do
sol que bate na moleira
O sol que estoura as
veias
O suor que embaça os
olhos e a razão
E essa zoeira dentro
da prisão
Crioulos empilhados
no porão
De caravelas no alto
mar
Tem que bater, tem
que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a
raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que
escuto vozes
Não há gente tão
insana
Nem caravana
Nem caravana
Nem caravana do Arará
Rubem L. de F. Auto
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