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segunda-feira, 30 de julho de 2018

GAROTO: UM GÊNIO MUSICAL DENTRE A GENTE HUMILDE



Músico seminal, prodígio, revolucionário. São muitos os adjetivos que bem se adequam ao Garoto. Primeiro a se apresentar numa sala de concerto acompanhado por uma orquestra regida pelo maestro Radamés Gnatalli, seu amigo e sincero admirador; ídolo maior de João Gilberto e de Baden Powell, Garoto teve uma carreira profissional prolífica, embora terminada abruptamente quando ele contava apenas 39 anos de idade – iniciara-se profissionalmente com inacreditáveis 11 anos, apenas.

Nascido Aníbal Augusto Sardinha, Garoto viveu a Era de Ouro do Rádio no Brasil – aliás, sua amizade com Radamés se deu nos corredores da Rádio Nacional, evento a partir do qual Garoto foi apresentado às novidades harmônicas que vinham de fora, na bagagem de Radamés.

Garoto desenvolveu habilidade para tocar com proficiência qualquer instrumento de corda que empunhasse: violão requinto, violão tenor, cavaquinho, banjo, bandolim, guitarra portuguesa.

Dentre seus feitos musicais revolucionários, consta a introdução dos acordes dissonantes no violão brasileiro, feito que o fez ser reconhecido como o “pai da bossa nova”. Garoto também integrou o grupo de Carmem Miranda e a acompanhou em seu período nos EUA – oportunidade em que se afeiçoou com as “blue notes” e tomou contato com o jazz e o bebop.

O estudo do violão clássico fez-lhe acrescentar a erudição às suas obras. Em sua obra, ao lado de pequenas peças de concerto, valsas, choros, convivem os clássicos “Gente Humilde” e “Duas Contas”.

Por tudo isso, Garoto figura nos alicerces de linhagem de grandes violonistas como Canhoto, Dilermando Reis, Zé Menezes, Laurindo de Almeida, Sebastião Tapajós, Baden Powell, Rafael Rabello, Paulo Belinatti, Guinga, Yamandu Costa e muitos outros.

Garoto nasceu em São Paulo, no ano de 1915, e em meio às notícias aflitas vindas da Europa, desgraçada pela I Guerra Mundial. Era o filho dos portugueses Antônio Augusto e Adozinha dos Anjos Sardinha. Era irmão de outros seis, mas o único concebido no Brasil. Seu batismo foi marcado pela presença dos melhores chorões de Sampa, empunhando violão, flauta e bandolim. À porta da igreja se ouvia a valsa “Belinha”.

O ano de sue nascimento tinha como maior “hit” um choro de Ernesto Nazareth, “Apanhei-te cavaquinho”, interpretado pelo grupo Passos do Choro. Os dois maiores cantores daquele ano eram Eduardo das Neves e Baiano.

A casa da família Sardinha transpirava notas musicais. “Seu” Antônio Augusto tocava bem o violão e a guitarra portuguesa. O irmão Inocêncio tocava o banjo e um outro irmão, Batista, tinha habilidades com violão, banjo e guitarra portuguesa. Garoto já mostrava que queria se juntar aos irmãos músicos: “Aso cinco anos peguei atrás do lavatório o violão de cinco réis do meu irão Batista, do qual ele tinha um ciúme louco. Sozinho, fiz a primeira e a segunda posição de dó maior.” Um vizinho da família, o português Seu Bernardo, já havia percebido o talento musical do menino, quando aconselhou o filho músico de Seu Antônio, Batista: “Deixe o menino pegar nos instrumentos, vais ver que ele vai te passar a perna. Mais tarde me contarás...”

A casa dos Sardinha ficava na avenida Tamanduateí, na Vila Economisadora – bairro operário, malvisto, seus irmão estavam sempre metidos em confusão; mas era terra de ótimos músicos. Devido à pouca idade, as broncas tomadas por Garoto sempre vinham com o vocativo “moleque”, em referência a ele. Daí surgiu seu primeiro apelido: Moleque do Banjo.

Estando claro o talento musical do “moleque”, o irmão Batista então o presenteou com um violino usado e sem arco. O moleque então improvisou um arco e com esse arremedo de violino tocou a valsa Piquenique trágico, e uma Ave Maria, talvez a obra de Schubert. A apresentação rendeu-lhe um violino novinho. Os irmãos Inocêncio e Batista logo buscaram uma maneira de introduzir aquele pequeno prodígio nos estudos de música. Mas um fato quase lhe impediria de seguir seu talento natural.

Quando tinha apenas 10 anos de idade, Garoto  ouviu se sua mãe que seu pai, funcionário da Guarda Civil, ficara paralítico. Como seus irmãos mais velhos já moravam com suas próprias famílias, caberia ao Aníbal sustentar a família. Com muita tristeza e mágoa Garoto teve de se afastar dos estudos de música.

Arrumou então um emprego como auxiliar de escritório, cuja tarefa era a entrega de correspondências na agência dos Correios. Logo surgiu um “obstáculo” no caminho do “moleque do banjo”: havia uma escola de música, de um pianista chamado Gaó. Quando o professor estava a dedilhar choros ao piano, o jovem Aníbal ficava hipnotizado, alheio às suas tarefas. Rapidamente foi flagrado por uma colega, viajando alto nas notas musicais, foi então dedurado a seu chefe, que o demitiu prontamente.
Seu curso primário também foi marcado por algumas indisciplinas. Seu professor, certo dia, falava de um “homem extraordinariamente dotado”, enviado por Deus à Terra: Jesus de Nazaré. Mas logo percebeu que Garoto não parecia atento a uma só palavra que ele dizia. Então chamou a atenção do rapaz e perguntou: Sr. Aníbal Augusto Sardinha, qual foi o homem extraordinariamente dotado que Deus enviou à terra? O rapazinho então retrucou: “Foi Ernesto Nazareth!”

Pouco tempo depois, os ventos pareciam mudar na vida de Garoto. Arranjou um emprego numa casa de música. Passava seus dias a tocar violões, cavaquinhos, bandolins, guitarras portuguesas etc. Dedicava-se com tal alegria à sua tarefa que fez as vendas da loja aumentarem, devido aos fregueses fascinados com aquele rapaz que tocava os instrumentos tão bem...

Garoto tomou parte numa formação da Jazz Band Universa, comandada por seu irmão Batista, tocando banjo. Depois, integrou o Regional Irmão Armaní, também ao banjo. Depois foi recrutado para o Grupo Regional do Pory – sempre ao banjo.

Depois, Garoto foi tocar cavaquinho no Conjunto dos Sócios. Amealhavam uns seis mil réis quando se apresentavam em cinemas, mas também se apresentavam em bailes e festas em São Paulo.
Ainda como músico amador, Aníbal participou de um evento de peso em São Paulo: o Salão de Automóveis da General Motors, em 1928, no Cine Odeon. Os modelos em exposição ficavam em dois salões. No salão Verde, encontrava-se o modelo La Salle, visto pela primeira vez no Brasil. No salão Vermelho contava com uma reprodução do Pórtico grego do Templo de Minerva. Entre ambos, alegrava o público a Orquestra Típica, composta por 50 músicos finamente trajados. Tocavam músicas brasileiras, portuguesas e espanholas sob a competentíssima direção musical de Canhoto, considerado então o suprassumo do cenário musical paulistano.

Canhoto tinha uma saúde frágil, por conta de problemas cardíacos que a um infarto com apenas 39 anos de idade. Canhoto recrutou para tocar no Salão os melhores músicos que conhecia, mas também convidou um menino de meros 13 anos: o Moleque do Banjo.

Foram 4 dias de intensos ensaios para a estreia, exclusiva para jornalistas e convidados de honra, que seria marcada pela execução de uma obra composta especialmente para aquele evento: a Marcha General Motors. Foi nesse evento que Garoto viu surgir diante de si um ídolo: Zezinho, o Zezinho do Banjo. Mais tarde, Zezinho passou a ser conhecido internacionalmente como Joe Carioca, pois dera voz ao personagem da Disney Zé Carioca.

Em 1927, Canhoto organizou mais um acontecimento musical e peso: as Noites Brasileiras. Foram quatro apresentações, transmitidas ao vivo pelo rádio; o primeiro ocorreu no Teatro Municipal, enquanto os três outros se deram no Teatro Boavista.

Em decorrência do evento supra, pulularam os conjuntos sertanejos. Um deles, o grupo Chorões Sertanejos, fundado em 1928 e seu primeiro disco registrado foi lançado pelo selo Parlophone, em 1930. O ano de 1930 também testemunharia o lançamento do primeiro disco de Garoto, que trazia as faixas Bichinho de Queixo, um maxixe; e Driblando, um maxixo-choro.  

Por essa época, Garoto já tocava no Chorões Sertanejos, mas ainda era chamado de Moleque e tocava cavaquinho. Ele ainda integrava o Grupo Verde e Amarelo, que se apresentava em programas radiofônicos.

O final da década de 1920 foi marcado pelo movimento de profissionalização do rádio brasileiro. As emissoras, organizadas como sociedades ou como clubes, tinham as mensalidades dos associados como sua principal fonte de renda. Contudo, esses pagamentos eram irregulares, inferires aos que seria necessário e essas emissoras viviam em penúrias. No Rio de Janeiro, destacavam-se a Rádio Sociedade Rio de Janeiro e a Rádio Clube do Brasil. São Paulo ouvia a Rádio Sociedade Record e a Rádio Educadora Paulista.

E foi na Rádio Sociedade Record que Garoto estreou seu programa, em 16 de fevereiro de 1930, um dia de domingo, no horário das 13h às 14h30. Para um melhor acompanhamento pela assistência, a programação das emissoras de rádio era publicada nos jornais. Garoto se apresentava ou como Garoto, ora como Garoto do Banjo, ora ainda como Moleque do Banjo; tocava banjo, bandolim, cavaquinho. Garoto ainda poderia se apresentar com o conjunto regional da emissora ou como músico solista. Sua visibilidade tomava corpo, mas  seu voo estava apenas no começo.

O ano de 1930 foi marcado por outro evento, este de proporções históricas e de importância indelével: o golpe de 1930, que pôs um ponto final na República Velha, dominada por fazendeiros, cujos paulistas dominavam a política nacional. Em seu lugar, foi empossado o gaúcho Getúlio Vargas, então pleno de poderes quase ditatoriais, entre eles a capacidade  de nomear interventores para governar os estados federais.

A oposição dos paulistas ao governo nacional virou resistência e a valorização da orgulhosa cultura paulista, um dos símbolos de dessa resistência. Um evento, denominado Grande Concurso de Música Brasileira, promovido pelo jornal A Gazeta, com apoio da Rádio Educadora, foi um desses símbolos de resistência. Tratava-se de um concurso entre categorias de instrumentos musicais, canto e composição, cujos vencedores seriam escolhidos por voto popular.

Os resultados, em geral surpreendentes e decepcionantes para vários dos músicos concorrentes fez despertar o espírito de competitividade, que parecia dormente dentre deles. Criou-se uma guerra entre emissoras de rádio, surgiam disputas entre músicos, que incentivavam o surgimento de torcidas, que chegavam a se enfrentar com violência. A rinha entre Garoto e Zezinho tomou ares de guerra não declarada. Garoto sempre agradeceria a essa disputa pelo talento que desenvolvera como músico.

Em 1931, Garoto ainda se apresentaria no Festival de Música Brasileira no Clube da Liberdade, com enorme sucesso. Também dedilhou seu banjo no “50º Aniversário do Liceu Nacional Rio Branco.   
Garoto então foi convidado para integrar o Grupo dos Calungas, que vinha gravando discos pela gravadora Victor, desde 1930. E foi em 1931 que aquele conjunto lançou pela Colúmbia um disco que trazia O drama de Angélica, uma toada, de um lado; e Zombando da Morte, um samba composto por Garoto com Barreto, líder do grupo, e que fez enorme sucesso na Record. O conjunto lançaria mais um disco naquele ano, também com sucesso.

Barreto era carioca, frequentador do famoso Café Lamas. Mudou-se para Sampa em 1927, fazendo por lá carreira bem sucedida como músico e onde realizou algumas parcerias com Garoto.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Gente Humilde: Vida e Música de Garoto”


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