Músico seminal, prodígio, revolucionário. São muitos os
adjetivos que bem se adequam ao Garoto. Primeiro a se apresentar numa sala de
concerto acompanhado por uma orquestra regida pelo maestro Radamés Gnatalli,
seu amigo e sincero admirador; ídolo maior de João Gilberto e de Baden Powell,
Garoto teve uma carreira profissional prolífica, embora terminada abruptamente quando
ele contava apenas 39 anos de idade – iniciara-se profissionalmente com inacreditáveis
11 anos, apenas.
Nascido Aníbal Augusto Sardinha, Garoto viveu a Era de Ouro
do Rádio no Brasil – aliás, sua amizade com Radamés se deu nos corredores da
Rádio Nacional, evento a partir do qual Garoto foi apresentado às novidades
harmônicas que vinham de fora, na bagagem de Radamés.
Garoto desenvolveu habilidade para tocar com proficiência
qualquer instrumento de corda que empunhasse: violão requinto, violão tenor,
cavaquinho, banjo, bandolim, guitarra portuguesa.
Dentre seus feitos musicais revolucionários, consta a introdução
dos acordes dissonantes no violão brasileiro, feito que o fez ser reconhecido
como o “pai da bossa nova”. Garoto também integrou o grupo de Carmem Miranda e
a acompanhou em seu período nos EUA – oportunidade em que se afeiçoou com as “blue
notes” e tomou contato com o jazz e o bebop.
O estudo do violão clássico fez-lhe acrescentar a erudição
às suas obras. Em sua obra, ao lado de pequenas peças de concerto, valsas,
choros, convivem os clássicos “Gente Humilde” e “Duas Contas”.
Por tudo isso, Garoto figura nos alicerces de linhagem de
grandes violonistas como Canhoto, Dilermando Reis, Zé Menezes, Laurindo de
Almeida, Sebastião Tapajós, Baden Powell, Rafael Rabello, Paulo Belinatti,
Guinga, Yamandu Costa e muitos outros.
Garoto nasceu em São Paulo, no ano de 1915, e em meio às
notícias aflitas vindas da Europa, desgraçada pela I Guerra Mundial. Era o
filho dos portugueses Antônio Augusto e Adozinha dos Anjos Sardinha. Era irmão
de outros seis, mas o único concebido no Brasil. Seu batismo foi marcado pela
presença dos melhores chorões de Sampa, empunhando violão, flauta e bandolim. À
porta da igreja se ouvia a valsa “Belinha”.
O ano de sue nascimento tinha como maior “hit” um choro de
Ernesto Nazareth, “Apanhei-te cavaquinho”, interpretado pelo grupo Passos do
Choro. Os dois maiores cantores daquele ano eram Eduardo das Neves e Baiano.
A casa da família Sardinha transpirava notas musicais. “Seu”
Antônio Augusto tocava bem o violão e a guitarra portuguesa. O irmão Inocêncio
tocava o banjo e um outro irmão, Batista, tinha habilidades com violão, banjo e
guitarra portuguesa. Garoto já mostrava que queria se juntar aos irmãos
músicos: “Aso cinco anos peguei atrás do lavatório o violão de cinco réis do
meu irão Batista, do qual ele tinha um ciúme louco. Sozinho, fiz a primeira e a
segunda posição de dó maior.” Um vizinho da família, o português Seu Bernardo,
já havia percebido o talento musical do menino, quando aconselhou o filho músico
de Seu Antônio, Batista: “Deixe o menino pegar nos instrumentos, vais ver que
ele vai te passar a perna. Mais tarde me contarás...”
A casa dos Sardinha ficava na avenida Tamanduateí, na Vila
Economisadora – bairro operário, malvisto, seus irmão estavam sempre metidos em
confusão; mas era terra de ótimos músicos. Devido à pouca idade, as broncas
tomadas por Garoto sempre vinham com o vocativo “moleque”, em referência a ele.
Daí surgiu seu primeiro apelido: Moleque do Banjo.
Estando claro o talento musical do “moleque”, o irmão
Batista então o presenteou com um violino usado e sem arco. O moleque então
improvisou um arco e com esse arremedo de violino tocou a valsa Piquenique
trágico, e uma Ave Maria, talvez a obra de Schubert. A apresentação rendeu-lhe
um violino novinho. Os irmãos Inocêncio e Batista logo buscaram uma maneira de
introduzir aquele pequeno prodígio nos estudos de música. Mas um fato quase lhe
impediria de seguir seu talento natural.
Quando tinha apenas 10 anos de idade, Garoto ouviu se sua mãe que seu pai, funcionário da
Guarda Civil, ficara paralítico. Como seus irmãos mais velhos já moravam com
suas próprias famílias, caberia ao Aníbal sustentar a família. Com muita
tristeza e mágoa Garoto teve de se afastar dos estudos de música.
Arrumou então um emprego como auxiliar de escritório, cuja
tarefa era a entrega de correspondências na agência dos Correios. Logo surgiu
um “obstáculo” no caminho do “moleque do banjo”: havia uma escola de música, de
um pianista chamado Gaó. Quando o professor estava a dedilhar choros ao piano,
o jovem Aníbal ficava hipnotizado, alheio às suas tarefas. Rapidamente foi
flagrado por uma colega, viajando alto nas notas musicais, foi então dedurado a
seu chefe, que o demitiu prontamente.
Seu curso primário também foi marcado por algumas
indisciplinas. Seu professor, certo dia, falava de um “homem extraordinariamente
dotado”, enviado por Deus à Terra: Jesus de Nazaré. Mas logo percebeu que
Garoto não parecia atento a uma só palavra que ele dizia. Então chamou a
atenção do rapaz e perguntou: Sr. Aníbal Augusto Sardinha, qual foi o homem
extraordinariamente dotado que Deus enviou à terra? O rapazinho então retrucou:
“Foi Ernesto Nazareth!”
Pouco tempo depois, os ventos pareciam mudar na vida de
Garoto. Arranjou um emprego numa casa de música. Passava seus dias a tocar
violões, cavaquinhos, bandolins, guitarras portuguesas etc. Dedicava-se com tal
alegria à sua tarefa que fez as vendas da loja aumentarem, devido aos fregueses
fascinados com aquele rapaz que tocava os instrumentos tão bem...
Garoto tomou parte numa formação da Jazz Band Universa,
comandada por seu irmão Batista, tocando banjo. Depois, integrou o Regional
Irmão Armaní, também ao banjo. Depois foi recrutado para o Grupo Regional do
Pory – sempre ao banjo.
Depois, Garoto foi tocar cavaquinho no Conjunto dos Sócios. Amealhavam
uns seis mil réis quando se apresentavam em cinemas, mas também se apresentavam
em bailes e festas em São Paulo.
Ainda como músico amador, Aníbal participou de um evento de peso
em São Paulo: o Salão de Automóveis da General Motors, em 1928, no Cine Odeon.
Os modelos em exposição ficavam em dois salões. No salão Verde, encontrava-se o
modelo La Salle, visto pela primeira vez no Brasil. No salão Vermelho contava
com uma reprodução do Pórtico grego do Templo de Minerva. Entre ambos, alegrava
o público a Orquestra Típica, composta por 50 músicos finamente trajados.
Tocavam músicas brasileiras, portuguesas e espanholas sob a competentíssima
direção musical de Canhoto, considerado então o suprassumo do cenário musical
paulistano.
Canhoto tinha uma saúde frágil, por conta de problemas
cardíacos que a um infarto com apenas 39 anos de idade. Canhoto recrutou para
tocar no Salão os melhores músicos que conhecia, mas também convidou um menino de
meros 13 anos: o Moleque do Banjo.
Foram 4 dias de intensos ensaios para a estreia, exclusiva
para jornalistas e convidados de honra, que seria marcada pela execução de uma
obra composta especialmente para aquele evento: a Marcha General Motors. Foi
nesse evento que Garoto viu surgir diante de si um ídolo: Zezinho, o Zezinho do
Banjo. Mais tarde, Zezinho passou a ser conhecido internacionalmente como Joe
Carioca, pois dera voz ao personagem da Disney Zé Carioca.
Em 1927, Canhoto organizou mais um acontecimento musical e
peso: as Noites Brasileiras. Foram quatro apresentações, transmitidas ao vivo
pelo rádio; o primeiro ocorreu no Teatro Municipal, enquanto os três outros se
deram no Teatro Boavista.
Em decorrência do evento supra, pulularam os conjuntos
sertanejos. Um deles, o grupo Chorões Sertanejos, fundado em 1928 e seu
primeiro disco registrado foi lançado pelo selo Parlophone, em 1930. O ano de
1930 também testemunharia o lançamento do primeiro disco de Garoto, que trazia
as faixas Bichinho de Queixo, um maxixe; e Driblando, um maxixo-choro.
Por essa época, Garoto já tocava no Chorões Sertanejos, mas ainda
era chamado de Moleque e tocava cavaquinho. Ele ainda integrava o Grupo Verde e
Amarelo, que se apresentava em programas radiofônicos.
O final da década de 1920 foi marcado pelo movimento de profissionalização
do rádio brasileiro. As emissoras, organizadas como sociedades ou como clubes,
tinham as mensalidades dos associados como sua principal fonte de renda.
Contudo, esses pagamentos eram irregulares, inferires aos que seria necessário
e essas emissoras viviam em penúrias. No Rio de Janeiro, destacavam-se a Rádio
Sociedade Rio de Janeiro e a Rádio Clube do Brasil. São Paulo ouvia a Rádio
Sociedade Record e a Rádio Educadora Paulista.
E foi na Rádio Sociedade Record que Garoto estreou seu
programa, em 16 de fevereiro de 1930, um dia de domingo, no horário das 13h às
14h30. Para um melhor acompanhamento pela assistência, a programação das
emissoras de rádio era publicada nos jornais. Garoto se apresentava ou como
Garoto, ora como Garoto do Banjo, ora ainda como Moleque do Banjo; tocava
banjo, bandolim, cavaquinho. Garoto ainda poderia se apresentar com o conjunto
regional da emissora ou como músico solista. Sua visibilidade tomava corpo,
mas seu voo estava apenas no começo.
O ano de 1930 foi marcado por outro evento, este de proporções
históricas e de importância indelével: o golpe de 1930, que pôs um ponto final
na República Velha, dominada por fazendeiros, cujos paulistas dominavam a
política nacional. Em seu lugar, foi empossado o gaúcho Getúlio Vargas, então
pleno de poderes quase ditatoriais, entre eles a capacidade de nomear interventores para governar os
estados federais.
A oposição dos paulistas ao governo nacional virou resistência
e a valorização da orgulhosa cultura paulista, um dos símbolos de dessa
resistência. Um evento, denominado Grande Concurso de Música Brasileira,
promovido pelo jornal A Gazeta, com apoio da Rádio Educadora, foi um desses
símbolos de resistência. Tratava-se de um concurso entre categorias de
instrumentos musicais, canto e composição, cujos vencedores seriam escolhidos
por voto popular.
Os resultados, em geral surpreendentes e decepcionantes para
vários dos músicos concorrentes fez despertar o espírito de competitividade,
que parecia dormente dentre deles. Criou-se uma guerra entre emissoras de rádio,
surgiam disputas entre músicos, que incentivavam o surgimento de torcidas, que
chegavam a se enfrentar com violência. A rinha entre Garoto e Zezinho tomou
ares de guerra não declarada. Garoto sempre agradeceria a essa disputa pelo
talento que desenvolvera como músico.
Em 1931, Garoto ainda se apresentaria no Festival de Música
Brasileira no Clube da Liberdade, com enorme sucesso. Também dedilhou seu banjo
no “50º Aniversário do Liceu Nacional Rio Branco.
Garoto então foi convidado para integrar o Grupo dos
Calungas, que vinha gravando discos pela gravadora Victor, desde 1930. E foi em
1931 que aquele conjunto lançou pela Colúmbia um disco que trazia O drama de
Angélica, uma toada, de um lado; e Zombando da Morte, um samba composto por
Garoto com Barreto, líder do grupo, e que fez enorme sucesso na Record. O
conjunto lançaria mais um disco naquele ano, também com sucesso.
Barreto era carioca, frequentador do famoso Café Lamas.
Mudou-se para Sampa em 1927, fazendo por lá carreira bem sucedida como músico e onde realizou algumas parcerias com Garoto.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Gente Humilde: Vida e Música de Garoto”
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