Finda a exótica Monarquia brasileira no final do século XIX,
dava-se início à República tupiniquim, também recheada de idiossincrasias
ilógica aos não iniciados em matéria de Brasil. Esta República já não mais
contava com os braços baratos dos escravos. Em vez disso, o Brasil recebia
contingentes expressivos de europeus empobrecidos pelo movimento do capital em
direção à indústria, deixando a vida no campo miserável – sem falar na industrialização
da agricultura, que dispensou milhões de pessoas campesinos japoneses,
italianos, ingleses, alemães, libaneses, eslavos etc.
Esse fenômeno deu um ar multicultural ao Brasil – que se
refletiria no enriquecimento cultural do país. A urbanização galopava, dando
vazão ao surgimento de ônibus, carros; a fotografia se popularizava e surgia o
revolucionário cinematographo, na grafia da época. O cinema ganhou rapidamente
um grande número de expectadores apaixonados, que vibrava com roteiros a cada
dia mais elaborados.
A indústria fonográfica já engatinhava com a abertura inauguração
da Casa Edison, primeiro estúdio de gravação brasileiro, de propriedade do
imigrante tcheco Frederico Figner, em 1900, que trouxe o primeiro fonógrafo (um
cilindro giratório que gravava e reproduzia sons, inventado por Thomas Edison).
Em 1913, Figner abriu a primeira gravadora brasileira, a Odeon – esta era
vinculada a uma companhia holandesa, a Transoceanic, que a auxiliou na compra
dos equipamentos na Alemanha; posteriormente, a Odeon estaria vinculada à inglesa
EMI; recentemente foram absorvidas pela Universal Music.
As primeiras gravações eram interpretadas pelo cantor
Baiano, nascido em Santo Amaro da Purificação (terra de Caetano e Bethânia).
Ele registrou as canções “Isto é bom”, de Xisto Bahia, em 1902, um lundu bem
famoso; Baiano também emprestou sua voz à primeira gravação de um samba: “Pelo
telefone”, de Donga e Mauro de Almeida.
Mas demorou até que “Pelo telefone” fosse reconhecido como
samba, pois a reputação do estilo ainda era ruim, em razão de sua proximidade
musical com rituais africanos, preconceituosamente tratados como bruxarias. As próprias
rodas de samba eram proibidas e reprimidas pela polícia.
Esse estado de coisas só mudou quando uma cozinheira baiana
chamada Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, quem teria trazido as rodas de
samba para o Rio de Janeiro no início do século XX, cidade onde já era
moradora, levou sua rodas, repletas de bons músicos e compositores, para dentro
de sua casa – ou melhor, para seu quintal. Tia Ciata era mãe de santo e teria
curado o Presidente da República Wenceslau Brás de uma ferida na perna, o que
nenhum médico tinha conseguido até então. Em retribuição, estava imune às
perseguições da polícia. O samba ganhou ainda outro impulso quando da criação
das escolas de samba.
Portanto esse era o cenário cultural nacional: os pobres
encontravam entretenimento nos sambas, na música caipira, no baião, no lundu e
outros ritmos, sem reconhecimento oficial; por sua vez, a elite ilustrada era
fortemente influenciada pela França, que vivia uma revolução cultural. A
literatura já sofria influência da recém-fundada Academia Brasileira de Letras,
iniciativa de escritores como Machado de Assis, Rui Barbosa, Olavo Bilac e
Joaquim Nabuco e seguindo o modelo francês. Aliás, Olavo Bilac era o suprassumo
parnasiano da poesia em nossa terra.
O reconhecimento de que existia uma cultura brasileira e de
que esta merecia o devido respeito somente veio a reboque da Semana de Arte
Moderna de São Paulo, em 1922. O mote do evento era a provocação, a quebra de
protocolo. O maestro Heitor Villa Lobos, por exemplo, fundia música caipira,
cultura indígena e música erudita. Fazia isso acompanhado de sua orquestra,
calçando sapatos num pé e chinelo no outro – sem falar num músico “tocando” uma
folha de zinco. As vaias vieram em uníssono, com direito a gritos de “Xô! Fora
capenga!”. O show teve de ser interrompido imediatamente.
Apesar do espírito rebelde, o movimento todo contava com
artistas (Oswald e Mário de Andrade, Villa Lobos, Anita Malfati, Tarsila do
Amaral, Di Cavalcanti, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida etc.) saídos
das classes mais abastadas e fora financiado pela aristocracia paulistana.
Assim se deu o reconhecimento da arte produzida pelas camadas populares e que
deram uma base para que ali se erguesse uma cultura genuinamente brasileira.
Dentre os participantes, dois deles, Menotti del Picchia e
Plínio Salgado viraram à direita na quadra da política e organizaram o detestável
movimento fascista brasileiro denominado Integralismo – mesmo aqui havia algo
de genuinamente brasileiro, pois o grito de guerra dos integralistas era “Anauê!”,
que significa “você é meu irmão” em tupi.
Ainda no campo musical, Mário de Andrade chegou a percorrer
os rincões do Brasil, registrando as mais diversas formas de expressão musical
existentes, atividade que teve de encerrar por conta da ditadura do Estado Novo.
Oswald de Andrade fiou eternizado pela sua “antropofagia
cultural”, isto é, a capacidade de dada cultura absorver e se enriquecer por meio
de influências externas, estrangeiras. Essa visão era inspirada pelo forte
movimento migratório que marcou São Paulo. A antropofagia originalmente era um
ritual indígena, relatado por portugueses, e que visava à incorporação da
valentia e da força do oponente ao se alimentarem da carne deste.
Já por volta da década de 1930, surgiu a preocupação com a
manutenção e inventário do patrimônio artístico nacional. Foi assim que, em
1936, surgiu o SPHAN, Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, já
no período do Estado Novo. Atualmente o órgão se chama IPHAN. Sob sua guarda se
encontram sítios, objetos históricos, casarões, igrejas, quadros e diversos outros
bens. Mário de Andrade defendia ainda a preservação do patrimônio imaterial,
mas isso já exorbitava a vontade política e as restrições orçamentárias de
então. Décadas após o patrimônio imaterial foi lembrado e os museus passaram para
o guarda-chuva do IBRAM.
Alguns artistas modernistas ocuparam cargos públicos, como
Mário e Sérgio Milliet. O Ministro da Educação e Saúde de Vargas, Gustavo
Capanema, contratou como chefe de gabinete um jovem poeta mineiro chamado Carlos
Drummond de Andrade, expoente da assim denominada “geração de 45”.
O Ministério de Capanema teve como símbolo um edifício,
construído em 1939 numa área central do Rio de Janeiro, Distrito Federal da
época. Participaram da sua concepção nomes que se tornariam icônicos, como
Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Afonso Eduardo Reidy. A inspiração para o projeto
e consequente consultoria foi arquiteto modernista franco-belga Le Corbusier –
foi tombado pelo IPHAN.
Voltando ao povão e sua s músicas, em 1910 tinha início a
carreira de um desbravador da música caipira, Cornélio Pires, bom de música e
de “causos”. Foi dele a gravação primeira de uma música caipira: Jorginho do
Sertão – posteriormente regravadas em 1929 pelas duplas Mando e Sorocabinha e Mariano
e Caçula – pai e tio de Caçulinha. Mas o formato em duplas só se tornaria
convencional a partir da dupla Jararaca e Ratinho.
O samba passava por processo semelhante. Com sua
popularização, surgiram artistas como Pixinguinha (inicialmente acompanhado dos
Oito Batutas), levando o choro/chorinho a novos voos; Ernesto Nazareth, que
fundiu o lundu do povo com a música erudita; o Bando dos Tangarás, que revelou
músicos como Almirante, Braguinha/João de Barro e o eterno Noel Rosa.
Isso tudo ajudou a pavimentar o caminho para Era de Ouro do
Rádio. O início das transmissões desse meio de comunicação revolucionário no
Brasil é um tanto nebuloso. Alguns atribuem o pioneirismo à Rádio Clube de
Pernambuco, em 1919, mas oficialmente consta o nome da Rádio Sociedade do Rio
de Janeiro, atualmente Rádio MEC, em 1923.
Mas a chamada Era do Rádio teve início com a aquisição da
Rádio Philips pelo Governo Federal, em 1940, posteriormente mudando o nome para
Rádio Nacional. As transmissões musicais, que tinham ênfase nas marchinhas e
nas serestas, revelaram talentos como Orlando Silva, Emilinha Borba, Marlene,
Sílvio Caldas, Carlos Galhardo, Ângela Maria e Nélson Gonçalves.
Derivada das antigas modinhas e catiras do século XVII, a
música caipira atingia o auge na década de 1950, quando duplas como Alvarenga e
Ranchinho, Tonico e Tinoco e Inezita Barroso mantiveram este estilo musical em
evidência em todo o Brasil. Depois disso, a influência tex-mex se fez sentir de
maneira marcante.
No âmbito da chamada Política da Boa Vizinhança, levada a
cabo por Franklin Roosevelt, surgia para o mundo a cantora já famosa no Brasil
Carmem Miranda, levada a uma carreira nos EUA após vencer um concurso
radiofônico. Sua carreira se iniciou no Rio de Janeiro, embora fosse portuguesa
de nascimento, em 1909. Foi ela quem popularizou marchinhas carnavalescas como
Tahy (ou Taí, atualmente), tornou famosos compositores como Dorival Caymmi e
celebrizou os músicos do Bando da Lua.
Convidada para trabalhos em Hollywood, tornou-se o primeiro
ídolo brasileiro na recém-surgida indústria de massa. A reboque desse fenômeno,
veio ao Brasil uma missão cultural patrocinada pelo governo dos EUA, que trouxe
Walt Disney e representantes da Coca Cola. Um dos convidados foi Orson Welles,
que pretendia rodar o documentário It`s All True, mas que de tão fiel ao país
não recebeu apoio de Hollywood para ser finalizado.
Após a entrada em massa das superproduções do cinema
norte-americano no Brasil, multiplicaram-se diversos cineclubes, cuja função
era promover o raciocínio crítico na sétima arte. A partir da visão do que
deveria ser o cinema nacional, tais cineclubes deram origem a um movimento
conhecido como Cinema Novo, já por volta de 1957.
A década de 1950
viria o fim da Era de Ouro do Rádio, marcada por tragédias, como o acidente
automobilístico que poria fim à vida de um dos maiores nomes daquele período,
Francisco Alves, em 1952. Em 1955, viria a óbito Carmem Miranda, vítima dos
abusos com remédios. Era o fim do predomínio das marchinhas e das serestas na
música brasileira.
Mas essa mesma década viria o ressurgimento do espírito de
redescoberta da identidade nacional. O principal fator foi a campanha O
Petróleo é Nosso, que desaguaria na criação da Petrobras, em 1953.
E a entrada na modernidade se daria de maneira televisada. O
nome por trás da primeira transmissão de televisão no Brasil era o do
proprietário dos Diários Associados, Assis Chateubriand Bandeira de Melo. Não
tendo sucesso no seu empreendimento carioca, Assis optou por São Paulo onde, em
18 de setembro de 1950, inaugurou-se a TV Tupi paulista. Em 1958 teve entrada o
videotape, que eliminou os erros recorrentes em transmissões ao vivo.
Para completar o quadro ufanista, em 1958 o Brasil
conquistava a primeira Copa do Mundo; o desenvolvimento do período Juscelino
Kubitschek era embalado pelas primeiras fábricas de automóveis, pela construção
de Brasília e por um clima de otimismo que prometia afugentar o tal “complexo de
vira-lata”, descrito por Nelson Rodrigues após o desastre da Copa de 1950.
Foi então que veio a lume o movimento musical que sacudiria
o Brasil: a Bossa Nova. O fenômeno que modernizaria inquestionavelmente a
música brasileira e superaria os boleros que tomavam conta do Brasil começou
quando Vinícius de Moraes procurava um músico para fazer a trilha musical de
sua peça Orfeu da Conceição. O escolhido foi o músico Vadico, do Bando da Lua.
Contudo, ele era à altura diretor musical da TV Rio e teve que declinar do
convite. Vinícius foi então apresentado a um jovem pianista, chamado Antônio
Carlos Jobim, que topou a proposta. Jobim compôs emtão “Se Todos Fossem Iguais
a Você”, em 1956. O espírito bossanovista já estava presente nessa obra e em
várias outras, mas costuma-se marcar seu nascimento oficial em 1958, quando a
cantora Elizeth Cardoso gravou “Chega de Saudade”, música composta por Tom e
Vinícius, que trazia ao violão o baiano João Gilberto, que se tornaria
nacionalmente conhecido já no ano seguinte, entoando seu canto sussurrante e
dedilhado perfeito.
O ar ameno e romântico da música jovem trouxe muitos outros
nomes como Nara Leão (irmã de Danuza Leão), e Sylvia Telles, Roberto Menescal,
Carlinhos Lyra, Luiz Carlos Vinhas, Zimbo Trio e muitos outros. Saído dos
quartinhos onde era ensaiada, tomou bares e boates, denominadamente o Beco das Garrafas, que tinha esse nome pelo
costume dos moradores do local jogarem garrafas sobre os boêmios que
incomodavam seus sonos.
Já o nome se deve à professora do Colégio Israelita do Rio,
que sediou um evento de samba sessions, quem escreveu na lousa a definição dos
músicos convidados: os bossa-nova.
O estilo tomou o mundo e, em 1962, o Carnegie Hall recebeu o
festival Bossa Nova, que aumentou a popularidade do estilo nos EUA.
O maior clássico da bossa nova surgiu em 1963, quando Tom e
Vinícius se inspiraram numa professora que cruzou por eles na praia: Garota de
Ipanema. Versões em outras línguas não demoraram a aparecer. Essa obra-prima
também marca o declínio do estilo, já em 1964.
O Golpe militar deu início a um período de mentalidade mais crítica, o que foi
amplificado pelo CPC da UNE. E novos estilos musicais se tornariam mais
relevantes nas décadas seguintes.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Música Brasileira e Cultura Popular em Crise”
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