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terça-feira, 31 de julho de 2018

O SOUTH AMERICAN WAY DE GAROTO



Desde meados da década de 1930, quando das excursões de músicos brasileiros à Argentina, Carmen Miranda era a embaixatriz informal do samba brasileiro no exterior. Após a implantação da “política da boa vizinhança”, iniciativa de Roosevelt de aproximação com os países das Américas, o papel de Carmen junto à cultura brasileira atingiria novas alturas.

Regressando com o seu Bando da Lua de algumas apresentações no interior de São Paulo, Carmen se preparava para sua estreia no Cassino da Urca, no dia 3 de fevereiro de 1939. Por si só, esse evento já era de suma importância para sua carreira, mas a presença do empresário norte-americano Lee Schubert fê-lo fundamental para Carmen.

Schubert encantou-se, convidou Carmen para um jantar no transatlântico Normandie e, lá, propôs a Carmen apresentações nos EUA. Mas havia uma condição intransponível para Camen ela deveria ir sozinha, sem o Bando da Lua. A cantora não aceitou tal condição, e somente aceitou a proposta quando o Bando pôde ir junto. E assim transcorreu a conversa: o governo brasileiro pagaria as passagens dos músicos e de Carmen, para que se apresentassem no pavilhão brasileiro na Feira Mundial de NY, que se iniciaria em 30 de abril daquele ano.

Ainda no final de abril o grupo de apresentou em Caxambu, ao lado de Laurindo e Garoto, especialmente para o Presidente da República. Esclareça-se que Garoto não embarcou com os demais para o EUA, ainda.

Importante notar que o Bando da Lua era um conjunto vocal de imenso sucesso, contando já mais de 10 anos de atividade, três discos pela Odeon e 39 pela RCA Victor, além de temporadas em Buenos Aires ao lado de Carmen.

O embarque da trupe se deu no navio Uruguai, evento acompanhado por uma multidão amontoada em frente ao Touring Club do Cais do Porto, tendo sido necessário chamar a polícia para conter os mais exaltados e garantir um embarque seguro.

Carmen Miranda e o Bando da Lua foram escalados para o musical Street os Paris. A estreia se deu na Broadway, onde foram ovacionados quando ela cantou “O que é que a baiana tem?”.

Após cerca de cinco meses de turnê, um dos músicos da trupe, Ivo Astolfi, retornou ao Brasil para se casar. Foi quando Garoto recebeu um telegrama, onde se lia: “Queridíssimo Garoto, espero que você tenha gostado da ideia de vir para cá e aceite-a, pois esta terra é a melhor do mundo, só estando aqui é que acreditará. Estamos ansiosos que você venha, eu e os rapazes. Abraços da Carmen.” Quanto à remuneração, a Garoto foi oferecido o mesmo contrato firmado pelos demais músicos: 50 dólares por semana para atuar no musical, embora Carmen tenha-lhe sugerido a possibilidade de ganhar 200 dólares semanais.

Sua chegada a NY foi assim registrada em seu diário: “Cheguei a Nova Iorque no dia 30 de outubro e fiz uma viagem maravilhosa do Rio até NY.”

Mas a felicidade emanada das linhas acima durou pouco tempo. Garoto chegara a NY com a papelada incompleta e foi, portanto, enviado a Ellis Island, onde ficavam detidos os imigrantes ilegais. Foi graças aos advogados contratados por Lee Schubert que Garoto foi liberado.

Ao conhecer o pavilhão brasileiro, Garoto anotou: “O pavilhão brasileiro em Nova York é um pouco do nosso país. Ali sentimos a nossa grandeza, a nossa casa, enfim. Nele encontramos Romeu Silva com a sua formidável orquestra, que prazer acharmo-nos entre patrícios.” Garoto ainda reencontraria seu amigo e “concorrente” Zezinho. E foi em San Francisco, mais tarde, que Zezinho confessou a Garoto que pretendia fixar-se nos States, fato que realmente ocorreu e lhe proporcionou uma carreira internacional.

Em 1939, a trupe registrou seus primeiros trabalhos em solo gringo, lançados pelo selo Decca. Gravaram o primeiro, com as faixas South American Way e Touradas em Madrid. O segundo trazia “O que é que a baiana tem?” e “Co, Co, Co, Co, Co, Co, Co, Ro”. O terceiro tinha “Mamãe, eu quero” e “Bambu bambu”.

No cinema, atuaram em Down Argentine Way, em 1940. Esta película foi lançada aqui com o título de Serenata Tropica.

Após oito meses de imenso sucesso Broadway, o musical Street of Paris caiu na estrada. Apresentaram-na em Chicago, em Detroit, Pittsburgh, Saint Louis e Filadélfia. Em Washington, apresentaram-se para o presidente Rossevelt, na Casa Branca. Assim deixou registrado Garoto, em seu diário: “O presidente, muito camarada, veio nos abraçar, trocando impressões sobre as coisas brasileiras.”

Os artistas brasileiros ainda se deslocaram até o Canadá, onde Garoto se encantou com uma nevada em Toronto e com as cataratas do Niágara.

Carmen já era tratada pelo seu apelido mais famoso: Pequena Notável. E, de fato, fazia-se notar: foi escolhida a segunda maior celebridade de Nova York, deixando o prefeito Fiorello la Guardia na terceira posição.

Finalmente, após um intenso período de trabalho, Schubert aceitou conceder um período de dois meses de descanso aos músicos, que desembarcaram no Brasil em julho de 1940.
Carmen era a grande estrela brasileira: foi ovacionada em desfile em carro aberto. Garoto, do alto dos seus meros 25 anos de idade, era o grande nome da música brasileira: atraiu artistas do porte de Duke Ellington e Art Tatum para suas apresentações e foi apelidado pelo organista Jesse Crawford de “O Homem dos Dedos de Ouro”.  

Em uma entrevista que concedeu à revista carioca Cine-Rádio-Jornal, Garoto assim respondeu sobre se trazia novidades de sua estadia bem sucedida na terra do Tio Sam: “Algumas... Em Chicago, por exemplo, travei relações com um músico norte-americano possuidor de um órgão elétrico. Ofereci-lhe então a Aquarela do Brasil e todas as noites ouvíamos a linda música de Ary Barroso tocada num instrumento raríssimo no Brasil.”

Quanto ao que assistiu, Garoto declarou ter nutrido admiração por Bing Crosby e Ella Fitzgerald, e em especial pelas grandes orquestras dos EUA. Perguntado sobre se trazia melodias novas, respondeu: “Trouxe músicas havaianas e melodias do sul da Califórnia: Quando os pássaros voltam a Capistrano, Castelo dos sonhos, Irene, Tuxedo Junction e Em cima da Lua, que é um dos maiores sucessos nos EUA, são algumas delas.”

Apenas cinco dias após a chegada ao Brasil, Carmen e o Bando se apresentaram no Cassino da Urca, em um show beneficente. A plateia era ilustre, mas a apresentação foi um fiasco. Nas palavras de Aloísio Oliveira, líder do Bando: “Aquele mesmo público que tanto aplaudiu Carmen há um ano, recebeu-a com a maior frieza. Cantamos “O que é que a baiana tem?” e o gelo foi ainda maior. Carmen retirou-se do palco aos prantos, revoltada!”.

Ela respondeu cantando “Disso é que eu gosto” e “Disseram que voltei americanizada” . Depois, apresentaram-se na rádio Mayrink Veiga. Foi então que eles, sem Garoto, iniciaram uma temporada no Cassino da Urca – e ela ainda emplacou outro disco, pela Odeon.

Carmen e o Bando voltaram para o EUA em outubro de 1940. Mas o embarque agora foi sem multidões e sem pranto. E Garoto não os acompanhou dessa feita.

Essa, aliás, foi a grande incógnita: por que Garoto não embarcou junto? Afinal, ele já havia declarado sua intenção de excursionar pelos EUA de novo: “É claro! Em setembro devo seguir novamente e ignoro quando voltarei.”

As razões apontadas são as mais variadas, mas um fator pode ter sido preponderante: sua esposa era negra, e ele já havia demonstrado preocupação quanto à grave questão racial que testemunhara em solo yankee. Talvez isso tenha pesado mais do que as excelentes condições que por lá se ofereciam aos artistas.

Embora tenha declinado da oportunidade, Garoto não demonstrava rancores: “Não retornei aos Estados Unidos e indiquei para o meu lugar o Nestor Amaral, cuja situação financeira era precária e que tinha passagens muito engraçadas como a de fugir do hotel com as malas.”

Garoto então retornou ao Rio, montou um conjunto que reunia grandes nomes da música, como Ciro Monteiro, Aracy de Almeida, Orlando Silva e Francisco Alves. Realizou ainda o filme Céu Azul, película carnavalesca com Francisco Alves, Oscarito, Arnaldo Amaral, Silvio Caldas, Grande Otelo e muitos outros.

Garoto também fez apresentações do Golden Room do Cassino Copacabana, em 1941.
Tocando seu violão e acompanhado de Poly, ao cavaquinho, tocaram na gravação de dois discos de Luiz Gonzaga. Com seu conjunto regional, gravou ao lado de Moreira da Silva.

Na rádio Mayrink, em 16 de novembro de 1941, Garoto estreou ao lado dos Quatro Diabos, conjunto que existia desde 1935 e que chegou a tocar ao lado de Carmen Miranda. Após a entrada de outros dois integrantes, o conjunto passou a se chamar Garoto e dos Donos do Ritmo, quando se apresentaram nos cassinos da Urca e Icaraí, no tênis Club de Petrópolis e no Canto do Rio F.C.

Em setembro de 1942, após a morte de César Ladeira, diretor artístico da Mayrink e grande nome do cenário musical do rádio, Garoto se apresentou junto com Pixinguinha, Edu da Gaita, Nelson Gonçalves, Alvarenga e Ranchinho e muitos outros artistas consagrados.

                                                                                                                            
Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Gente Humilde: Vida e Música de Garoto”

VIOLÕES, VIOLAS E VIOLINOS – GAROTO EM CENA



O estabelecimento das emissoras profissionais de rádio no Brasil sofreu diversos percalços. Conforme as Rádios Educadora e Record, paulistas, tomavam corpo, as insipientes concorrentes cariocas se viam impelidas a fazer o mesmo. Uma delas, a Rádio Mayrink Veiga, trouxe de Sampa o famosíssimo violonista Zezinho de São Paulo e agregou a seu corpo de artistas, a cada dia mais estrelado.

A Rádio Ipanema, de 1935, apresentou uma programação de tirar o fogo: Laurindo Almeida e Nestor Amaral, ainda na semana de estreia.

Garoto parecia levar a competição entre as emissoras a sério e, ainda em 1931, na Rádio Educadora, da qual era contratado, apresentou um instrumento musical ainda inédito no Brasil: o violão tenor. Assemelhava-se a um violão normal, mas tinha o braço um pouco mais curto e só tinha 4 cordas, afinadas em dó, si, ré e lá. Este violão era usado nos EUA desde cerca de 1920 e se chamava “tenor guitar”.

Também na década de 1930, surgia outro instrumento, introduzido no Brasil por Zezinho e Garoto: a guitarra havaiana. Zezinho ainda se apresentou algumas vezes tocando o exótico “ukelele”.

A partir de julho de 1932, São Paulo se afundou em meio a um terrível conflito, uma guerra civil que opunha o estado contra o Brasil, chamada Revolução Constitucionalista. Homens, mulheres e crianças eram recrutados por meio de slogans, como: “Vencer ou morrer!”, “Tudo por São Paulo!”. Garoto tomou parte no entrevero participando de um grupo que tocava para os feridos, nos hospitais, tentando reconfortá-los daquele sofrimento.

Garoto já era um músico respeitado e muito bem remunerado: recebia da Rádio Educadora a quantia de 450 mil-réis por mês, muito se comparado com o teto de 250 mil-réis pagos pelas outras emissoras, ou mesmo com os 300 mil-réis pagos pela mesma Educadora a seus outros músicos famosos.

Em 4 de fevereiro de 1934, Garoto se apresentava em outra ocasião muito especial: a Educadora promoveu uma homenagem ao singular Ernesto Nazareth, poucos dias após o falecimento deste foi um dos mais incríveis músicos brasileiros.

Em 1935, segundo alguns, porém um fato não confirmado (e improvável), Garoto e seu parceiro Aimoré, ambos em turnê pelos estados do sul do Brasil, quando em Porto Alegre, teriam se encontrado com a estrela maior da Argentina, Carlos Gardel. Contudo Gardel, nascido Charles Romuald Gardes, em Toulouse, França, morreu em acidente aéreo no mesmo ano de 1935.

Em 1936, uma missão de artistas brasileiros rumou para a Argentina e Europa (notadamente Holanda e Alemanha). Eram anos de nazifascismo desavergonhado, quando Vargas se aproximou perigosamente de Mussolini e Hitler. O programa de rádio Programa Nacional (o atual A Voz do Brasil) era transmitido para os países Europeus governados por aquela ideologia repugnante.

Em Abril, Nestor Amaral rumou para Buenos Aires com seu conjunto. Naqueles mesmos dias, os jornais noticiavam a ida do Conjunto Típico, sob a direção de Zezinho, à Europa. A bordo do navio Cuiabá, saindo do Rio de Janeiro e levando muitas marchas, sambas, choros e emboladas na bagagem, após breve parada no Recife, chegaram ao destino final, Berlim, na Alemanha. Toda essa excursão foi patrocinada pelo governo federal.

Por três meses, apresentaram-se em Londres, Lisboa e Paris. Contudo, em Paris, um imprevisto impossibilitou-os de desembarcar seus instrumentos. Sem poder tocar, aproveitaram o tempo para assistir a apresentações da dupla que mais repercutia no velho continente: o duo Django Reinhart (mago do violão, tocando com apenas dois dedos e o dedão de apoio) e Stephan Grapelli, mestre do violino.

Embora alguns contestem, Garoto certamente não fez parte dessa excursão, embora tenha demonstrado sofrer certa influência do violão de Django.  

Como novidade musical, Zezinho trouxe da Alemanha um violão elétrico, inédito no Brasil.  
De volta ao Brasil, Zezinho e Laurindo tomaram parte numa caravana que contava com Carmem Miranda e Aurora Miranda, Francisco Alves e outros.

Ainda em 1936, um grupo de artistas cariocas muito respeitados, como Sílvio Caldas, Nonô, Luís Barbosa e Aracy de Almeida, chegou a São Paulo para uma série de apresentações.Garoto foi chamado para tocar com eles. Ainda o ensaio, um evento ajudou Garoto a se impor em meio àquelas estrelas toas. Silvio Caldas observou que Garoto tinha em mãos cavaquinho, bandolim e guitarra havaiana. O cantor então ficou instigado: “Será que ele toca isso tudo mesmo?”. Outro integrante, Armandinho, incentivou Garoto a demonstrar suas habilidades com cada um deles, um após o outro. A cada tentativa de Garoto, Silvio dizia jocosamente: “Não toque, pode ficar mal para você.” Desejando pôr um ponto final nas provocações, Garoto pegou seu violão tenor e dirimiu todas as dúvidas quanto à sua capacidade musical.

Os cariocas tiveram de se dobrar ao jovem paulista e convidaram tanto Garoto quanto Aimoré para uma apresentação em Santos. Talvez tenham sido os próprios cariocas, maravilhados, quem indicou a dupla para se apresentar na Rádio Mayrink Veiga, poucos meses após o aquele evento.

Ser contratado pela Rádio Mayrink significava se juntar a um cast que contava com Noel Rosa, João Petra de Barros, Ciro Monteiro, Dircinha Batista, Patrício Teixeira, Carmen Miranda, Aurora Miranda, Sílvio Caldas e Francisco Alves.

Quando Garoto e Aimoré retornaram à terra da garoa, Laurindo passou a se apresentar com o músico Gastão Bueno tocando a guitarra havaiana. Segundo Pixinguinha, Bueno foi quem introduziu o banjo no Brasil.

E Sampa, Garoto foi contratado pela Rádio Cruzeiro do Sul, na qual tomou parte na Orquestra Colúmbia, do maestro Gaó. Em 1937, nessa rádio, Garoto e Aimoré executaram uma apresentação inédita: os dois tocaram um violão a quatro mãos – Garoto executava as cordas mais agudas, enquanto Aimoré tocava as mais graves.

Em 1938, dentre muitas realizações, gravou sucessos do samba-choro, que compôs com Moreira da Silva, considerado o mestre desse estilo. No total, puseram na praça 5 discos: Mineiro Sabido e Todo Mundo está Esperando, no primeiro disco; Fraco Abusado e Nega Zura, no segundo; e assim por diante.

Em 1942, Garoto e Moreira ainda lançaram mais 4 discos, perfazendo um total de 9 pela dupla. O Rei do Breque influenciou Garoto a compor Vamos acabar com o baile, cheio da ginga e da malemolência aprendidas com o grande sambista.

Em 1938, Garoto e sua esposa desembarcam no Rio de Janeiro, onde novamente se integra ao cast da Rádio Mayrink. Comprou uma casa no bairro de Brás de Pina, subúrbio carioca, estrategicamente próxima da Rádio. Sua estreia se deu com o conjunto Cordas Quentes, acompanhado de Laurindo Almeida no violão de seis cordas, Faria no contrabaixo e Mesquita no violino.

Garoto também deu forma ao grupo Duo do Ritmo Sincopado, no qual tocava o violão tenor dinâmico fabricado pela Del Vecchio. Embora contassem com Zezinho, este embarcou para os EUA logo após, para tocar na orquestra de Romeu Silva, que se apresentava na Feira de NY.

Garoto ainda liderou seu grupo de músicos em gravação com Carmen Miranda, em dois sambas, compostos por Laurindo: “Mulato Antimetropolitano” e “Você Nasceu para ser Grã-Fina”.

No período seguinte, Garoto gravo choros com Jararaca; dois pout-purris com Ary Barroso; duas canções com Dorival Caymmi, e muito mais.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Gente Humilde: Vida e Música de Garoto”

segunda-feira, 30 de julho de 2018

GAROTO: UM GÊNIO MUSICAL DENTRE A GENTE HUMILDE



Músico seminal, prodígio, revolucionário. São muitos os adjetivos que bem se adequam ao Garoto. Primeiro a se apresentar numa sala de concerto acompanhado por uma orquestra regida pelo maestro Radamés Gnatalli, seu amigo e sincero admirador; ídolo maior de João Gilberto e de Baden Powell, Garoto teve uma carreira profissional prolífica, embora terminada abruptamente quando ele contava apenas 39 anos de idade – iniciara-se profissionalmente com inacreditáveis 11 anos, apenas.

Nascido Aníbal Augusto Sardinha, Garoto viveu a Era de Ouro do Rádio no Brasil – aliás, sua amizade com Radamés se deu nos corredores da Rádio Nacional, evento a partir do qual Garoto foi apresentado às novidades harmônicas que vinham de fora, na bagagem de Radamés.

Garoto desenvolveu habilidade para tocar com proficiência qualquer instrumento de corda que empunhasse: violão requinto, violão tenor, cavaquinho, banjo, bandolim, guitarra portuguesa.

Dentre seus feitos musicais revolucionários, consta a introdução dos acordes dissonantes no violão brasileiro, feito que o fez ser reconhecido como o “pai da bossa nova”. Garoto também integrou o grupo de Carmem Miranda e a acompanhou em seu período nos EUA – oportunidade em que se afeiçoou com as “blue notes” e tomou contato com o jazz e o bebop.

O estudo do violão clássico fez-lhe acrescentar a erudição às suas obras. Em sua obra, ao lado de pequenas peças de concerto, valsas, choros, convivem os clássicos “Gente Humilde” e “Duas Contas”.

Por tudo isso, Garoto figura nos alicerces de linhagem de grandes violonistas como Canhoto, Dilermando Reis, Zé Menezes, Laurindo de Almeida, Sebastião Tapajós, Baden Powell, Rafael Rabello, Paulo Belinatti, Guinga, Yamandu Costa e muitos outros.

Garoto nasceu em São Paulo, no ano de 1915, e em meio às notícias aflitas vindas da Europa, desgraçada pela I Guerra Mundial. Era o filho dos portugueses Antônio Augusto e Adozinha dos Anjos Sardinha. Era irmão de outros seis, mas o único concebido no Brasil. Seu batismo foi marcado pela presença dos melhores chorões de Sampa, empunhando violão, flauta e bandolim. À porta da igreja se ouvia a valsa “Belinha”.

O ano de sue nascimento tinha como maior “hit” um choro de Ernesto Nazareth, “Apanhei-te cavaquinho”, interpretado pelo grupo Passos do Choro. Os dois maiores cantores daquele ano eram Eduardo das Neves e Baiano.

A casa da família Sardinha transpirava notas musicais. “Seu” Antônio Augusto tocava bem o violão e a guitarra portuguesa. O irmão Inocêncio tocava o banjo e um outro irmão, Batista, tinha habilidades com violão, banjo e guitarra portuguesa. Garoto já mostrava que queria se juntar aos irmãos músicos: “Aso cinco anos peguei atrás do lavatório o violão de cinco réis do meu irão Batista, do qual ele tinha um ciúme louco. Sozinho, fiz a primeira e a segunda posição de dó maior.” Um vizinho da família, o português Seu Bernardo, já havia percebido o talento musical do menino, quando aconselhou o filho músico de Seu Antônio, Batista: “Deixe o menino pegar nos instrumentos, vais ver que ele vai te passar a perna. Mais tarde me contarás...”

A casa dos Sardinha ficava na avenida Tamanduateí, na Vila Economisadora – bairro operário, malvisto, seus irmão estavam sempre metidos em confusão; mas era terra de ótimos músicos. Devido à pouca idade, as broncas tomadas por Garoto sempre vinham com o vocativo “moleque”, em referência a ele. Daí surgiu seu primeiro apelido: Moleque do Banjo.

Estando claro o talento musical do “moleque”, o irmão Batista então o presenteou com um violino usado e sem arco. O moleque então improvisou um arco e com esse arremedo de violino tocou a valsa Piquenique trágico, e uma Ave Maria, talvez a obra de Schubert. A apresentação rendeu-lhe um violino novinho. Os irmãos Inocêncio e Batista logo buscaram uma maneira de introduzir aquele pequeno prodígio nos estudos de música. Mas um fato quase lhe impediria de seguir seu talento natural.

Quando tinha apenas 10 anos de idade, Garoto  ouviu se sua mãe que seu pai, funcionário da Guarda Civil, ficara paralítico. Como seus irmãos mais velhos já moravam com suas próprias famílias, caberia ao Aníbal sustentar a família. Com muita tristeza e mágoa Garoto teve de se afastar dos estudos de música.

Arrumou então um emprego como auxiliar de escritório, cuja tarefa era a entrega de correspondências na agência dos Correios. Logo surgiu um “obstáculo” no caminho do “moleque do banjo”: havia uma escola de música, de um pianista chamado Gaó. Quando o professor estava a dedilhar choros ao piano, o jovem Aníbal ficava hipnotizado, alheio às suas tarefas. Rapidamente foi flagrado por uma colega, viajando alto nas notas musicais, foi então dedurado a seu chefe, que o demitiu prontamente.
Seu curso primário também foi marcado por algumas indisciplinas. Seu professor, certo dia, falava de um “homem extraordinariamente dotado”, enviado por Deus à Terra: Jesus de Nazaré. Mas logo percebeu que Garoto não parecia atento a uma só palavra que ele dizia. Então chamou a atenção do rapaz e perguntou: Sr. Aníbal Augusto Sardinha, qual foi o homem extraordinariamente dotado que Deus enviou à terra? O rapazinho então retrucou: “Foi Ernesto Nazareth!”

Pouco tempo depois, os ventos pareciam mudar na vida de Garoto. Arranjou um emprego numa casa de música. Passava seus dias a tocar violões, cavaquinhos, bandolins, guitarras portuguesas etc. Dedicava-se com tal alegria à sua tarefa que fez as vendas da loja aumentarem, devido aos fregueses fascinados com aquele rapaz que tocava os instrumentos tão bem...

Garoto tomou parte numa formação da Jazz Band Universa, comandada por seu irmão Batista, tocando banjo. Depois, integrou o Regional Irmão Armaní, também ao banjo. Depois foi recrutado para o Grupo Regional do Pory – sempre ao banjo.

Depois, Garoto foi tocar cavaquinho no Conjunto dos Sócios. Amealhavam uns seis mil réis quando se apresentavam em cinemas, mas também se apresentavam em bailes e festas em São Paulo.
Ainda como músico amador, Aníbal participou de um evento de peso em São Paulo: o Salão de Automóveis da General Motors, em 1928, no Cine Odeon. Os modelos em exposição ficavam em dois salões. No salão Verde, encontrava-se o modelo La Salle, visto pela primeira vez no Brasil. No salão Vermelho contava com uma reprodução do Pórtico grego do Templo de Minerva. Entre ambos, alegrava o público a Orquestra Típica, composta por 50 músicos finamente trajados. Tocavam músicas brasileiras, portuguesas e espanholas sob a competentíssima direção musical de Canhoto, considerado então o suprassumo do cenário musical paulistano.

Canhoto tinha uma saúde frágil, por conta de problemas cardíacos que a um infarto com apenas 39 anos de idade. Canhoto recrutou para tocar no Salão os melhores músicos que conhecia, mas também convidou um menino de meros 13 anos: o Moleque do Banjo.

Foram 4 dias de intensos ensaios para a estreia, exclusiva para jornalistas e convidados de honra, que seria marcada pela execução de uma obra composta especialmente para aquele evento: a Marcha General Motors. Foi nesse evento que Garoto viu surgir diante de si um ídolo: Zezinho, o Zezinho do Banjo. Mais tarde, Zezinho passou a ser conhecido internacionalmente como Joe Carioca, pois dera voz ao personagem da Disney Zé Carioca.

Em 1927, Canhoto organizou mais um acontecimento musical e peso: as Noites Brasileiras. Foram quatro apresentações, transmitidas ao vivo pelo rádio; o primeiro ocorreu no Teatro Municipal, enquanto os três outros se deram no Teatro Boavista.

Em decorrência do evento supra, pulularam os conjuntos sertanejos. Um deles, o grupo Chorões Sertanejos, fundado em 1928 e seu primeiro disco registrado foi lançado pelo selo Parlophone, em 1930. O ano de 1930 também testemunharia o lançamento do primeiro disco de Garoto, que trazia as faixas Bichinho de Queixo, um maxixe; e Driblando, um maxixo-choro.  

Por essa época, Garoto já tocava no Chorões Sertanejos, mas ainda era chamado de Moleque e tocava cavaquinho. Ele ainda integrava o Grupo Verde e Amarelo, que se apresentava em programas radiofônicos.

O final da década de 1920 foi marcado pelo movimento de profissionalização do rádio brasileiro. As emissoras, organizadas como sociedades ou como clubes, tinham as mensalidades dos associados como sua principal fonte de renda. Contudo, esses pagamentos eram irregulares, inferires aos que seria necessário e essas emissoras viviam em penúrias. No Rio de Janeiro, destacavam-se a Rádio Sociedade Rio de Janeiro e a Rádio Clube do Brasil. São Paulo ouvia a Rádio Sociedade Record e a Rádio Educadora Paulista.

E foi na Rádio Sociedade Record que Garoto estreou seu programa, em 16 de fevereiro de 1930, um dia de domingo, no horário das 13h às 14h30. Para um melhor acompanhamento pela assistência, a programação das emissoras de rádio era publicada nos jornais. Garoto se apresentava ou como Garoto, ora como Garoto do Banjo, ora ainda como Moleque do Banjo; tocava banjo, bandolim, cavaquinho. Garoto ainda poderia se apresentar com o conjunto regional da emissora ou como músico solista. Sua visibilidade tomava corpo, mas  seu voo estava apenas no começo.

O ano de 1930 foi marcado por outro evento, este de proporções históricas e de importância indelével: o golpe de 1930, que pôs um ponto final na República Velha, dominada por fazendeiros, cujos paulistas dominavam a política nacional. Em seu lugar, foi empossado o gaúcho Getúlio Vargas, então pleno de poderes quase ditatoriais, entre eles a capacidade  de nomear interventores para governar os estados federais.

A oposição dos paulistas ao governo nacional virou resistência e a valorização da orgulhosa cultura paulista, um dos símbolos de dessa resistência. Um evento, denominado Grande Concurso de Música Brasileira, promovido pelo jornal A Gazeta, com apoio da Rádio Educadora, foi um desses símbolos de resistência. Tratava-se de um concurso entre categorias de instrumentos musicais, canto e composição, cujos vencedores seriam escolhidos por voto popular.

Os resultados, em geral surpreendentes e decepcionantes para vários dos músicos concorrentes fez despertar o espírito de competitividade, que parecia dormente dentre deles. Criou-se uma guerra entre emissoras de rádio, surgiam disputas entre músicos, que incentivavam o surgimento de torcidas, que chegavam a se enfrentar com violência. A rinha entre Garoto e Zezinho tomou ares de guerra não declarada. Garoto sempre agradeceria a essa disputa pelo talento que desenvolvera como músico.

Em 1931, Garoto ainda se apresentaria no Festival de Música Brasileira no Clube da Liberdade, com enorme sucesso. Também dedilhou seu banjo no “50º Aniversário do Liceu Nacional Rio Branco.   
Garoto então foi convidado para integrar o Grupo dos Calungas, que vinha gravando discos pela gravadora Victor, desde 1930. E foi em 1931 que aquele conjunto lançou pela Colúmbia um disco que trazia O drama de Angélica, uma toada, de um lado; e Zombando da Morte, um samba composto por Garoto com Barreto, líder do grupo, e que fez enorme sucesso na Record. O conjunto lançaria mais um disco naquele ano, também com sucesso.

Barreto era carioca, frequentador do famoso Café Lamas. Mudou-se para Sampa em 1927, fazendo por lá carreira bem sucedida como músico e onde realizou algumas parcerias com Garoto.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Gente Humilde: Vida e Música de Garoto”


sexta-feira, 27 de julho de 2018

OS ÔNIBUS DOS ARRASTÕES E AS CARAVANAS DE CHICO BUARQUE



As imagens da polícia carioca impedindo ônibus vindos dos subúrbios de chegarem às praias da Zona Sul, transportando  passageiros indesejados pelos moradores locais, deram munição para mais uma crítica social produzida pelo cantor de voz suave e de versos ferinos.


AS CARAVANAS – CHICO BUARQUE


É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o buchicho, é a charanga

A canção começa descrevendo um belo dia de céu azul e mar calmo, daqueles que tiram os cariocas da cama mais cedo e os levam a procurar as areias escaldantes das praias.
É quando chegam os “inimigos”. Vindos de Caxangá, Chatuba, Irajá, Penha nomes que soam como favelas e bairros periféricos pobres, os “favelados” chegam, e consigo levam o temor de assaltos, arrastões e quetais, medos típicos de sociedades caóticas.
Contudo, apesar dos “apelos” dos cidadãos “de bem”, ainda vivemos numa democracia, o direito de ir e vir é, ainda que mal e muito porcamente, estendido a todos. Pode-se tentar, mas é impossível impedir que um cidadão frequente um local público.
Jardim de Alá, além de conectar a palavra “muçulmano”, que traz consigo o imaginário do homem-bomba, já bastante associado com traficantes e marginais dos morros cariocas, também remete à riqueza: este local divide os bairros do Leblon e de Ipanema.

Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré

Aqui, poeticamente, Chico fala dos discursos absurdos que tentam legitimar tamanha violência: fala do medo de  que estejam todos portando armas e que assim ameacem os banhistas e os roubem...
Depois, conecta com o racismo de outrora, que criou o imaginário de negros robustos – racismo esse que apenas se transportou das senzalas dos latifúndios monocultores para as favelas, que em quase nada se diferem.    

Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné

Novamente, a relação implícita entre negros x brancos, pobres x “ricos”, e a semelhança entre favelas e países africanos fornecedores de escravos.

Sol
A culpa deve ser do sol que bate na moleira
O sol que estoura as veias
O suor que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar

Os aspectos caóticos da sociedade carioca têm idiossincrasias que não se percebem em outras cidades do Brasil. A irritabilidade, a violência explícita, em muitas situações são “justificadas” pelo calor infernal, o que vitima até mesmo as relações interpessoais.
Na parte final, mais uma analogia comum, mas longe de estar desgastada: prisões contemporâneas e porões de navios negreiros. Chico aproveita para encaixar mais uma crítica social: tendo uma conformação desumana, impossível esperar que as pessoas ali se comportem de maneira civilizada e ordeira.

Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há

E então passa para a reação do lado “oficial”: incentivo à reação violenta, desmesurada e, sobretudo, covarde, por parte dos policiais (servidores públicos), tudo isso incentivado e até desejado pela sociedade à qual servem. Isto é: o medo leva à raiva, que leva à covardia da sanha persecutória.
Temor comum o que Chico expressa no terceiro verso: diante de uma sociedade que grita “A”, e da minha discordância, pois grito “B”, o louco sou eu ou são os demais? Machado de Assis já escrevia sobre isso no século XIX.
No fim, sua conclusão: a sociedade é “doida de pedra”, assim como eu. Nem naqueles ônibus lotados daquela “gente terrível” há mais insanidade do que em nós...

Sol
A culpa deve ser do sol que bate na moleira
O sol que estoura as veias
O suor que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar



Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana
Nem caravana
Nem caravana do Arará


Rubem L. de F. Auto

quinta-feira, 26 de julho de 2018

XEBOFOBIA INTRAMUROS

75 percent approve of this torment
A cement wall so aliens will stop their crawl
So tall they can't climb above
Shove them back, there's no love here
Because our fears endless years of tears will fall upon us

Building a wall to keep them out?
I'm highly in doubt
More like building a wall to keep us in
Because we're still judging by skin
And so-called "moralists" are blind of the sin

How can God justify this?
Created to exist
Not to be dismissed
Into an abyss of our ignorance
The wickedness is knowing of their gratefulness
Suppressing as this nation is regressing
Stuck in reverse can we inverse this curse?

My family is not accepted in land that was once there's before they were
Redirected, disrespected, rejected, and infected, dissected to be contrived
Manifest Destiny has survived and is being revived
In a nation of all this evil I demand an upheaval!
If this wall was built before I was born
I wouldn't even be alive to mourn
75% aprovam esse tormento
Um muro de concreto, e então os estrangeiros não poderão mais rastejar pela fronteira
Tão alto que não possam escalar
Empurrem-nos de volta, não há amor aqui
Porque nossos medos, anos a fio de lágrimas, cairão sobre nós

Construir um muro para mantê-los de fora?
Tenho muitas dúvidas
Gostaria mais de um muro para nos manter dentro
Porque ainda estamos julgando pela cor da pele
E os assim chamados “moralistas” não veem pecado nisso

Como poderia Deus aceitar isso?
Criados para existirmos
Não para sermos esquecidos
Dentro do abismo de nossa ignorância
A fraqueza está tomando consciência de sua grandeza
Desaparecendo, conforme essa Nação está regredindo
Pensando o oposto, podemos inverter esse curso?

Minha família não é mais aceita na Terra que um dia foi deles, antes que fossem realocados, desrespeitados, rejeitados e infectados, dissecados para serem difamados
O Destino Manifesto sobreviveu e está de volta
Na Nação de todos esses males, eu quero uma revolta social
Se esse muro tivesse sido construído antes de que eu tivesse nascido
Eu não estaria sequer vivo para odiá-lo






XENOPHOBIA - ELYSIA


Rubem L. de F. Auto

terça-feira, 24 de julho de 2018

VAI PRA CUBA, COMUNISTA! TOSTÃO



A seleção brasileira campeão na Copa do Mundo no México encantou o mundo todo. Pelé, Gerson, Rivellino, Tostão, Jairzinho, o capitão Carlos Alberto Torres e companhia formaram aquele que é considerado o melhor selecionado de jogadores de futebol da história. Mas as histórias que permeiam a formação desse grupo são muitas e também curiosas.

Muitos sabem que Pelé correu, de fato, o risco de não jogar aquela Copa. Fisicamente destroçado após anos de atividade intensa e de uma coleção de botinadas e hematomas deixados por zagueiros-carniceiros com que se deparava, Pelé teve de se dedicar muito para superar as suspeitas de que estava velho e cego, para o futebol – como alguns comentários do então técnico João Saldanha faziam crer, levantando a suspeita de que ele pretendia cortar o maior craque brasileiro de todos os tempos. No entanto, alguns dizem que isso era mero boato e que o real motivo da saída de Saldanha era seu engajamento político junto ao Partido Comunista brasileiro.

O outro craque que poderia ter desfalcado aquela seleção foi o Tostão. E tudo por causa de uma entrevista concedida ao jornal O Pasquim, cerca de dois meses apenas do início da Copa.
Tostão era uma pessoa bem instruída: dentro de campo era o jogador-pensador, por causa de sua capacidade de ver o time coletivamente, achava companheiros bem posicionados; fora de campo, expressava opiniões sofisticadas e sempre mostrava uma certa inclinação para as ideologias consideradas de esquerda. Em tempos de regime militar, isso exigia certa precaução.

Essa imagem passada por Tostão se adequava ao que expressava a letra da música “Meio-de-Campo”, composta por Gilberto Gil em apoio a Afonsinho, na época envolto numa polêmica com Zagallo, no Botafogo, que exigia que o jogador cortasse seu cabelo e se afastasse daquela fisionomia de “militante de esquerda”. O trecho da canção é:

“Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
Desprezando a perfeição
Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na seleção
E eu não sou Pelé nem nada
Se muito for, eu sou um Tostão
Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão.”

Pelé representava, no imaginário, a perfeição do atleta em campo, contudo não demonstrava publicamente discordância com o ambiente político vigente – ao contrário, chegou a fazer couro com os que questionavam a capacidade de o brasileiro votar. Já Tostão passou a ocupar o lugar do jogador inteligente, crítico, questionador.

Além disso, Pelé era uma celebridade, portanto suas declarações poderiam se tornar bombásticas, criar crises políticas. E isso pesava sobre Pelé, cujas declarações deveriam ser comedidas. Ele chegou a ser ameaçado pelo governo de ter suas Declarações de Imposto de Renda minuciosamente conferidas, caso se recusasse a jogar a Copa de 1974.

Tostão foi entrevista em Minas Gerais por Ziraldo, Jaguar, Sérgio Cabral (pai), Marilene Dabus, Tarso de Castro e outros. Evidentemente a conversa pouco se desenvolveu em torno do assunto futebol. Tendo sido arranjada pelo jornalista Sérgio Cabral, essa entrevista deveria focar no posicionamento político de Tostão – embora ele contasse meros 23 anos na ocasião.

Necessário dizer que Tostão vivia um drama pessoal naquele período. Jogador predileto do técnico João Saldanha, Tostão formava dupla intocável com Pelé. Contudo, após o afastamento de Saldanha e sua substituição por Zagallo, o caldo entornou. Zagallo não queria escalar Pelé e Tostão no mesmo time e mostrava clara preferência pelo jogador reserva do Tostão. Deve-se lembrar de que Tostão sofreu uma cirurgia por deslocamento de retina, sofrido num jogo do Cruzeiro contra o Corinthians – a cirurgia foi delicada, ocorreu nos EUA, mas após a Copa o jogador mineiro sofreu novo deslocamento e encerrou sua vitoriosa carreira com apenas 26 anos de idade. Certamente a dúvida que pendia sobre si fê-lo declarar de maneira mais aberta sobre o que pensava. De fato, a convocação de Tostão foi resultado de uma pressão intensa feita pela mídia e pelos torcedores sobre Zagallo, que não teve como resistir àqueles apelos, diários, na forma de charges e de matérias que o acusavam de tudo, de cego a homossexual - teria um caso com um dos jogadores da seleção.  

Nessa entrevista, Tostão chegou a fazer elogios a Dom Helder Câmara, arcebispo do Recife e religioso que se alinhava aos setores mais progressistas da Igreja. Desnecessário dizer que era inimigo público do regime militar. Sua declaração: “A Igreja foi feita para ir ao encontro do povo e não para o padre ficar dizendo: nós temos de nos conformar em ser pobres”.

Noutro momento, Tostão foi questionado sobre o que pensava da Guerra do Vietnã. Sua resposta: “A Guerra do Vietnã é suja. Uma guerra feita pela indústria”.  

Após essa polêmica entrevista, Tostão recebeu uma ligação intimidadora de um conhecido, que pedia que ele tivesse cuidado com as coisas que falava, caso desejasse figurar entre os convocados para a Copa – Tostão chegou a defender o direito de expressão e a liberdade de se ter um posicionamento político definido, nessa entrevista.


Rubem L. de F. Auto

segunda-feira, 23 de julho de 2018

THE FEVER: OS FEBRIS DO PASQUIM E A TRINCHEIRA DO JORNALISMO DE OPOSIÇÃO



Em junho de 1969, o jornalista Sérgio Porto, icônico Stanislaw Ponte Preta, que ostentava um ar sisudo a despeito de seu senso de humor original e crítico, deu à luz uma publicação que se tornaria marcante nos anos seguintes: O Pasquim, hebdomanário no melhor estilo Charlie Hebdo.

Embora sofrendo ataques constantes por parte do governo, sendo submetido a uma claustrofóbica censura, suas reportagens, resenhas, entrevistas e cartoons, o jornal se manteve mais ou menos intacto até meados de 1972. O jornal emanava liberdade a partir de suas tintas, num tempo em que o trabalho de informar era tolhido incessantemente.

O Pasquim tinha inspiração anos antes, na revista Pif Paf, lançada em 1964 por Millôr Fernandes. O nome do semanário foi copiado do nome da coluna que Millôr tinha na revista O Cruzeiro. A coluna teve fim após a demissão de Millor, devida a uma série de artigos que ele escreveu sobre o paraíso bíblico, chamada “A Verdadeira História do Paraíso”. Inevitavelmente o ateu Millor teve problemas com os setores mais católicos da sociedade, e teve de ser tirado do time de jornalistas.

Para o Pif Paf, Millor convocou Claudius Ceccon, Ziraldo, Rubem Braga, Sérgio Porto, Eugênio Hirsch, Jaguar e muitos outros jornalistas de peso. Mas os tempos eram bicudos e a publicação de Millor também seria fechada quando, ainda no início da ditadura, ele escreveu: “se o governo continuar deixando que circule esta revista, dentro em breve cairemos numa democracia.” Esta seria a última edição da revista. Mas a censura que vitimou a Pif Paf também atingiria sua sucessora, O Pasquim.

Os anos de 1975 e 1976 viram duras demonstrações de como seriam tratados os desafetos do regime militar, mesmo que profissionais de imprensa. Nesses anos, o jornalista Valdimir Herzog, da TV Cultura, foi preso por se recusar a noticiar um ato político do governo de São Paulo.

Nesses mesmos anos, O Pasquim já não tinha mais o mesmo fôlego e o vigor dos primeiros anos. E o episódio que quase levou a valente publicação à lona foi, ao um só tempo, trágico e cômico, melhor dizendo, tragicômico.

O cartunista Jaguar, em 1970, fez uma das suas paródias atrevidas: criou uma montagem que utilizava o quadro histórico de Pedro Américo, Independência ou Morte, na qual D. Pedro I gritava Eu Quero Mocotó – refrão da música de Erlon Chaves, muito famosa naquela época. O regime entendeu que se tratava de afronta contra o civismo nacional.

Nos meses de novembro e dezembro de 1970, estiveram presos pelo governo militar os seguintes jornalistas d`O Pasquim: Paulo Francis, Ivan Lessa, Ziraldo, Luiz Carlos Maciel, Paulo Garcez, Flávio Rangel, Sérgio Cabral ( pai, claro), Tarso de Castro, Jaguar e Fortuna. Somente escaparam da sanha persecutória Millor, Henfil e Martha Alencar. Restaram como únicos editores das próximas edições.

Produziram então “a gripe”: divulgaram que o motivo da ausência dos parceiros se devia a uma gripe contagiosa impediu-os de comparecerem à redação. Nesse interstício de dois meses, atuaram como colaboradores do periódico: Chico Buarque, Antônio Callado, Odete Lara e Glauber Rocha. Henfil aproveitou para demonstrar seu talento para publicar cartuns do mesmo estilo dos desenhistas que haviam sido presos.

Quanto aos presos, não forma vítimas de maiores violências, exceto pelo corte de cabelo compulsório a que foi submetido o cabeludo jornalista e crítico de teatro Luiz Carlos Maciel. Segundo Jaguar, esse foi o único episódio de “tortura” a que foram submetidos.


Rubem L. de F. Auto 

MADE IN BRAZIL: O MASSACRE DO ROCK NACIONAL



Fundada pelos irmãos Oswaldo e Celso Vecchione em 1968, a banda de rock Made in Brazil, de São Paulo, é considerada uma das mais antigas do Brasil, ainda em atividade. Inicialmente, seu vocalista se chamava Cornélio de Aguiar Neto, cujo apelido Cornélius Lúcifer refletia melhor seu estilo hard rock. Poucos anos após, Cornélius deixou a banda para seguir carreira solo. Faleceu em 2013.

O vocalista seguinte seria Pecy Weiss, que faleceu em 2015 em um acidente de carro. Foi ele quem trabalhou no álbum “Massacre”, que seria lançado em 1977, não fosse um probleminha que afligia muitos artistas da época: o álbum foi totalmente censurado pela ditadura então vigente.

Este foi o resultado de uma investigação promovida pela Comissão Nacional da Verdade.

Contudo, 37 anos após sua concepção, a banda finalmente conseguiu lançar o polêmico vinil (optaram por lançar no formato original, em vinil).


Rubem L. de F. Auto

sexta-feira, 20 de julho de 2018

O LONGO SÉCULO XX MUSICAL – 2ª PARTE



O último suspiro da Bossa Nova se deu em grande estilo. Em 1964, uma versão em inglês de Garota de Ipanema veio a público. Esta versão foi escrita pelo norte-americano Norman Gimbel, a melodia foi composta pelo jazzista Stan Getz, o violão foi dedilhado pelo perfeccionista João Gilberto. A voz doce foi emprestada por Astrud Gilberto, na época esposa de João.

Aqui no Brasil, outra cisão se anunciava. Carlinhos Lyra, até então muito popular pelo violão e pela beleza de suas alunas de música, rapidamente se aproximava dos movimentos políticos na UNE, tentando unir os protestos políticos e a cultura brasileira. Sua atitude levou-o de encontro a outros bossanovistas mais apegados às raízes do movimento, como Ronaldo Bôscoli. Nara Leão, pouco tempo depois, aderiu à proposta de Carlinhos.

Apenas Vinícius conseguia transitar entre os dois movimentos: tanto buscava a melodia e o lirismo da Bossa Nova, quanto incentivava a agitação cultural do CPC da UNE – Vinícius escreveu a letra do hino da UNE, cantado por Carlinhos Lyra.

Ao se integrar ao CPC, Carlinhos se punha lado a lado com Oduvaldo Vianna Filho (o Vianinha, fundador do Teatro de Arena), Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Ferreira Gullar, Gianfrancesco Guarnieri, Leon Hirszman e muitos outros nomes que marcaram culturalmente toda uma geração.

O CPC da Une teve vida curta: foi encerrado em 1964, quando do Golpe militar e do quase simultâneo incêndio da UNE, provocado por membros do Comando de Caça aos Comunistas – tendo sido esta cassada pouco depois.

O chamado Golpe de 1964 foi, essencialmente, uma intensa campanha midiática que pregava um modelo econômico neoliberal, apoiado principalmente por diversos intelectuais, políticos e empresários, que ajudaram a fundar diversos institutos (como IBAD e IPES) cujo objetivo era emprestar uma feição nacional àquela reivindicação bastante particular. Esses institutos produziram panfletos, seminários, pagaram para publicar matérias enviesadas – em muitas dessas publicações, acusava-se João Goulart de estar a serviço do comunismo da URSS e de Cuba. O dinheiro que irrigava essas entidades saía dos gordos caixas da Coca-Cola, Ford, Esso, Texaco, Shell e outras.

O esforço do IBAD-IPES deu frutos quando o país viu sair à rua uma imensa passeata, em 19 de março de 1964, em São Paulo: A Marcha da Família Unida com Deus pela Liberdade, apenas seis dias após o discurso de Goulart na Central do Brasil, quando defendeu ideias diametralmente opostas à dos manifestantes em São Paulo.

Seguindo a cadeia de acontecimentos que engatilharam o Golpe, Goulart ainda anistiou diversos marinheiros condenados por ações políticas. O alto oficialato entendeu aquilo como quebra de hierarquia e se lançaram às ações para enxotar Jango da Presidência. A partir das ações do general Olímpio Mourão Filho, desde Juiz de Fora, respaldado pelo governador de Minas, Magalhães Pinto, dono do Banco Nacional, sucederam-se as ações que culminaram com a fuga de Jango do país.

Esses anos viam a entrada em cena da televisão – a TV Globo nasceu em 1965, no Rio de Janeiro e no ano seguinte adquiriu a TV Paulista, dando início à sua trajetória ascendente. As novelas já eram muito populares, especialmente aquelas escritas pela imigrante cubana Glória Magadan. O primeiro grande sucesso novelístico foi O Direito de Nascer, da TV Tupi de SP, transmitida de 1964 a 1965.

A cultura de massa tomou impulso com o movimento rockeiro tupiniquim, bastante diferente da contraparte americana, que se caracterizava por ser muito mais rebelde e crítica, pois comportado, ingênuo e muito conservador: era a Jovem Guarda, cujo nome se deve a uma frase de Lênin, “O futuro pertence à jovem guarda, porque a velha está ultrapassada”, utilizada pelo publicitário Carlito Maia bastante fora do contexto.     

A história do rock no Brasil se deu embalada na voz de Nora Ney em 1955, quem gravou Rock Around the Clock, música tornada bastante popular nos EUA por causa do cover da banda Bill Haley and His Comets – aliás, lançadas com pouquíssimo espaço de tempo entre ambas, pois a gravação americana é de 1954. Logo após, Agostinho dos Santos gravou a versão de Júlio Nagib para “See you later aligátor”: “Até logo, jacaré”. Outro que viveu sua aventura rockeira foi Cauby Peixoto, quem teve carreira nos EUA se apresentando com o pseudônimo de Ron Coby. Ele gravou Rock`n Roll em Copacabana. Depois, surgiu a primeira banda de rock brasilieira: Betinho e seu conjunto, que lançaram Enrolando o Rock.  

Mas apenas em 1959 surgiu o primeiro grande sucesso de rock produzido no Brasil: Toni e Cely Campello lançaram o single Banho de Lua, versão brasileira da italiana “Tintarella di Luna”; e Estúpido Cupido, versão de “Stupid Cupid”, de Neil Sedaka. O sucesso dos irmãos foi tamanho que ganharam um programa de TV: Crush em Hi-Fi, da TV Record de SP.

Em 1960, o cenário rock no Brasil se consolida com a banda The Jordans e com o primeiro grande ídolo juvenil do país, Sérgio Murilo – quem deu à Jovem Guarda a feição com a qual se tornou conhecida do público. Esses nomes anteciparam nome que se tornariam mais famosos como Golden Boys, Erasmo Carlos, Renato e seus Blue Caps e, finalmente, Roberto Carlos.

Roberto se tornou notório somente após Sérgio Murilo investir de maneira completamente atabalhoada numa eventual carreira internacional. Após viver o sucesso estrondoso de “Marcianita” e “Broto Legal”, de 1960, Sérgio partiu para a Argentina em 1963, onde suas músicas eram muito executadas, sem que se houvesse consolidado no Brasil antes. Aproveitando a ausência do ídolo maior, Roberto e seu empresário, Carlos Imperial, investiram no estilo nascente (Roberto era cantor de Bossa Nova até então) e, quando Sérgio voltou, o maior ídolo de rock do Brasil atendia por outro nome – Sérgio Murilo nunca mais alcançou a mesma fama e faleceu em 1992, aos 51 anos.

O sucesso de Roberto o levou à televisão: o programa Jovem Guarda, da TV Record de SP.  
Mas a diferença entre o rock que se produzia aqui e o que faziam americanos e britânicos nessa época era gritante. Para se ter ideia, aqueles eram os anos de Byrds, Animals, The Doors, Rolling Stones, The Who etc. – amplamente diferentes do que os jovemnguardistas se propunham fazer com aquelas versões abrasileiradas de Pat Boone, Platters, Neil Sedaka, Paul Anka e toda aquela ingenuidade acrítica e amorfa.  

O trio de apresentadores-cantores Roberto e Erasmo Carlos e Wanderléa levaram ao público artistas como Jorge Ben Jor, Tim Maia, Bobby di Carlo, Os Incríveis, Fevers e outros. Até o Sérgio Murilo, embora sentindo-se um tanto traído pelos acontecimentos, aderiu ao movimento que tomava corpo sem lembrar do seu pioneirismo. Cely, contudo, anunciava sua aposentadoria dos palcos para se dedicar à família que constituía. Retornaria no início da década de 1970, quando suas músicas foram tornadas populares novamente por integrarem trilhas de novelas. Morreria em 2003, casada e feliz.

O movimento da Jovem Guarda foi acompanhado por uma renovação da Bossa Nova. Um grupo resolveu unir a musicalidade brasileira com o espírito inquieto do folk americano, inspirados em Bob Dylan, Pete Seger e Woody Guthrie, este último inclusive autor de uma música em que protestava contra Trump, o especulador imobiliário pai do Presidente dos EUA.

Essa fusão deu origem ao que conhecemos como MPB. Foi esse o estilo que brilhou durante a Era dos Festivais. Seus maiores divulgadores foram Chico Buarque, Edu Lobo, Elis Regina (que iniciou carreira na Jovem Guarda, mas ficou famosa após cantar Arrastão, de Vinicius e Edu, em 1965, e ganhar o I Festival de MPB) e outros.

Elis, aliás, presava pelo ecletismo: gravou Roberto Carlos, Zé Rodrix, Belchior (autor do marcante blues de Como Nossos Pais) e Rita Lee (Alô, Alô, Marciano). Elis também ganhou um programa de TV, O Fino da Bossa (concorrente do programa da Jovem Guarda), da TV Record de SP, que apresentava ao lado de Jair Pereira (sambista, mas também autor do primeiro rap brasileiro, Deixa Isso Pra Lá).

Apesar da desconfiança do compositor, Geraldo Vandré, Jair gravou Disparada, obra prima de Vandré, apresentando-se no II Festival de Música Popular Brasileira. Foi o único caso de empate, pois Chico Buarque, que concorria com A Banda, não aceitou ser premiado no lugar de Disparada: ambos levaram o prêmio.

Aos poucos, o Golpe, que se apresentara como uma interrupção transitória da democracia, que retornaria em 1965, com o país em ordem, foi tomando feições mais permanentes: JK e Carlos Lacerda, este último apoiador do Golpe, tiveram seu direitos políticos cassados; Jango, no exílio no Uruguai e pretendente a vice de JK também foi cassado; e cancelaram as eleições de 1965.

Com isso, o clima contra a situação do país se tornava tenebroso, deixando quase impossível cantar canções de amor ao Brasil, no estilo da Bossa Nova. Aos poucos, tornava-se proibido falar bem do país. Como a censura se fazia presente, criptografar as críticas políticas e sociais era imprescindível. A música brasileira se enriquecia, mas se tornava a cada dia mais menos popular.

Então, surpreendentemente, apresentou-se ao país uma terceira via musical. Artistas baianos recentemente aportados em São Paulo evocavam Carmem Miranda, Vicente Celestino, Chacrinha, estilos musicais diversos, como Jovem Guarda e música nordestina, tudo isso fazendo uso da temida guitarra elétrica: era o Tropicalismo (ou Tropicália) entrando em cena. Os expoentes atendiam pelo nome de Chico Buarque e Gilberto Gil – mas também havia Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Nara Leão e muitos outros. Outro membro do movimento foi o aluno da Escola de Música da UNB Tom Zé. A teatralidade típica ficava a cargo da experiência que o grupo teve na Bahia, quando se apresentavam no Teatro Vila Velha. Completavam o cenário o poeta Capinam, Torquato Neto, Rogério Duprat e Mutantes – banda de rock psicodélico. Aliás, o rock psicodélico brasileiro contou também com a contribuição de Ronnie Von, em três discos, hoje cult, mas grandes fracassos comerciais na época.

Os Mutantes eram compostos pelos irmãos Arnaldo Batista, músico talentoso e excêntrico, Sérgio Dias, irão de Arnaldo e músico de rock progressivo, Rita Lee, que se tornaria cantora pop após sair do grupo, e Arnolpho Lima Sobrinho, o Liminha, que se tornaria importante produtor anos depois.

Surgiram obras como “Domingo no Parque” e “Alegria, Alegria”, que amealharam fãs no II Festival da MPB. Caetano e Gil ainda apresentaram um programa de TV, Divino Maravilhoso, mas log, em 1969, foram presos no quartel do Exército no bairro carioca de Realengo. Logo após foram soltos, mas tiveram de buscar o exílio em Londres, onde permaneceram por dois anos. Lá, fizeram uma apresentação no Festival da Ilha de Wight, em 1970, onde também se apresentou Hendrix pela última vez.

O rock brasileiro ainda contou com o sucesso da canção “Era um garoto que como eu amava os Beatles e rolling stones”, dos Incríveis, uma versão de uma música italiana. Em 1967, veio a público o primeiro disco do grupo Raulzito e os Panteras, comandado por Raul Seixas. Ele compôs uma versão de Lucy in the Sky with Diamonds, dos Beatles, que se chamava Você ainda pode sonhar.

Mas o clima político ficava a cada dia mais cerrado, o cenário no exterior também não era animador. Em dezembro de 1968, como resposta à Passeata dos Cem Mil e ao discurso do deputado Márcio Moreira Alves contra o governo, a ditadura fez passar o AI5. O que se seguiu então foi um clima de desânimo e de impotência, que descambaria no ambiente do rock progressivo, embalado por muito álcool, drogas alucinógenas e curtição sem preocupação com o futuro – foi a época em que se multiplicavam comunidades hippies, em que se buscava, simplesmente, escapar do mundo.

Aos poucos, os símbolos do que ficava para traz iam morrendo, um após o outro: a cantora Sylvia Telles morreu em acidente de carro, depois nos deixou o jornalista cultural Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, seguiu-se então Cacilda Becker, a atriz Leila Diniz, Torquato Neto, Agostinho dos Santos, Vianinha, dentre outros.


 Rubem L. de F. Auto                                                                                                                                                   
 Fonte: livro “Música brasileira e cultura popular em crise”

quinta-feira, 19 de julho de 2018

UMA TORTA AMERICANA REPARTIDA COM DYLAN - AMERICAN PIE

AMERICAN PIE – DON MCLEAN


Essa canção fala do acidente de avião ocorrido em 3 de fevereiro de 1959 que vitimou três grandes nomes do nascente rock`n roll: Buddy Holly, Ritchie Valens e Jiles Perry Richardson (The Big Bopper). Este foi “o dia em que a música morreu”.
Essa expressão tão dramática para o dia da tragédia se deveu, em muito, ao que ocorreu com os demais ídolos do rock dos anos 1950 após a morte dos ídolos a bordo: Elvis havia sido convocado para servir ao exército durante a Guerra da Coréia e retornou bastante mais comportado; Little Richard se converteu e virou cantor gospel; Chuck Berry foi preso por violentar uma prostituta.
American Pie, ou Torta Americana, é um dos símbolos culinários do que é americano nato. Mas Don McLean, quando perguntado sobre o significado da expressão, apenas respondeu: “Significa que nunca mais vou precisar trabalhar de novo.”


A long long time ago
I can still remember how
That music used to make me smile
And I knew if I had my chance
That I could make those people dance
And maybe they'd be happy for a while

Essa canção é de 1971. O acidente ocorreu em 1959. Mas muita coisa aconteceu nesse meio tempo...
O terceiro verso fala da emoção que tocou Don McLean quando ouviu aquele rock pioneiro (Buddy Holly e outros) pela primeira vez.
Necessário lembrar que o rock dos anos 1950 era essencialmente dançante.

But February made me shiver
With every paper I'd deliver
Bad news on the doorstep
I couldn't take one more step

O primeiro verso lembra o acidente que levou seu ídolo, Buddy Holly.
Don McLean era entregador de jornais na época da tragédia.
O acidente foi noticiado nas principais manchetes da época.

I can't remember if I cried
When I read about his widowed bride
Something touched me deep inside
The day the music died
So

A esposa de Buddy Holly estava grávida quando seu marido morreu. Ela terminou sofrendo um aborto espontâneo.

Bye, bye Miss American Pie
Drove my Chevy to the levee but the levee was dry
And them good old boys were drinking whiskey and rye
Singin' this'll be the day that I die
This'll be the day that I die

Did you write the book of love
And do you have faith in God above
If the Bible tells you so?
Do you believe in rock and roll?
Can music save your mortal soul?
And can you teach me how to dance real slow?

"This`ll be the day tthat I die" é um trocadilho com o sucesso "That`ll be the day (when I die)", de Buddy Holly (& The Crickets).

“The book of love” foi um sucesso dos Monotones, de 1968.
O questionamento sobre o rock é um trocadilho com o sucesso “Do You Believe in Magic?”, d eLoving Spoonful.
As danças de rock eram, no início, bem mais românticas.

Well, I know that you're in love with him
'Cause I saw you dancin' in the gym
You both kicked off your shoes
Man, I dig those rhythm and blues

Kick off you shoes faz referência às danças “sock hop”, geralmente dançadas sem sapatos, só de meias.
O verso final conta que Don ficou tão chateado ao ver a garota que admirava com outro cara que se afundou noutro estilo musical, mais triste: o blues.

I was a lonely teenage broncin' buck
With a pink carnation and a pickup truck
But I knew I was out of luck
The day the music died
I started singin'

A caminhonete era o símbolo da sexualidade masculina. O cravo rosa faz referência à música “Awhite sport coat (and a pink carnation)”, de 1957.

Bye, bye Miss American Pie
Drove my Chevy to the levee but the levee was dry
And them good old boys were drinking whiskey and rye
Singin' this'll be the day that I die
This'll be the day that I die
Now, for ten years we've been on our own
And moss grows fat on a rolling stone
But, that's not how it used to be

McLean começou a escrever essa canção em 1969, dez anos após o acidente.
Em 1965, Bob Dylan lançou Like a Rolling Stone. Depois disso, Dylan sofreu um acidente de moto que lhe fez ficar internado em sua casa em Woodstock, engordando e se recuperando.
Como já diz a frase: Em pedra rolando não cresce musgo.

When the jester sang for the king and queen
In a coat he borrowed from James Dean
And a voice that came from you and me

Esta passagem faz referência ao Newport Folk Festival, em que Bob Dylan (o bobo da corte), Peter Seger (o rei) e Joan Baez (a rainha) cantaram juntos Blowing in the Wind.  

Oh and while the king was looking down
The jester stole his thorny crown
The courtroom was adjourned
No verdict was returned

O primeiro verso fala da superação de Peter Seger por Bob Dylan.
O segundo, fala do preço que se paga por ser famoso, a perda da privacidade, das cobranças profissionais a cada dia mais intensas.
Os dois últimos falam da ausência de condenação penal a Lee Harvey Oswald, após assassinar Kenneduy – ele foi assassinado antes.

And while Lennon read a book on Marx
The quartet practiced in the park
And we sang dirges in the dark
The day the music died
We were singin'

O primeiro verso fala do início da fase mais política dos Beatles.
O local do último show do quarteto foi o parque Candlestick.
O ensaio se refere ao disco seguinte: Sgt. Pepper`s, considerado o melhor deles.
Músicas fúnebres se refere aos ilustres assassinados na década de 1960: Kennedy, Luther King...

Bye, bye Miss American Pie
Drove my Chevy to the levee but the levee was dry
Them good ole boys were drinking whiskey and rye
And singin' this'll be the day that I die
This'll be the day that I die



Helter skelter in a summer swelter
The birds flew off with a fallout shelter
Eight miles high and falling fast

Helter Skelter foi a música dos Beatles que o psicopata Charles Mason acusou de “incentivá-lo” a matar uma família inteira, no versão de 1968.
The Byrds era a banda de acompanhamento de Dylan. Um dos membros da banda foi preso por porte de maconha e seu programa de “reabilitação” se chamava “fallout shelter”.
A primeira canção de rock psicodélico se chamava “Eight miles high”.

It landed foul on the grass
The players tried for a forward pass
With the jester on the sidelines in a cast

Foul grass = maconha.
Players = manifestantes.
Forward pass é uma jogada do futebol americano que significa mudar o jogo, mudar a situação atual.
O verso final fala do jester, ou seja Bob Dylan, de molho, em casa, após seu acidente de moto.

Now the half-time air was sweet perfume
While sergeants played a marching tune
We all got up to dance
Oh, but we never got the chance

O primeiro ver todo = drogas.
O segundo, refere-se ao revolucionário álbum dos Beatles, Sgt Pepper`s Lonely.... sim, era um excelente álbum mas punha fim no rock dançante.

'Cause the players tried to take the field
The marching band refused to yield
Do you recall what was revealed
The day the music died?
We started singin'

Players = manifestantes.
As músicas dos Beatles, em muitos momentos, era anti-violência, às vezes beirando o pró-governos (All you need is love...).
A “revelação” pode ser definida nas palavras de Lennon: The Dream is Over... o sonho de liberdade acabou.

Bye, bye Miss American Pie
Drove my Chevy to the levee but the levee was dry
Them good ole boys were drinking whiskey and rye
And singin' this'll be the day that I die
This'll be the day that I die

Oh, and there we were all in one place
A generation lost in space
With no time left to start again

Agora a música fala do icônico Woodstock Performing Arts Festival, em 1969. O local escolhido foi esse porque os organizadores acreditavam que Dylan sairia de casa para tocar ali pertinho... mas ele não foi – Dylan tocou na Ilha de Wight, Reino Unido.
Perdido no espaço se refere à obra prima de David Bowie, Space Oddity, do álbum Ziggy Stardust...
A falta de tempo se refere à sensação de que o fim daquela liberdade toda estava chegando depressa.

So come on Jack be nimble, Jack be quick
Jack Flash sat on a candlestick
'Cause fire is the devil's only friend

Jack se refere a Jumping Jack Flash, dos Rolling Stones.
Os demais versos falam de partes da música dos ingleses.

Oh and as I watched him on the stage
My hands were clenched in fists of rage
No angel born in Hell
Could break that Satan's spell

Agora, McLean fala do Festival de Altamont, organizado pelos Rolling Stones, que terminou em tragédia após pagarem os seguranças, os trogloditas do Hells Angels, com cerveja e ácidos.
McLean ficou puto!
Angel born in hell – Hells Angels.

And as the flames climbed high into the night
To light the sacrificial rite
I saw Satan laughing with delight
The day the music died
He was singin'

A banda deixou o “inferno” que armaram de helicóptero, enquanto os “angels” se alimentavam do sacrifício, isto é, das pobres vidas em meio àquele tumulto.

Bye, bye Miss American Pie
Drove my Chevy to the levee but the levee was dry
Them good ole boys were drinking whiskey and rye
Singin' this'll be the day that I die
This'll be the day that I die

I met a girl who sang the blues
And I asked her for some happy news
But she just smiled and turned away

Primeiro verso = Janis Joplin.
Ela cantava “Meybe they would be happy for a while, that music used to make me smile”

I went down to the sacred store
Where I'd heard the music years before
But the man there said the music wouldn't play

Sacred store = loja de discos que ele amava. Mas agora, anos 1970, já não havia mais os rocks dos anos 1950 que Don adorava.

And in the streets the children screamed
The lovers cried, and the poets dreamed
But not a word was spoken
The church bells all were broken

O primeiro verso fala dos protestos.
O segundo e o terceiro versos citam passagens de canções de Dylan.

And the three men I admire most
The Father, Son, and the Holy Ghost
They caught the last train for the coast
The day the music died
And they were singing

McLean era católico.
God caught the last train = God is dead, frase que virou manchete da revista Times – mas era uma interrogação.

Bye, bye Miss American Pie
Drove my Chevy to the levee but the levee was dry
And them good ole boys were drinking whiskey and rye
Singin' this'll be the day that I die
This'll be the day that I die

They were singing
Bye, bye Miss American Pie
Drove my Chevy to the levee but the levee was dry
Them good ole boys were drinking whiskey and rye
Singin' this'll be the day that I die


Faz muito tempo
Ainda posso me lembrar
Como aquela música me fazia sorrir
E sabia que se tivesse chance
Poderia fazer aquelas pessoas dançarem
E talvez fossem felizes
Por um tempo

















Mas fevereiro me trouxe arrepios
A cada jornal que eu entregasse
Más notícias ao pé da porta
Não conseguia dar um passo mais











Não lembro se chorei
Quando li sobre sua noiva, agora viúva
Algo tocou fundo em mim
O dia em que a música morreu
Então









Adeus, adeus, dona Torta Americana
Dirigi meu Chevy até a represa
Mas ela estava seca
E então, bons velhos rapazes bebiam whiskey e rye
Cantando “este será o dia em que eu morro
Será o dia em que morro”



Você escreveu o livro do amor
E você crê em num Deus lá em cima
Se a bíblia assim lhe diz?
Você crê no rock`n roll?
A música pode salvar sua alma efêmera?
E você poderia me ensinar como dançar realmente devagar?
















Bem, eu sei que você o ama
Porque eu te vi dançando na academia
Vocês dois chutaram seus sapatos para longe
Cara, eu me afundei nesses R&B















Eu  era um adolescente solitário e problemático
Com um cravo rosa e uma caminhonete
Mas sabia que tinha azar
No dia em que a música morreu
Comecei a cantar















Até agora, por dez anos ficamos sozinhos
 E musgos crescem rápido na pedra rolante
Mas as coisas não eram assim


















Quando o bobo da corte cantava para o rei e a rainha
Vestindo uma jaqueta emprestado do James Dean
E com a voz que vinha de mim e de ti









Oh, e enquanto o rei olhava para baixo
O bobo da corte roubou sua coroa de espinhos
A Corte estava em recesso
Nenhuma sentença foi emitida

















E enquanto Lennon lia um livro sobre Marx
O quarteto ensaiava no parque
E nós cantávamos músicas fúnebres na escuridão
No dia em que a música morreu
Nós estávamos cantando




























Montanha russa num dia de verão escaldante
Os pássaros voavam com capas de chuvas
Oito milhas de altura e caindo rapidamente




















Ele pousou mal na grama
Os jogadores tentaram ir adiante
Com o bobo da corte nas margens de uma queda













Agora, o ar fresco era puro perfume
Enquanto sargentos tentavam uma marcha diferente
Nos levantamos para dançar
Mas nunca tivemos a chance












Porque os músicos tentaram tomar os campos
A banda em marcha recusou-se a brigar
Você se lembra da revelação do dia em que a música morreu?
Começamos a cantar






















Oh, e lá estávamos todos, em um lugar
Uma geração perdida no espaço
Sem tempo para começar de novo






















Então, Jack, seja ágil, seja rápido, Jack
Jack Flash sentou numa castiçal
Porque o fogo é o único amigo do demônio








Oh, e enquanto o via no palco
Minhas mãos se cerravam num gesto de ódio
Sem anjo nascido no inferno
Poderia impedir a fala de Satã















E conforme as chamas subiam alto no céu
Para iluminar o rito de sacrifício
Vi Satã rindo deliciosamente
No dia em que a música morreu
Ele cantava










Encontrei a garota que cantava blues
E perguntei-lhe sobre alguma notícia boa
Mas ela apenas riu e foi embora



















Fui até a loja sagrada
Onde ouvi a música, anos antes
Mas o cara disse que aquela música não iria tocar








E nas ruas crianças gritavam
Amantes choravam e os poetas sonhavam
Mas nenhuma palavra era dita
Os sinos todos estavam quebrados









E os três caras que eu mais admirava
O Pai, o Filho, e o Espírito Santo
Pegaram o último trem para a costa
No dia em que a música morreu
E eles estavam cantando



















Cantavam...


Rubem L. de F. Auto