UM HOMEM NA ESTRADA /
RACIONAIS MCs
Um homem na estrada
recomeça sua vida
Sua finalidade: a sua
liberdade
Que foi perdida,
subtraída
E quer provar a si
mesmo que realmente mudou
Que se recuperou e
quer viver em paz
Não olhar para trás,
dizer ao crime: nunca mais!
Pois sua infância não
foi um mar de rosas, não
Na FEBEM, lembranças
dolorosas, então
Um homem deixando a cadeia. O que ele deseja? Redescobrir o
que é ser livre, mostrar às pessoas que errou e que reconhece isso. Talvez ele
queira provar que não quer mais cometer os mesmos erros do passado.
Mas, no que se refere ao passado, haveria alguma explicação
para o cometimento dos crimes pelos quais pagou na cadeia? Uma infância vivida
numa FEBEM (atual Fundação Casa), ajuda a explicar ao menos em parte.
Sim, ganhar dinheiro,
ficar rico, enfim
Muitos morreram sim,
sonhando alto assim
Me digam quem é
feliz, quem não se desespera
Vendo nascer seu
filho no berço da miséria.
Um lugar onde só
tinham como atração
o bar e o candomblé
pra se tomar a benção
Esse é o palco da
história que por mim será contada
Um homem na estrada
“Ficar rico” não é exatamente um objetivo razoável, pelo
qual se possa lutar com afinco, esperando alcançá-lo em breve. No entanto, mais
à frente ele fala “sair da miséria”. Certamente o que a letra trata como
riqueza não passa de viver uma vida “decente”, em que não falta o essencial.
Equilibrado num
barranco, um cômodo mal acabado e sujo
Porém, seu único lar,
seu bem e seu refúgio
Um cheiro horrível de
esgoto no quintal
Por cima ou por
baixo, se chover será fatal
Um pedaço do inferno,
aqui é onde eu estou
Até o IBGE passou
aqui e nunca mais voltou
Numerou os barracos,
fez uma pá de perguntas
Logo depois
esqueceram, filha da puta!
Agora, a descrição do lar de onde saiu o personagem da
história. Aliás, uma realidade comum a milhares e milhares de histórias
semelhantes.
Ao final da estrofe, uma pequena amostra de como se vê o “Estado”
a partir da perspectiva “deles”.
Acharam uma mina
morta e estuprada
deviam estar com
muita raiva
"Mano, quanta
paulada!"
Estava
irreconhecível, o rosto desfigurado
Deu meia noite e o
corpo ainda estava lá
coberto com lençol,
ressecado pelo sol, jogado
O IML estava só dez
horas atrasado
Sim, ganhar dinheiro,
ficar rico, enfim
Quero que meu filho
nem se lembre daqui
Tenha uma vida
segura.
Não quero que ele
cresça com um "oitão" na cintura
e uma "PT"
na cabeça.
Mais uma cena cotidiana nas periferias e favelas das grandes
cidades. Um homicídio, que se seguiu a um estupro, talvez por motivos pessoais,
talvez não... quem sabe? Nunca saberão: não houve perícia, o corpo foi tratado
como um entulho a ser recolhido.
Parece bastante natural que um pai procure legar um futuro
diferente a seu filho, custe o que custar. É isso ou esperar para vê-lo lançar
mão de atitudes mais radicais, inspirado em quem está mais perto...
E o resto da
madrugada sem dormir, ele pensa
o que fazer para sair
dessa situação
Desempregado então
Com má reputação
Viveu na detenção
Ninguém confia não
E a vida desse homem
para sempre foi danificada
Um homem na estrada
Analisando as possibilidades, o desânimo é inevitável: não
tem emprego, a ficha criminal está suja, as possibilidades de conseguiu uma
oportunidade no mercado de trabalho são quase inexistentes... restam poucas
alternativas à sua frente.
Um homem na estrada
Amanhece mais um dia
e tudo é exatamente igual
Calor insuportável,
28 graus
Faltou água, já é
rotina, monotonia
Não tem prazo pra
voltar, hã! Já fazem cinco dias
São dez horas, a rua
está agitada
uma ambulância foi
chamada com extrema urgência
Loucura, violência,
exagerado
Estourou a própria
mãe, estava embriagado
Mas bem antes da
ressaca ele foi julgado
Arrastado pela rua o
pobre do elemento
o inevitável
linchamento, imaginem só!
Ele ficou bem feio,
não tiveram dó
Essa estrofe começa com uma descrição cotidiana dos bairros
periféricos. Quente (planejamento urbano nem nos sonhos mais distantes),
serviços públicos péssimos (sem que acarrete punição ou cobrança pela
administração pública)
Logo após, outra cena cotidiana: mais um homicídio, agora um
bêbado matou a mãe. O julgamento e a sentença costumam ser imediatos: foi linchado
pela população.
Os ricos fazem
campanha contra as drogas
E falam sobre o poder
destrutivo dela
Por outro lado
promovem e ganham muito dinheiro
Com o álcool que é
vendido na favela
Álcool é droga? Sim, e muitos crimes decorrem do abuso dessa
droga. Como se vê aqui.
Empapuçado ele sai,
vai dar um rolê
Não acredita no que
vê, não daquela maneira
crianças, gatos,
cachorros disputam palmo a palmo
seu café da manhã na
lateral da feira
Molecada sem futuro,
eu já consigo ver
Só vão na escola pra
comer, apenas nada mais
Como é que vão
aprender sem incentivo de alguém
Sem orgulho e sem
respeito
Sem saúde e sem paz
Nauseado pela cena bárbara, o personagem procura sair dali.
Mas o que vê é igualmente deprimente: pobreza, lixo, pessoas vivendo como
porcos num chiqueiro. Fácil traçar como será o futuro: não muito diferente do
presente.
Um mano meu tava
ganhando um dinheiro
Tinha comprado um
carro
Até Rolex tinha!
Foi fuzilado a queima
roupa no colégio
Abastecendo a
playboyzada de farinha
Ficou famoso, virou
notícia
Rendeu dinheiro aos
jornais, ham!, cartaz à policia
Vinte anos de idade,
alcançou os primeiros lugares
Superstar do notícias
populares!
Outro dia, outro crime, outra morte... Agora mataram o
traficante que vendia drogas perto de um colégio. Vinha da periferia, seus
clientes eram jovens de classe média. Pode ter sido morto por outro traficante,
talvez por um policial à paisana, talvez alguém tenha encomendado seu morte, um
pai de um aluno que teve problemas sérios em decorrência da droga... Enfim,
nunca se saberá.
O traficante assassinado teve publicidade póstuma e umas
linhas sobre si num pasquim embebido em sangue.
Uma semana depois
chegou o crack
Gente rica por trás,
diretoria
Aqui, periferia,
miséria de sobra
Um salário por dia
garante a mão-de-obra
A clientela tem grana
e compra bem
Tudo em casa, costa
quente de sócio
A playboyzada muito
louca até os ossos
Vender droga por
aqui, grande negócio.
Sim, ganhar dinheiro
ficar rico enfim
Quero um futuro
melhor, não quero morrer assim,
num necrotério
qualquer, um indigente sem nome e sem nada
O homem na estrada
Agora, uma perfeita descrição de como se dá a implantação do
tráfico de drogas. Os investidores são ricos, têm contato e poder junto à
administração pública: subornará polícia, judiciário, aduanas etc. O
planejamento da entrada e da circulação das drogas se dá no “andar de cima”, e
eles ficarão com a maior parte dos lucros. Definem os fornecedores e onde a
droga será entregue.
A partir daí entra o trabalho braçal, operacional. A
distribuição aos pontos de venda, o empacotamento (endolação), os embates com a
“concorrência” (outras facções) e as trocas de tiros (com as prisões
decorrentes), ficam a cargo dos pobretões.
Quem garante esse cenário trágico? Fome, desemprego e falta
de perspectiva. Somando-se a isso: fichas criminais por porte de drogas ou por
tráfico. Qualquer pagamento, por mais miserável que seja, garante uma oferta
ilimitada de mão de obra para o tráfico.
Como a letra deixa claro: usar crack não é exclusividade de freqüentadores
da cracolândia. Não são poucos os usuários de cocaína que se passaram para o
crack.
Mas o personagem sabe que o único papel que pode
executarnesse comércio é ao lado dos que morrem... e ele não quer isso.
Assaltos na redondeza
levantaram suspeitas
logo acusaram favela
para variar
E o boato que corre é
que esse homem está
Com o seu nome lá na
lista dos suspeitos, pregada na parede do bar.
Polícia sem inteligência trabalha assim: alguém denuncia um
assalto, procuraram o suspeito que melhor se adéqüe ao papel de criminoso
(algum favelado das redondezas). Procuram alguém com alguma passagem é bingo!
Já temos um criminoso para a ocasião.
Mas e se não for ele o culpado? Dane-se. É bandido.
A noite chega e o
clima estranho no ar
e ele sem desconfiar
de nada, vai dormir tranquilamente
mas na calada
caguetaram seus antecedentes
como se fosse uma
doença incurável
No seu braço a
tatuagem, DVC, uma passagem, 157 na lei
No seu lado não tem
mais ninguém
Bom, seu nome está na lista. Qual será o passo seguinte?
Apreender para averiguação, notificação para prestar esclarecimentos na
Delegacia, acareação junto à vítima? Não, bandido bom é bandido morto...
Alguém vai “passar” o “bandido”. Mas é se não tiver sido
ele... dane-se!
A Justiça Criminal é
implacável
Tiram sua liberdade,
família e moral
Mesmo longe do
sistema carcerário
Te chamarão para
sempre de ex presidiário
Não confio na
polícia, raça do caralho.
Se eles me acham
baleado na calçada
Chutam minha cara e
cospem em mim é
Eu sangraria até a
morte
Já era, um abraço!.
Por isso a minha
segurança eu mesmo faço
O primeiro verso merece um complemente: implacável com quem
não tem como se defender, contra os mais pobres... e só!
Após o cumprimento da pena, o criminoso carregará as conseqüências
de um passado indesejado. Não há política de reinserção de ex-presidiários no
mercado de trabalho. Portanto a cadeia é um local de recrutamento de mão de
obra para futuros crimes.
A parte seguinte traz o famoso relacionamento entre
policiais e ex-presidiários. Muitos falam que o relacionamento se dá em bases
quase pessoais.
É madrugada, parece
estar tudo normal.
Mas esse homem
desperta, pressentindo o mal
muito cachorro
latindo
Ele acorda ouvindo
barulho de carro e passos no quintal
A vizinhança está
calada e insegura
Premeditando o final
que já conhecem bem
Na madrugada da
favela não existem leis
Talvez a lei do silêncio,
a lei do cão talvez
Uma coisa nosso personagem não é: ingênuo. Sabe das
possibilidades e de como elas podem se dar. Conhece seu ambiente. Sabe que não
pode recorrer a ninguém. O inevitável parece iminente.
Vão invadir o seu
barraco, é a polícia!
Vieram pra arregaçar,
cheios de ódio e malícia
Filhos da puta,
comedores de carniça!
Já deram minha
sentença e eu nem tava na "treta"
Não são poucos e já
vieram muito loucos
Matar na crocodilagem,
não vão perder viagem
Quinze caras lá fora,
diversos calibres, e eu apenas
Com uma "treze
tiros" automática
Sou eu mesmo e eu,
meu Deus e o meu orixá
No primeiro barulho,
eu vou atirar.
Se eles me pegam, meu
filho fica sem ninguém
E o que eles querem:
mais um "pretinho" na FEBEM.
A sentença chegou. Será executada. Ele pode se entregar?
Não, sabe que será morto de qualquer maneira. A saída é apenas uma: atirar e
esperar ser morto. Talvez levar um ou dois consigo. Nada além disso.
Sim, ganhar dinheiro
ficar rico enfim
A gente sonha a vida
inteira e só acorda no fim
Minha verdade foi
outra, não dá mais tempo pra nada
Bang! Bang! Bang!
... a gente só acorda no fim..
"Homem mulato
aparentando
Entre vinte e cinco e
trinta anos
É encontrado morto na
estrada do
M'Boi Mirim sem
número
Tudo indica ter sido
acerto de contas entre quadrilhas rivais.
Segundo a polícia, a
vitima tinha vasta ficha criminal."
E assim ficamos sabendo das notícias...
Rubem L. deF. Auto
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