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segunda-feira, 26 de junho de 2017

RACIONAIS: UM HOMEM TENTADO DEIXAR SEU PASSADO PARA TRÁS, NA BEIRA DA ESTRADA...


UM HOMEM NA ESTRADA / RACIONAIS MCs

Um homem na estrada recomeça sua vida
Sua finalidade: a sua liberdade
Que foi perdida, subtraída
E quer provar a si mesmo que realmente mudou
Que se recuperou e quer viver em paz
Não olhar para trás, dizer ao crime: nunca mais!
Pois sua infância não foi um mar de rosas, não
Na FEBEM, lembranças dolorosas, então

Um homem deixando a cadeia. O que ele deseja? Redescobrir o que é ser livre, mostrar às pessoas que errou e que reconhece isso. Talvez ele queira provar que não quer mais cometer os mesmos erros do passado.
Mas, no que se refere ao passado, haveria alguma explicação para o cometimento dos crimes pelos quais pagou na cadeia? Uma infância vivida numa FEBEM (atual Fundação Casa), ajuda a explicar ao menos em parte.  

Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim
Muitos morreram sim, sonhando alto assim
Me digam quem é feliz, quem não se desespera
Vendo nascer seu filho no berço da miséria.
Um lugar onde só tinham como atração
o bar e o candomblé pra se tomar a benção
Esse é o palco da história que por mim será contada
Um homem na estrada

“Ficar rico” não é exatamente um objetivo razoável, pelo qual se possa lutar com afinco, esperando alcançá-lo em breve. No entanto, mais à frente ele fala “sair da miséria”. Certamente o que a letra trata como riqueza não passa de viver uma vida “decente”, em que não falta o essencial.

Equilibrado num barranco, um cômodo mal acabado e sujo
Porém, seu único lar, seu bem e seu refúgio
Um cheiro horrível de esgoto no quintal
Por cima ou por baixo, se chover será fatal
Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou
Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou
Numerou os barracos, fez uma pá de perguntas
Logo depois esqueceram, filha da puta!

Agora, a descrição do lar de onde saiu o personagem da história. Aliás, uma realidade comum a milhares e milhares de histórias semelhantes.
Ao final da estrofe, uma pequena amostra de como se vê o “Estado” a partir da perspectiva “deles”.

Acharam uma mina morta e estuprada
deviam estar com muita raiva
"Mano, quanta paulada!"
Estava irreconhecível, o rosto desfigurado
Deu meia noite e o corpo ainda estava lá
coberto com lençol, ressecado pelo sol, jogado
O IML estava só dez horas atrasado
Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim
Quero que meu filho nem se lembre daqui
Tenha uma vida segura.
Não quero que ele cresça com um "oitão" na cintura
e uma "PT" na cabeça.

Mais uma cena cotidiana nas periferias e favelas das grandes cidades. Um homicídio, que se seguiu a um estupro, talvez por motivos pessoais, talvez não... quem sabe? Nunca saberão: não houve perícia, o corpo foi tratado como um entulho a ser recolhido.
Parece bastante natural que um pai procure legar um futuro diferente a seu filho, custe o que custar. É isso ou esperar para vê-lo lançar mão de atitudes mais radicais, inspirado em quem está mais perto...

E o resto da madrugada sem dormir, ele pensa
o que fazer para sair dessa situação
Desempregado então
Com má reputação
Viveu na detenção
Ninguém confia não
E a vida desse homem para sempre foi danificada
Um homem na estrada

Analisando as possibilidades, o desânimo é inevitável: não tem emprego, a ficha criminal está suja, as possibilidades de conseguiu uma oportunidade no mercado de trabalho são quase inexistentes... restam poucas alternativas à sua frente.

Um homem na estrada

Amanhece mais um dia e tudo é exatamente igual
Calor insuportável, 28 graus
Faltou água, já é rotina, monotonia
Não tem prazo pra voltar, hã! Já fazem cinco dias
São dez horas, a rua está agitada
uma ambulância foi chamada com extrema urgência
Loucura, violência, exagerado
Estourou a própria mãe, estava embriagado
Mas bem antes da ressaca ele foi julgado
Arrastado pela rua o pobre do elemento
o inevitável linchamento, imaginem só!
Ele ficou bem feio, não tiveram dó

Essa estrofe começa com uma descrição cotidiana dos bairros periféricos. Quente (planejamento urbano nem nos sonhos mais distantes), serviços públicos péssimos (sem que acarrete punição ou cobrança pela administração pública)
Logo após, outra cena cotidiana: mais um homicídio, agora um bêbado matou a mãe. O julgamento e a sentença costumam ser imediatos: foi linchado pela população.  

Os ricos fazem campanha contra as drogas
E falam sobre o poder destrutivo dela
Por outro lado promovem e ganham muito dinheiro
Com o álcool que é vendido na favela

Álcool é droga? Sim, e muitos crimes decorrem do abuso dessa droga. Como se vê aqui.  

Empapuçado ele sai, vai dar um rolê
Não acredita no que vê, não daquela maneira
crianças, gatos, cachorros disputam palmo a palmo
seu café da manhã na lateral da feira
Molecada sem futuro, eu já consigo ver
Só vão na escola pra comer, apenas nada mais
Como é que vão aprender sem incentivo de alguém
Sem orgulho e sem respeito
Sem saúde e sem paz

Nauseado pela cena bárbara, o personagem procura sair dali. Mas o que vê é igualmente deprimente: pobreza, lixo, pessoas vivendo como porcos num chiqueiro. Fácil traçar como será o futuro: não muito diferente do presente.

Um mano meu tava ganhando um dinheiro
Tinha comprado um carro
Até Rolex tinha!
Foi fuzilado a queima roupa no colégio
Abastecendo a playboyzada de farinha
Ficou famoso, virou notícia
Rendeu dinheiro aos jornais, ham!, cartaz à policia
Vinte anos de idade, alcançou os primeiros lugares
Superstar do notícias populares!

Outro dia, outro crime, outra morte... Agora mataram o traficante que vendia drogas perto de um colégio. Vinha da periferia, seus clientes eram jovens de classe média. Pode ter sido morto por outro traficante, talvez por um policial à paisana, talvez alguém tenha encomendado seu morte, um pai de um aluno que teve problemas sérios em decorrência da droga... Enfim, nunca se saberá.  
O traficante assassinado teve publicidade póstuma e umas linhas sobre si num pasquim embebido em sangue.

Uma semana depois chegou o crack
Gente rica por trás, diretoria
Aqui, periferia, miséria de sobra
Um salário por dia garante a mão-de-obra
A clientela tem grana e compra bem
Tudo em casa, costa quente de sócio
A playboyzada muito louca até os ossos
Vender droga por aqui, grande negócio.
Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim
Quero um futuro melhor, não quero morrer assim,
num necrotério qualquer, um indigente sem nome e sem nada
O homem na estrada

Agora, uma perfeita descrição de como se dá a implantação do tráfico de drogas. Os investidores são ricos, têm contato e poder junto à administração pública: subornará polícia, judiciário, aduanas etc. O planejamento da entrada e da circulação das drogas se dá no “andar de cima”, e eles ficarão com a maior parte dos lucros. Definem os fornecedores e onde a droga será entregue.
A partir daí entra o trabalho braçal, operacional. A distribuição aos pontos de venda, o empacotamento (endolação), os embates com a “concorrência” (outras facções) e as trocas de tiros (com as prisões decorrentes), ficam a cargo dos pobretões.
Quem garante esse cenário trágico? Fome, desemprego e falta de perspectiva. Somando-se a isso: fichas criminais por porte de drogas ou por tráfico. Qualquer pagamento, por mais miserável que seja, garante uma oferta ilimitada de mão de obra para o tráfico.
Como a letra deixa claro: usar crack não é exclusividade de freqüentadores da cracolândia. Não são poucos os usuários de cocaína que se passaram para o crack.
Mas o personagem sabe que o único papel que pode executarnesse comércio é ao lado dos que morrem... e ele não quer isso.

Assaltos na redondeza levantaram suspeitas
logo acusaram favela para variar
E o boato que corre é que esse homem está
Com o seu nome lá na lista dos suspeitos, pregada na parede do bar.

Polícia sem inteligência trabalha assim: alguém denuncia um assalto, procuraram o suspeito que melhor se adéqüe ao papel de criminoso (algum favelado das redondezas). Procuram alguém com alguma passagem é bingo! Já temos um criminoso para a ocasião.
Mas e se não for ele o culpado? Dane-se. É bandido.

A noite chega e o clima estranho no ar
e ele sem desconfiar de nada, vai dormir tranquilamente
mas na calada caguetaram seus antecedentes
como se fosse uma doença incurável
No seu braço a tatuagem, DVC, uma passagem, 157 na lei
No seu lado não tem mais ninguém

Bom, seu nome está na lista. Qual será o passo seguinte? Apreender para averiguação, notificação para prestar esclarecimentos na Delegacia, acareação junto à vítima? Não, bandido bom é bandido morto...
Alguém vai “passar” o “bandido”. Mas é se não tiver sido ele... dane-se!

A Justiça Criminal é implacável
Tiram sua liberdade, família e moral
Mesmo longe do sistema carcerário
Te chamarão para sempre de ex presidiário
Não confio na polícia, raça do caralho.
Se eles me acham baleado na calçada
Chutam minha cara e cospem em mim é
Eu sangraria até a morte
Já era, um abraço!.
Por isso a minha segurança eu mesmo faço

O primeiro verso merece um complemente: implacável com quem não tem como se defender, contra os mais pobres... e só!
Após o cumprimento da pena, o criminoso carregará as conseqüências de um passado indesejado. Não há política de reinserção de ex-presidiários no mercado de trabalho. Portanto a cadeia é um local de recrutamento de mão de obra para futuros crimes.
A parte seguinte traz o famoso relacionamento entre policiais e ex-presidiários. Muitos falam que o relacionamento se dá em bases quase pessoais.

É madrugada, parece estar tudo normal.
Mas esse homem desperta, pressentindo o mal
muito cachorro latindo
Ele acorda ouvindo barulho de carro e passos no quintal
A vizinhança está calada e insegura
Premeditando o final que já conhecem bem
Na madrugada da favela não existem leis
Talvez a lei do silêncio, a lei do cão talvez

Uma coisa nosso personagem não é: ingênuo. Sabe das possibilidades e de como elas podem se dar. Conhece seu ambiente. Sabe que não pode recorrer a ninguém. O inevitável parece iminente.

Vão invadir o seu barraco, é a polícia!
Vieram pra arregaçar, cheios de ódio e malícia
Filhos da puta, comedores de carniça!
Já deram minha sentença e eu nem tava na "treta"
Não são poucos e já vieram muito loucos
Matar na crocodilagem, não vão perder viagem
Quinze caras lá fora, diversos calibres, e eu apenas
Com uma "treze tiros" automática
Sou eu mesmo e eu, meu Deus e o meu orixá
No primeiro barulho, eu vou atirar.
Se eles me pegam, meu filho fica sem ninguém
E o que eles querem: mais um "pretinho" na FEBEM.

A sentença chegou. Será executada. Ele pode se entregar? Não, sabe que será morto de qualquer maneira. A saída é apenas uma: atirar e esperar ser morto. Talvez levar um ou dois consigo. Nada além disso.

Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim
A gente sonha a vida inteira e só acorda no fim
Minha verdade foi outra, não dá mais tempo pra nada
Bang! Bang! Bang!

... a gente só acorda no fim..

"Homem mulato aparentando
Entre vinte e cinco e trinta anos
É encontrado morto na estrada do
M'Boi Mirim sem número
Tudo indica ter sido acerto de contas entre quadrilhas rivais.
Segundo a polícia, a vitima tinha vasta ficha criminal."

E assim ficamos sabendo das notícias...



Rubem L. deF. Auto

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