Embora tenhamos a tentação de nos referirmos ao Brasil como
uma construção que data de 1500, de fato, ao analisarmos diversas invasões por
países não contemplados pelo Tratado de Tordesilhas – franceses e holandeses,
especialmente -, pode-se perceber facilmente que o Brasil foi produto de uma
lenta construção histórica. Por séculos foi uma terra em disputa, quase uma
terra de ninguém. Judeus e protestantes formaram uma frente única contra o papa
e os reis da Espanha e de Portugal.
Na realidade, até o século XVIII a riqueza, na visão europeia,
estava no Oriente. A Ásia era há muitos séculos sede de estruturas geradoras de
riquezas, rotas comerciais e produtos de alto valor agregado. Por sua vez, a
América era muito rústica nesse sentido, era necessário montar uma estrutura
comercial a partir do zero.
Foi marcante o papel do padre Antônio Vieira, que tentou
negociar com os holandeses a troca do nordeste brasileiro, mais Angola e São
Tomé, apenas pelo compromisso dos batavos de respeitarem as colônias
portuguesas no Oriente.
Mas essa desproporção começou a mudar no século XVI, quando
o açúcar do nordeste superou todo o fluxo comercial do Portugal com o Oriente.
Um dos episódios mais marcantes desse embate ocorreu no
nordeste brasileiro e envolveu os decididos holandeses. Essas invasões
ocorreram durante a União das coroas Ibéricas, portanto a responsabilidade por
combater os invasores era dos reis espanhóis, que tardaram a enviar soldados
para combater os batavos. E um dos nomes mais famosos foi o daquele soldados
português, que se bandeou para o lado holandês, e sem quem teriam sido
impossíveis os sucessos iniciais dos invasores: Calabar.
Para entender melhor e contexto, deve-se ter em mente o
ambiente colonial então vigente no Brasil: as condições de vida eram duras e a
liberdade individual era quase inexistente; os impostos eram elevados; as
viagens pelo interior do território eram proibidas; fabricação de tecidos era
vedada; era proibida a abertura de escolas; o comércio com demais nações eram
impensável; a posse de livros também era proibida (exceto a Bíblia, claro).
A única religião possível de ser praticada era o
catolicismo, e um dos poderes mais temidos chamava-se Santa Inquisição.
O que parecia atrair debandados para o lado holandês eram as
promessas de liberdade. Também atraiam, promessas de justiça e de melhores
condições sociais.
Domingos Fernandes Calabar nasceu em Porto Calvo, Alagoas.
Era mameluco, filho de português com índia. Seu apoio aos holandeses foi
fundamental. Nas palavras de Weerdenburgh, seu primeiro superior holandês: “Em
todos esses perigos, estávamos dependendo da fidelidade ou infidelidade de um
negro (eenem Neger)”. Para os holandeses, quem não fosse rigorosamente branco
era classificado como negro.
Apesar de ter estudado em colégio de jesuítas e de ser,
portanto, alfabetizado, conhecia muito bem a região onde habitava,
especialmente os cursos dos rios. Deveria também ter posses, pois recusara
pagamento dos holandeses por ter mudado de lado. Parecia ter menos de 30 anos
de idade.
Calabar foi nomeado sargento-mor e, mais tarde, capitão do
exército holandês.
O principal descontentamento de Calabar com a colonização
portuguesa era de fundo racial. Ser negro, ou mameluco, era motivo para
discriminações mil. E Calabar sabia da tolerância dos holandeses com os índios,
pretos e escravos. Além disso, Calabar sabia que seu conhecimento da geografia
da região era fundamental aos batavos. Seria mais fácil galgar cargos mais
altos, no Exército ou na administração pública.
E sua escolha não pareceu ter sido errada. Afinal, após sua
morte sua esposa teve direito a uma pensão concedida pelo governo holandês.
Os holandeses reinaram no nordeste brasileiro por 24 anos,
de 1630 a 1654. Calabar atuou entre os anos de 1632 e 1635. Entre 1637 e 1644,
a dominação holandesa era incontestável. A colônia inclusive prosperou
sobremaneira sob a administração do conde João Maurício de Nassau-Siegen,
alemão, funcionário da Companhia holandesa das Índias Ocidentais, que implantou
uma espécie de república renascentista no ambiente sufocante da colônia
luso-espanhola.
A liberdade era também uma ferramenta de propaganda
utilizada pelos batavos, que diziam assegurar “liberdade de consciência tanto
para os católicos como para os judeus, desde que prestassem juramento de
lealdade, e o governo garantia que a Holanda não investigaria as suas consciências”.
Nos dois primeiros anos de lutas, os holandeses conquistaram
a soberania no litoral. Controlavam praias e mares, mas o interior, riquíssimos
pois era de onde saía o desejado açúcar, continuava sob o domínios português.
Foi aí que Calabar desequilibrou a balança.
Olinda caiu sob o jugo holandês em 1630. Itamaracá caiu em
1631. Lá, construíram o forte Orange. A resistência portuguesa se aglomerava no
Arraial do Bom Jesus, a 6 quilômetros da praia.
Quando, em abril de 1632, Calabar mudou delado, o equilíbrio relativo
se desfez.
A primeira contribuição de Calabar foi a facilitação da
invasão a Igaraçu. Ele sabia que os prortugueses haviam transportado para lá
grande parte de seus pertences, temendo eventuais saques. Foi uma grande
vitória para o lado dos batavos.
Diante do rápido progresso holandês, Matias de Albuquerque,
comandante do lado português, enviou ordens para matarem Calabar imediatamente.
Apesar das precauções tomadas, seria muito difícil escapar dessa sina.
A tomada de Porto Calvo foi outro episódio possível graças
ao auxílio providencial de Calabar.
Embora o local tenha sido tomado, o quantitativo de tropas
luso-espanhola-italianas era muito superior ao dos holandeses. Em dado momento,
uma pequena tropa holandesa se viu cercada. Entre os homens estava Calabar.
Posto à mercê de El-Rei, foi submetido a um julgamento
relâmpago e enforcado em seguida. Após, seu corpo foi esquartejado. Deve-se
analisar o episódio como uma típica queima de arquivo.
Essa história é bastante lembrada, ainda, por suscitar
discussões acerca de como teria sido a história do Brasil se colonizado pelos
holandeses. Cidadãos da Indonésia, Bornéu e Suriname certamente discordam de
que seríamos ricos e poderosos se Portugal houvesse perdido aquelas batalhas.
O próprio conde Nassau padeceu por falta de apoio da
Companhia das Índias. Não teve seus pedidos por mais colonos (pediu até prisioneiros,
quaisquer pessoas). Também enfrentou problemas e foi demitido por excessos de
despesas durante seu mandato em Pernambuco.
Manuel de Morais, também debandado para o lado holandês, no
entanto apenas após sua prisão em batalha, foi outro “traidor”. Jesuíta
letrado, obteve projeção em Amsterdam, tornando-se amigo íntimo de intelectuais
do país. Chegou a escrever relatórios aconselhando os senhores das 19
Províncias holandesas sobre como lidar com a política colonial a ser implantada
no Brasil.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: Livro “Depois da Glória: Ensaios sobre personalidades
e episódios controversos da história do Brasil”
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