Desde a “descoberta” do Brasil, por mais de cem anos, as
terras ao norte do Brasil, a partir da costa do Ceará, permaneciam
inexploradas. Maranhão, Pará e Amapá, além da foz do rio Amazonas, restavam
abandonados e à disposição de qualquer aventureiro de plantão.
Esse foi o caso de La Ravadiere, Daniel de La Touche. Por muito
pouco seu empreendimento, conhecido como França Equatorial, não foi bem
sucedido.
Após serem expulsos pelos portugueses, os franceses se fixaram
na Guiana e tentaram obter o direito a todas as terras à esquerda do rio
Amazonas. Essa fronteira só foi consolidada após o trabalho espetacular do
barão do Rio Branco, em 1900. A fronteira passou a ser delimitada pelo rio
Oiapoque.
Após 400 anos, São Luís, capital do estado do Maranhão, ainda
lembra o nome de La Ravadiere.
A história de Daniel com o Brasil se iniciou antes da França
Equatorial, quando visitou a região da Guiana e do atual Amapá. Escreveu
relatório no qual explorava as possibilidades econômicas e comerciais daquela
região. As autoridades francesas receberam bem tal relatório, incluindo o rei
Henrique IV.
Ao tomar parte nas guerras tribais que infestavam o norte do
país, Daniel pode conhecer e tomar nota das riquezas naturais e dos hábitos dos
indígenas. Tinha 36 anos na época. Seus bons contatos o auxiliaram a sua nomeação
como “tenente-general das terras da América desde a Amazônia até a ilha de
Trindade”.
Daniel despendeu um ano e meio no Maranhão. Quando vivia seu
melhor momento do projeto, recebeu a notícia de que Henrique IV havia sido
assassinado. Era o ano de 1610 e o ambiente político francês mudou completamente.
Ascendeu ao trono Luís XIII, ainda menino, tutelado pela mão, a rainha Maria de
Médicis.
O rei de cujus era protestante e apoiava o protestante
Daniel em seus intentos. Contudo, Maria era radicalmente católica e, portanto,
nutria certa antipatia por Daniel. Embora confirmasse a carta-patente concedida
por Henrique, não forneceu qualquer apoio financeiro a La Ravadiere.
O objetivo da expedição era a construção de uma colônia na
Ilha Grande do Maranhão, com área aproximada de 50 léguas. O projeto França
Equatorial era protestante, mas a rainha Maria obrigou à aceitação de uma
missão de capuchinhos. A rainha restringiu também a conversão religiosa dos
indígenas à religião católica, o que irritou profundamente Daniel. Por fim, a
rainha exigiu que os protestantes todos retornassem à França, após a
implantação da colônia. Basta lembrar que La Ravadiere era protestante para ter
ideia do impacto dessa ordem no outro lado do Atlântico.
Daniel fez declaração registrada por notário de que
retornaria à França tão logo chegasse seu sucessor, Françoise de Razilly. Foi
uma medida necessária para conter os ânimos dos católicos contra si.
Tantas medidas contra a colônia foram tomadas, que a
experiência conseguiu ser ainda mais efêmera do que a França Antártica de
Villegagnon.
Após instituir o estatuto de leis fundamentais da colônia,
Razilly partiu para Paris em busca de reforços e apoio financeiro. Desembarcou
no Havre em companhia de dois capuchinhos e de índios tupinambás. Levavam à
rainha-regente souvenirs da terra: papagaios, micos etc.
Talvez emocionada pelos presentes, a rainha chegou a
prometer 20 mil escudos para apoiar a missão, mas esse dinheiro nunca foi
fornecido de fato.
Era importante que a França Equatorial permanecesse um projeto
privado, sem participação da coroa francesa, pois havia um Tratado de 1598,
firmado com a Espanha, que dispunha que disputas suscitadas por privados não teriam
interferência estatal. A rainha usava esse Tratado para manter um comportamento
dúbio e não despertar conflitos com a Espanha. Eram tempos de União Ibérica
quando os assuntos referentes a Portugal eram decididos em Madrid, por um
Conselho especial.
O novo governador-geral do Brasil, Gaspar de Souza, chegou a
Pernambuco em 1613, com a colônia francesa instalada e se desenvolvendo a todo
vapor. O novo enviado tinha uma missão clara: destruir aquela verdadeira provocação!
Gaspar se mudou da Bahia para Olinda, para ficar mais
próximo dos inimigos. Velejando em suas caravelas, os portugueses conseguiram
se aproximar bastante da colônia francesa de São Luís (forte Saint Louis).
Percebendo a movimentação, os franceses fortaleceram suas
defesas e solicitaram reforços à metrópole. Aproximava-se a batalha de Guaxeduba,
decisiva nesse episódio.
Muito habilmente, os franceses conseguiram cercar totalmente
as embarcações portuguesas – que já haviam enfrentado até motins e fuga de
marinheiros. Em 19 de novembro, os lusos se viram presos numa baía cerrada por
navios franceses. Sete navios e 46 canoas, com 300 franceses e 2 mil índios
tupinambás bloquearam a passagem das caravelas. Daniel estava no comando.
Pouco antes dos portugueses iniciarem um ataque desesperado
aos franceses, ouviu-se um toque de tambor e surgiu um enviado de La Ravadiere,
com uma carta de ultimatum em mãos. Era concedido um prazo de 4 horas para que
se os portugueses se rendessem.
Nesse momento, os franceses cometeram um erro gravíssimo e
indesculpável. Os comandantes abaixo de La Ravadiere permitiram que seus homens
relaxassem, deitassem, descansassem, baixassem suas guardas. Muitos aproveitaram
para comer, tirar uma soneca enquanto o prazo de quatro horas expirava.
O comandante português, Jerônimo de Albuquerque, percebeu a
oportunidade que se lhe avizinhava. Enviou mensagem secreta a seus comandantes
confirmando as ordens dadas antes do tal ultimatum. Cerca de uma hora mais
tarde, os lusos realizaram um ataque surpresa, aproveitando-se da distração dos
franceses. Foi uma verdadeira matança. Os índios do lado português eram
comandados pelo capitão Madeira. Também fizeram um estrago completo do lado
francês. Muitos soldados franceses foram mortos dormindo ou ainda sonolentos.
La Ravadiere acompanhava tudo de longe, a bordo de sua nau
capitânia.
Apesar do ataque fulminante, o forte Saint Louis continuava
intacto e os porugueses não apreciam capazes de destruí-lo.
Embora os portugueses ainda estivessem bloqueados na baía, o
ânimo francês se reduzia rapidamente, e seus homens passaram a desconfiar de
uma possível vitória. Daniel parecia estar deprimido após ver uma reversão tão
drástica de sua posição de clara superioridade.
La Ravadiere foi convidado a visitar o campo luso e lá foi
recebido com pompas e honras. Ofereceu o serviço de seus médicos para tratar
dos feridos lusos e brasileiros. Diogo de Campos Moreno, a contraparte lusa,
visitou o campo francês, tendo recebido as mesmas homenagens.
Os encontros entre os inimigos levantaram a possibilidade de
acordo, mas os espanhóis não tinham a mesma intenção. O rei espanhol Felipe III
ordenou que o governador-geral expulsasse imediatamente os franceses. O
capitão-mor Alexandre de Moura foi enviado com esse fim. A rainha francesa,
mais uma vez, esquivou-se e evitou qualquer atitude que pudesse irritar a
Espanha.
Isaac de Razilly, ainda na França, despendeu recursos do próprio
bolso para contra-atacar os lusos. No entanto, quando a rendição dos franceses
em Saint Louis já havia sido anunciada.
Um detalhe interessante: o rei espanhol resolveu fazer algumas
concessões aos franceses. No entanto essas instruções não foram seguidas pelo
governador-geral. Uma das medidas do rei foi o envio de 20 mil cruzados... que
não foram entregues aos franceses. Aparentemente Alexandre de Moura guardou o
dinheiro para si...
Em Olinda, La Ravadiere foi recebido por Gaspar de Souza com
palavras amabilíssimas. Rebeu do governador 2 mil cruzados e várias outras
ofertas (provavelmente caixas de açúcar, cujos impostos foram isentados).
Esses fatos levantam a suspeita de que Daniel de La Touche,
na verdade, foi subornado pelos portugueses para desistir de seu intento.
Aparentemente, Daniel terminou sua
aventura satisfeito.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: Livro “Depois da Glória: Ensaios sobre personalidades
e episódios controversos da história do Brasil.”
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