O Sudão africano era chamado pelos árabes de Bilad al-Sudan,
ou “terra dos negros”. Foi ali que provavelmente nasceu a deplorável
instituição da escravidão, a partir do estreitamento do contato entre
populações nômades do deserto do Saara e os povos sedentários da região do
Sahel.
Não se pode dizer que não havia qualquer tipo de escravidão
até então, pois já havia uma espécie de escravidão de linhagem.
O camelo foi introduzido no deserto do Saara entre os
séculos I e III. A partir de então as tribos berberes iniciam sua expansão, que
incluiu as regiões dos oásis e a criação de diversas rotas comerciais.
Eram comuns ataques de nômades (inclusive os sedentários que
habitavam os oásis) a povoados limítrofes, o que levou diversos desses povos a
serem cativos dos berberes.
O estreitamento do contato entre povos das savanas -
cultivadores da terra, criadores de animais, pescadores – e tribos nômades –
pastores e caçadores – levou ao nascimento de relações comerciais, que trazia o
gene da escravidão dentro de si desde o berço – porém de maneira incidental, não
estava ainda na base da estrutura de produção e comércio.
As relações sociais de ambos os povos era baseada nas
relações étnicas e de parentesco, conformando uma estrutura social comunitária,
portanto ligada à linhagem do indivíduo – não existiam classes em conflito.
Portanto, mesmo que um indivíduo fosse reduzido à condição de escravo, ele não faria
parte de uma classe de escravos; este exerceria as mesmas tarefas de qualquer
outro indivíduo – até mesmo porque os escravos eram muito pouco numerosos.
Os escravos poderiam futuramente vir a fazer parte do núcleo
familiar, o que poderia ser desejado pelo próprio clã familiar, pois ser
numerosos era precondição para aumentar o poder e a influência.
Por seu turno, haviam os escravos vistos como meras
mercadorias. Estavam restritos a exercerem as funções para as quais foi designado.
Este era o destino dos escravos adquiridos por tribos berberes, ou mesmo
daqueles que faziam parte de tribos conquistadas, caso fossem reduzidos à condição
de escravo.
Aos poucos, tarefas muito estafantes foram sendo exercidas
majoritariamento por escravos, como o trabalho de extração de minérios: o ferro
era conhecido e muito usado no Sudão, há muito tempo; o sal vinha de minas no
Saara; o ouro vinha de regiões ao sul, e era adquirido delas. Em todos esses
trabalhos a mão de obra escrava se fazia presente.
As relações de conflito eram, até certo ponto,
equiilibradas: se, por um lado, os nômades conseguissem prevalecer usando de
sua superioridade militar; por outro, os povos sedentários agrícolas possuíam
uma estrutura social mais sólida, uma cultura mais enraizada, o que obrigou aos
nômades, por diversas vezes, a se adequarem à sociedade que eventualmente conquistassem.
Conforme as relações comerciais se desenvolviam, diversas aldeias
pululavam ao longo das rotas comerciais do deserto. Aos poucos, tornavam-se
importantes centros comerciais, levando o comércio da África negra a outros
continentes. Audagost e Ualata evoluíram para portos caravaneiros relevantes.
Enquanto o comércio e as rotas comerciais tomavam corpo, um
outro “produto” da região se tornava cada vez mais comum: os escravos.
Exportados para o norte da África e para o Oriente Médio, os escravos se
converteram nas mercadorias mais valorizadas no comércio transaariano, ao lado
do sal e do ouro.
Inicialmente eram direcionados para o trabalho nos oásis e
nos canaviais da África mediterrânea, porém, com a expansão dos reinos
muçulmanos, viram sua demanda ampliada para o trabalho nos palácios: fosse no
exército, fosse nos haréns. Serviços domésticos e a lavoura, pouco a pouco,
passaram a demandar quantidades enormes de cativos. Meninos e pré-adolescentes
eram desejados para serem educados militarmente e, futuramente, integrarem as
forças militares.
Aliás essa conformação militar foi batizada de “Força
Palaciana”, e também se trornou comum nos reinos de Gana, Mali e Songai: os
soldados eram geralmente mercenários ou escravos; os oficiais eram membros da
nobreza.
Eunucos eram demandados para as tarefas administrativas,
assim como para montarem guarda nos haréns. Os escravos homens adultos eram os
mais baratos e eram usados nas tarefas mais penosas.
A escravidão no mundo muçulmano não atingia os descendentes
do escravo. Os filhos eram assimilados pela sociedade e uma nova importação de
escravos repunha o contingente cativo. Também não havia uma classe de escravos
conscientes de sua condição: eles atuavam nas mais diversas atividades, tinham
as mais diversas origens, provinham de etnias as mais variadas e normalmente eram
incorporados à sociedade em que passavam a habitar. Além do mais, os escravos
nas sociedades islâmicas não eram necessariamente africanos: eram comuns escravos
vindos da Europa, da Rússia, do Oriente etc.
A condição básica para ser escravo no mundo islâmico eram
não praticar o islamismo: um islâmico não poderia escravizar outro islâmico. Daí
serem capturados nas regiões de fronteira do Islã. Mas as quantidades foram bastante
irrisórias do seu surgimento até o século XV. Deste período até o século XIX o
montante praticamente não se expandiu. Exportavam-se alguns milhares por ano,
porém saídos de regiões muito extensas, provocando quase nenhum impacto local.
Mas é fato que o islamismo, os grandes reinos africanos e a
escravidão se imbricavam a cada dia mais, conformando um novelo reciprocamente auto-alimentado.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Desvendando a história da África”
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