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sexta-feira, 25 de maio de 2018

APARTHEID: A SOMA DE EGOÍSMO ECONÔMICO COM SADISMO SOCIAL


A história do racismo-constitucional, também chamado de apartheid, começa por volta de 1948. Mas a segregação que está em suas bases tem início décadas antes, talvez ainda no século XIX.

A sociedade afrikaaner, que submeteu os africanos nativos, praticava a agricultura, no entanto utilizavam técnicas muito atrasadas e pouco produtivas, o que lhes levou a utilizar a mão de obra africana em condições de escravidão. Para tanto, usaram a ideologia da “superioridade branca” e a própria discriminação racial como ferramentas de dominação.

Por seu turno, os ingleses praticavam um tipo de agricultura bem mais moderna nas províncias do Cabo e de Natal. Nesse ambiente, a escravidão era inaceitável, embora a ascensão social dos trabalhadores negros fosse igualmente impossível, em razão da discriminação social.

Os ventos da mudança surgiram no rastro da exploração das minas de ouro e diamantes, quando os grandes empreendimentos tiveram de contratar mão de obra especializada e bem educada, evidentemente provenientes de famílias brancas, fossem boers empobrecidos após a invasão britânica, fossem europeus procurando melhores condições de vida.

Estes trabalhadores exigiam receber salários compatíveis com aqueles pagos nos grandes centros industriais europeus. Não tardou para que esses trabalhadores brancas se vissem em pólo oposto àquele dos trabalhadores negros, relegados à condição de trabalhadores braçais super-explorados.

O passo seguinte foi tirar-lhes o direito de participação política. A elite branca pariu a Constituição da União Sul-Africana, uma federação que reunia as províncias do Cabo, Natal, Orange, e Transvaal: a população negra foi proibida de votar e de possuir terras nessa região.

Em 1910, África do Sul, Canadá e Austrália foram tornados independentes. Este ano também viu a edição de diversas leis segregacionistas. Em 1913, foi dado mais um passo ambicioso em direção ao Apartheid total: foi editado o Native Labour Act, que urbanizou a realidade escravagista que já existia nas fazendas. O país foi dividido em duas partes bastante desiguais: 7% do território nacional foram reservados aos negros, que representavam 75% da população, em páreas conhecidas como bantustões; 93% do território, que englobavam as terras mais férteis, claro, foram garantidos exclusivamente aos brancos, que correspondiam a apenas 10% da população total. Enquanto os negros tentavam sobreviver com seu minúsculo naco, os brancos praticam agricultura moderna, mecanizada, lucrativa. Caso necessitassem de mão de obra barata, poderiam recorrer à imensa reserva permanente de escravos chamada bantustões.

Em 1923, mais uma lei racista foi editada: o Native Urban Act praticamente proibiu que negros morassem em cidades de maioria branca. Os trabalhadores negros, agora necessariamente assalariados, passaram a ser objeto de controle estatal por meio de ações policiais, foram proibidos de se casarem com brancos, dentre outras medidas discriminatórias. Foi editado ainda o Native Affairs Act, tounou lei o sistema escravagista de trabalho a que os negros estavam submetidos.

Desde 1924, a África do Sul vinha sendo governada por nacionalistas em coalização com o Partido Trabalhista. Esse grupo rompeu com as medidas liberais vigentes e implementaram o protecionismo como estratégia de desenvolvimento nacional. Fizeram quase cessar as transferências de lucros das mineradoras estrangeiras para suas sedes européias e passaram a verter a renda da agricultura em projetos industriais, criando oportunidades profissionais e bons empregos, para os “afro-europeus”, claro.

Esse capitalismo de Estado gerou frutos rapidamente: surgiram siderúrgicas, estradas de ferro, usinas elétricas – falava-se até em milagre econômico.

Mas, veio a Crise de 1929, o preço do ouro despencou, uma crise econômica tomou lugar e a coalizão no poder se desfez. Resultou daí uma maior aceitação do capital internacional, especialmente do britânico, pelos nacionalistas. Daí resultou uma pouquíssima alteração das forças políticas, os afrikaaners se mantiveram no poder e a política racista e segregacionista não arrefeceu.

Em 1948, finalmente, o Apartheid é adotado aberta e legalmente. Os nacionalistas voltaram ao poder, agora sem necessitarem de qualquer aliança.

Agora, a população de origem inglesa mantinha seu poder econômico, enquanto os afrikaaners detinham o poder político – divisão única no mundo. E assim a institucionalização do Apartheid se tonou realidade. A África do Sul agora se identificava como um país europeu na África. Embora totalmente ilógico, o pais do Apartheid era parte do assim chamado “mundo livre”...

Aos poucos, o Estado, liderado pelos afrikaaners, adquiria participação no grande bastião do capital inglês, a indústria da mineração. Era um claro sinal de que os afrikaaners queriam agora somar o poder econômico à sua já proeminência política: certamente procuravam se perenizar no poder.

O poder econômico do Estado se fez presente na fase seguinte do desenvolvimento industrial, quando a política de substituição de importações, que se fez presente nos setores siderúrgico, químico, energético e, não menos importante, armamentos.

Embora já fosse atacado internacionalmente, o período 1958-1966 viu o repugnante ser fortalecido sobremaneira, sob a liderança de Hendrik Frensch Verwoerd. Um dos principais “pensadores’ da política de segregação racial total, fez passar a Lei de Promoção do Autogoverno Banto, que pretendia transformar as reservas precárias de mão de obra negra superexplorada em territórios autônomos, mas ainda submetidos a Pretória. Isto é, seriam Teritórios Autônomos, ou independentes, mas só no nome; na prática, eram apenas colônias negras da metrópole branca, conformando uma espécie de colonialismo intestino. Pior: os bantustões eram oito, enquanto o território branco era apenas um, e maior do que os bantustões somados: era o maquiavélico dividir para conquistar posto em prática.

Não tardou e, em 1971, a ONU condenou o repulsivo Apartheid e exigiu que se adotasse um governo de maioria. Mas o governo racista se mostrava impermeável a idéias democráticas e criou uma constituição para ser adotada nos bantustões independentes, mantendo os negros fora das áreas brancas, mas pertos o suficiente para fornecerem a mão de obra barata, cumprindo assim sua função naquela sociedade.

A maioria dos bantustões foram tornados independentes nos anos 1970, ocasião em que seus moradores foram privados da nacionalidade sul-africana. Não tardou para que o governo organizasse territórios exclusivos para brancos, negros e mestiços.  

Ao fim e ao cabo, surgiu outro obstáculo, quase imprevisível, no caminho dos negros: o Apartheid ganhou novos defensores, estes agora negros, representados pelos líderes locais, submetidos a Pretória mas detentores de grande poder local. O sistema fazia vencedores, ainda que dentre os perdedores, e esses vencedores não queriam a derrocada do sistema que os beneficiava.

Não devemos estudar episódios de grandes injustiças históricas desconsiderando a luta de quem se opôs a elas. O Apartheid teve seus opositores, dentro os quais milhares caíram vitimados por um brutal sistema repressivo.

Em 1912, foi fundado o ANC – African National Congress – primeira organização política de negros sul-africanos. Foi concebido por egressos de escolas de missionários, muitos deles detentores de títulos concedidos por Universidades européias ou norte-americanas, e que optaram por atuarem inicialmente de maneira conciliadora. Pensavam ser possível convencer os afrikaaners (e os “liberais” ingleses que se recusavam a atacar a política racista dos afrikaaners) de que a política discriminatória que perseguiam era um equívoco. Para chamar atenção para suas reivindicações, organizaram uma greve de mais de 40 mil mineiros em 1920.

As décadas seguintes viram outras mobilizações todas de caráter não-violento. Em 1955 emitiram a Freedom Chartes (firmada também por indianos, mulatos, liberais e socialistas) que fazia uma ataque radical ao Apartheid e defendia uma melhor distribuição da riqueza.

As mobilizações sociais se ampliaram: no período da II Guerra Mundial ocorreram mais de 300 greves, sendo de 58 mil trabalhadores negros e de 60 mil brancos. Foram essas ações mais radicais que fizeram surgir lideranças mais aguerridas, como Nelson Mandela e Oliver Tambo.

Dissidentes da ANC criaram o PAC (Pan-Africanist Congress), que realizaou uma manifestação em Sharpeville. A repressão que se seguiu pôs na ilegalidade ANC, PAC e Partido Comunista. A resposta da sociedade foi a desistência da luta conciliadora. O ANC fundou seu braço armado, o mK; o PAC criou seu equivalente, o Poqo.  

Em 1963, Mandela foi preso e condenado à prisão perpétua. Oliver Tambo passou a liderar o movimento a partir do exílio. Naqueles anos, resistir era muito difícil, pois todos os países vizinhos eram liderados por simpatizantes dos afrikaaners. Além disso, o capital internacional não parava de investir no país, atraído pela mão de obra barata.

A abertura de vagas de trabalho e a miséria dos bantustões levavam à emigração de trabalhadores rurais negros em direção às cidades. Eram atraídos especialmente os mulatos, esperançosos de conseguirem se integrar à sociedade branca. Isso, sem dúvidas, enfraquecia a luta contra o Apartheid.

Em 1976, uma nova tragédia ocorreu: mais e 600 pessoas foram massacrados numa manifestação em Soweto, o famoso Levante do Soweto, localizado no subúrbio de Johannesburgo. O que diferenciou esse episódio de outros tão trágicos quanto foi a proximidade dos bairros brancos: pela primeira vez, a minoria branca pode assistir com seus próprios olhos o que significava o problema que os negros enfrentavam.

A política econômica do Partido Nacionalista, substituição de importações e protecionismo, financiada pelas exportações de ouro e de produtos agrícolas, gerou resultados expressivos. A África do Sul garantiu sua entrada no clube das 10 nações mais ricas do mundo e o setor industrial já era o mais importante do país. A autosuficiência perseguida agora era uma ferramenta para superar as sanções internacionais contra o país por sua política racista oficial.

Mas logo ficou evidente que isso não seria possível: o setor industrial era forte, mas dependia da importação de bens de capital; além disso, grande parte da indústria se concentrava nos setores de armas e de combustíveis. Portanto o país ainda era muito dependente do resto do mundo; um fechamento internacional abalaria muito a economia nacional.

E foi justamente o que ocorreu nos estertores daquela política racista. Crises social e política se acumularam durante o período liderado por Botha, muito em conseqüência do isolamento econômico a que o país foi relegado. Após o período de crescimento acelerado dos anos 1950, uma crise acometeu o país nas décadas de 1970 e 1980. Enquanto o país continuava a importar, suas exportações despencaram, trazendo a crise da Balança de Pagamentos. Além disso, os índices de investimento despencaram no final dos anos 1970.

Os anos 1980 viram o salto do custo do crédito internacional; políticas contracionistas se seguiram, objetivando equilibrar a Balança de Pagamentos; o resultado foi uma crise econômica ainda pior. Para piorar, o governo não reduzia seus gastos com segurança, necessárias para manter o Apartheid.

Na década de 1980 houve uma desvalorização do preço internacional do ouro, um dos principais produtos de exportação do país – isso levou à desvaloriazação do rand, a moeda local. Além disso, Angola, Moçambique e Zimbábue passavam para as mãos de governos absolutamente antipáticos à África do Sul racista, aumentando o isolamento do país.

Ainda, uma crise de crédito se abateu sobe o país, quando o país declarou moratória dos juros de suas dívidas em 1985. Isso estancou a concessão de qualquer crédito, a recessão se instalou em 1989 e só foi amenizada em 1993.

O Apartheid desmoronava: em 1985 foram extintas as leis que proibiam casamentos interraciais; um mês depois, foi revogada a leis que impedia pessoas de raças diferentes se filiarem ao mesmo partido. Em 1986, caíram as leis que restringiam o trânsito de negros em áreas reservadas aos brancos; no mesmo ano, revogaram-se as leis de passaporte, voltando os negros a terem nacionalidade sul-africana.

O governo Botha passou a perseguir agora apenas a manutenção do poder político, ainda que isso significasse fazer concessões aos “colored”.

A incorporação dos negros no mercado de trabalho também se acelerou, embora sempre tivesse existido, mesmo nos anos de apogeu do Apartheid. Em 1960, os negros eram 23% dos profissionais técnicos, 9% dos gerentes e administradores, 6% dos empregados em escritórios e 18% dos profissionais de vendas. Em 1980, eram 31%, 4%, 25% e 40% respectivamente – ou seja, apenas o quantitativo em cargos de gerência se reduziu no período do Apartheid oficial. Até a distribuição de renda melhorou no período – e pelo mesmo motivo.

Assim, surgiu uma classe média negra e que se recusava a negociar a manutenção daquele sistema medieval. Ou seja, agora o sindicalismo era a principal força contra o Apartheid. Mesmo os “líderes” tribais seduzidos pelo poder passaram a ser alvo de revoltas populares. Entre 1984 e 1987, episódios como os de Sharpeville e do Soweto eram constantes.

Embora alguns governos conservadores, EUA de Reagan e Grão-Bretanha de Thatcher à frente, começaram a fazer discursos menos duros contra Pretória, mas a cisão do Partido Nacional, dando origem ao Partido Conservador, criou ainda mais problemas para a manutenção do sistema.

Seguiram-se críticas morais ao Apartheid e pró-direitos humanos vindas de toda parte, sanções internacionais eram decretadas com cada vez mais freqüência, boicotes globais agravavam os problemas internos.

Os conflitos internos cessaram quando o país reconheceu a independência da Namíbia em troca da saída das tropas cubanas da região.

E assim o odioso sistema racista-constitucional chegou ao tão ansiado fim. Mandela foi libertado, elegeu-se presidente, mas o país ainda convive com muitos problemas decorrentes daquele obscuro período.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Desvendando a historia da África”


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