A história do racismo-constitucional, também chamado de
apartheid, começa por volta de 1948. Mas a segregação que está em suas bases
tem início décadas antes, talvez ainda no século XIX.
A sociedade afrikaaner, que submeteu os africanos nativos, praticava
a agricultura, no entanto utilizavam técnicas muito atrasadas e pouco
produtivas, o que lhes levou a utilizar a mão de obra africana em condições de
escravidão. Para tanto, usaram a ideologia da “superioridade branca” e a
própria discriminação racial como ferramentas de dominação.
Por seu turno, os ingleses praticavam um tipo de agricultura
bem mais moderna nas províncias do Cabo e de Natal. Nesse ambiente, a
escravidão era inaceitável, embora a ascensão social dos trabalhadores negros
fosse igualmente impossível, em razão da discriminação social.
Os ventos da mudança surgiram no rastro da exploração das
minas de ouro e diamantes, quando os grandes empreendimentos tiveram de
contratar mão de obra especializada e bem educada, evidentemente provenientes
de famílias brancas, fossem boers empobrecidos após a invasão britânica, fossem
europeus procurando melhores condições de vida.
Estes trabalhadores exigiam receber salários compatíveis com
aqueles pagos nos grandes centros industriais europeus. Não tardou para que
esses trabalhadores brancas se vissem em pólo oposto àquele dos trabalhadores
negros, relegados à condição de trabalhadores braçais super-explorados.
O passo seguinte foi tirar-lhes o direito de participação
política. A elite branca pariu a Constituição da União Sul-Africana, uma
federação que reunia as províncias do Cabo, Natal, Orange, e Transvaal: a
população negra foi proibida de votar e de possuir terras nessa região.
Em 1910, África do Sul, Canadá e Austrália foram tornados
independentes. Este ano também viu a edição de diversas leis segregacionistas.
Em 1913, foi dado mais um passo ambicioso em direção ao Apartheid total: foi
editado o Native Labour Act, que urbanizou a realidade escravagista que já
existia nas fazendas. O país foi dividido em duas partes bastante desiguais: 7%
do território nacional foram reservados aos negros, que representavam 75% da
população, em páreas conhecidas como bantustões; 93% do território, que
englobavam as terras mais férteis, claro, foram garantidos exclusivamente aos
brancos, que correspondiam a apenas 10% da população total. Enquanto os negros
tentavam sobreviver com seu minúsculo naco, os brancos praticam agricultura
moderna, mecanizada, lucrativa. Caso necessitassem de mão de obra barata,
poderiam recorrer à imensa reserva permanente de escravos chamada bantustões.
Em 1923, mais uma lei racista foi editada: o Native Urban
Act praticamente proibiu que negros morassem em cidades de maioria branca. Os
trabalhadores negros, agora necessariamente assalariados, passaram a ser objeto
de controle estatal por meio de ações policiais, foram proibidos de se casarem
com brancos, dentre outras medidas discriminatórias. Foi editado ainda o Native
Affairs Act, tounou lei o sistema escravagista de trabalho a que os negros
estavam submetidos.
Desde 1924, a África do Sul vinha sendo governada por
nacionalistas em coalização com o Partido Trabalhista. Esse grupo rompeu com as
medidas liberais vigentes e implementaram o protecionismo como estratégia de
desenvolvimento nacional. Fizeram quase cessar as transferências de lucros das
mineradoras estrangeiras para suas sedes européias e passaram a verter a renda
da agricultura em projetos industriais, criando oportunidades profissionais e
bons empregos, para os “afro-europeus”, claro.
Esse capitalismo de Estado gerou frutos rapidamente:
surgiram siderúrgicas, estradas de ferro, usinas elétricas – falava-se até em
milagre econômico.
Mas, veio a Crise de 1929, o preço do ouro despencou, uma
crise econômica tomou lugar e a coalizão no poder se desfez. Resultou daí uma
maior aceitação do capital internacional, especialmente do britânico, pelos
nacionalistas. Daí resultou uma pouquíssima alteração das forças políticas, os
afrikaaners se mantiveram no poder e a política racista e segregacionista não
arrefeceu.
Em 1948, finalmente, o Apartheid é adotado aberta e
legalmente. Os nacionalistas voltaram ao poder, agora sem necessitarem de qualquer
aliança.
Agora, a população de origem inglesa mantinha seu poder
econômico, enquanto os afrikaaners detinham o poder político – divisão única no
mundo. E assim a institucionalização do Apartheid se tonou realidade. A África
do Sul agora se identificava como um país europeu na África. Embora totalmente
ilógico, o pais do Apartheid era parte do assim chamado “mundo livre”...
Aos poucos, o Estado, liderado pelos afrikaaners, adquiria
participação no grande bastião do capital inglês, a indústria da mineração. Era
um claro sinal de que os afrikaaners queriam agora somar o poder econômico à sua
já proeminência política: certamente procuravam se perenizar no poder.
O poder econômico do Estado se fez presente na fase seguinte
do desenvolvimento industrial, quando a política de substituição de
importações, que se fez presente nos setores siderúrgico, químico, energético
e, não menos importante, armamentos.
Embora já fosse atacado internacionalmente, o período
1958-1966 viu o repugnante ser fortalecido sobremaneira, sob a liderança de
Hendrik Frensch Verwoerd. Um dos principais “pensadores’ da política de
segregação racial total, fez passar a Lei de Promoção do Autogoverno Banto, que
pretendia transformar as reservas precárias de mão de obra negra superexplorada
em territórios autônomos, mas ainda submetidos a Pretória. Isto é, seriam
Teritórios Autônomos, ou independentes, mas só no nome; na prática, eram apenas
colônias negras da metrópole branca, conformando uma espécie de colonialismo intestino.
Pior: os bantustões eram oito, enquanto o território branco era apenas um, e
maior do que os bantustões somados: era o maquiavélico dividir para conquistar
posto em prática.
Não tardou e, em 1971, a ONU condenou o repulsivo Apartheid
e exigiu que se adotasse um governo de maioria. Mas o governo racista se
mostrava impermeável a idéias democráticas e criou uma constituição para ser
adotada nos bantustões independentes, mantendo os negros fora das áreas
brancas, mas pertos o suficiente para fornecerem a mão de obra barata,
cumprindo assim sua função naquela sociedade.
A maioria dos bantustões foram tornados independentes nos
anos 1970, ocasião em que seus moradores foram privados da nacionalidade sul-africana.
Não tardou para que o governo organizasse territórios exclusivos para brancos,
negros e mestiços.
Ao fim e ao cabo, surgiu outro obstáculo, quase
imprevisível, no caminho dos negros: o Apartheid ganhou novos defensores, estes
agora negros, representados pelos líderes locais, submetidos a Pretória mas
detentores de grande poder local. O sistema fazia vencedores, ainda que dentre
os perdedores, e esses vencedores não queriam a derrocada do sistema que os
beneficiava.
Não devemos estudar episódios de grandes injustiças
históricas desconsiderando a luta de quem se opôs a elas. O Apartheid teve seus
opositores, dentro os quais milhares caíram vitimados por um brutal sistema
repressivo.
Em 1912, foi fundado o ANC – African National Congress –
primeira organização política de negros sul-africanos. Foi concebido por
egressos de escolas de missionários, muitos deles detentores de títulos
concedidos por Universidades européias ou norte-americanas, e que optaram por
atuarem inicialmente de maneira conciliadora. Pensavam ser possível convencer
os afrikaaners (e os “liberais” ingleses que se recusavam a atacar a política
racista dos afrikaaners) de que a política discriminatória que perseguiam era
um equívoco. Para chamar atenção para suas reivindicações, organizaram uma
greve de mais de 40 mil mineiros em 1920.
As décadas seguintes viram outras mobilizações todas de
caráter não-violento. Em 1955 emitiram a Freedom Chartes (firmada também por indianos,
mulatos, liberais e socialistas) que fazia uma ataque radical ao Apartheid e
defendia uma melhor distribuição da riqueza.
As mobilizações sociais se ampliaram: no período da II
Guerra Mundial ocorreram mais de 300 greves, sendo de 58 mil trabalhadores
negros e de 60 mil brancos. Foram essas ações mais radicais que fizeram surgir
lideranças mais aguerridas, como Nelson Mandela e Oliver Tambo.
Dissidentes da ANC criaram o PAC (Pan-Africanist Congress),
que realizaou uma manifestação em Sharpeville. A repressão que se seguiu pôs na
ilegalidade ANC, PAC e Partido Comunista. A resposta da sociedade foi a
desistência da luta conciliadora. O ANC fundou seu braço armado, o mK; o PAC
criou seu equivalente, o Poqo.
Em 1963, Mandela foi preso e condenado à prisão perpétua.
Oliver Tambo passou a liderar o movimento a partir do exílio. Naqueles anos,
resistir era muito difícil, pois todos os países vizinhos eram liderados por
simpatizantes dos afrikaaners. Além disso, o capital internacional não parava
de investir no país, atraído pela mão de obra barata.
A abertura de vagas de trabalho e a miséria dos bantustões
levavam à emigração de trabalhadores rurais negros em direção às cidades. Eram
atraídos especialmente os mulatos, esperançosos de conseguirem se integrar à
sociedade branca. Isso, sem dúvidas, enfraquecia a luta contra o Apartheid.
Em 1976, uma nova tragédia ocorreu: mais e 600 pessoas foram
massacrados numa manifestação em Soweto, o famoso Levante do Soweto, localizado
no subúrbio de Johannesburgo. O que diferenciou esse episódio de outros tão
trágicos quanto foi a proximidade dos bairros brancos: pela primeira vez, a
minoria branca pode assistir com seus próprios olhos o que significava o
problema que os negros enfrentavam.
A política econômica do Partido Nacionalista, substituição
de importações e protecionismo, financiada pelas exportações de ouro e de
produtos agrícolas, gerou resultados expressivos. A África do Sul garantiu sua
entrada no clube das 10 nações mais ricas do mundo e o setor industrial já era
o mais importante do país. A autosuficiência perseguida agora era uma
ferramenta para superar as sanções internacionais contra o país por sua
política racista oficial.
Mas logo ficou evidente que isso não seria possível: o setor
industrial era forte, mas dependia da importação de bens de capital; além
disso, grande parte da indústria se concentrava nos setores de armas e de
combustíveis. Portanto o país ainda era muito dependente do resto do mundo; um
fechamento internacional abalaria muito a economia nacional.
E foi justamente o que ocorreu nos estertores daquela
política racista. Crises social e política se acumularam durante o período
liderado por Botha, muito em conseqüência do isolamento econômico a que o país
foi relegado. Após o período de crescimento acelerado dos anos 1950, uma crise
acometeu o país nas décadas de 1970 e 1980. Enquanto o país continuava a
importar, suas exportações despencaram, trazendo a crise da Balança de
Pagamentos. Além disso, os índices de investimento despencaram no final dos
anos 1970.
Os anos 1980 viram o salto do custo do crédito
internacional; políticas contracionistas se seguiram, objetivando equilibrar a
Balança de Pagamentos; o resultado foi uma crise econômica ainda pior. Para
piorar, o governo não reduzia seus gastos com segurança, necessárias para
manter o Apartheid.
Na década de 1980 houve uma desvalorização do preço internacional
do ouro, um dos principais produtos de exportação do país – isso levou à
desvaloriazação do rand, a moeda local. Além disso, Angola, Moçambique e
Zimbábue passavam para as mãos de governos absolutamente antipáticos à África
do Sul racista, aumentando o isolamento do país.
Ainda, uma crise de crédito se abateu sobe o país, quando o
país declarou moratória dos juros de suas dívidas em 1985. Isso estancou a
concessão de qualquer crédito, a recessão se instalou em 1989 e só foi
amenizada em 1993.
O Apartheid desmoronava: em 1985 foram extintas as leis que
proibiam casamentos interraciais; um mês depois, foi revogada a leis que
impedia pessoas de raças diferentes se filiarem ao mesmo partido. Em 1986,
caíram as leis que restringiam o trânsito de negros em áreas reservadas aos
brancos; no mesmo ano, revogaram-se as leis de passaporte, voltando os negros a
terem nacionalidade sul-africana.
O governo Botha passou a perseguir agora apenas a manutenção
do poder político, ainda que isso significasse fazer concessões aos “colored”.
A incorporação dos negros no mercado de trabalho também se
acelerou, embora sempre tivesse existido, mesmo nos anos de apogeu do
Apartheid. Em 1960, os negros eram 23% dos profissionais técnicos, 9% dos gerentes
e administradores, 6% dos empregados em escritórios e 18% dos profissionais de
vendas. Em 1980, eram 31%, 4%, 25% e 40% respectivamente – ou seja, apenas o quantitativo
em cargos de gerência se reduziu no período do Apartheid oficial. Até a
distribuição de renda melhorou no período – e pelo mesmo motivo.
Assim, surgiu uma classe média negra e que se recusava a
negociar a manutenção daquele sistema medieval. Ou seja, agora o sindicalismo
era a principal força contra o Apartheid. Mesmo os “líderes” tribais seduzidos
pelo poder passaram a ser alvo de revoltas populares. Entre 1984 e 1987,
episódios como os de Sharpeville e do Soweto eram constantes.
Embora alguns governos conservadores, EUA de Reagan e Grão-Bretanha
de Thatcher à frente, começaram a fazer discursos menos duros contra Pretória,
mas a cisão do Partido Nacional, dando origem ao Partido Conservador, criou
ainda mais problemas para a manutenção do sistema.
Seguiram-se críticas morais ao Apartheid e pró-direitos
humanos vindas de toda parte, sanções internacionais eram decretadas com cada
vez mais freqüência, boicotes globais agravavam os problemas internos.
Os conflitos internos cessaram quando o país reconheceu a
independência da Namíbia em troca da saída das tropas cubanas da região.
E assim o odioso sistema racista-constitucional chegou ao
tão ansiado fim. Mandela foi libertado, elegeu-se presidente, mas o país ainda
convive com muitos problemas decorrentes daquele obscuro período.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Desvendando a historia da África”