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terça-feira, 29 de maio de 2018

A DIÁSPORA AFRICANA E OS BRASILEIROS NA ÁFRICA


O termo diáspora, ou dispersão, dos africanos pela Europa, Ásia e América é um fenômeno observado entre os séculos XV a XIX. Calcula-se que entre 5 e 10 milhões de africanos tenham sido descolados compulsoriamente através do Atlântico nesse período – o que representa aproximadamente 100 milhões a menos de africanos no seu continente atualmente, se considerarmos os descendentes que eles não tiveram.

Anteriormente, os africanos já estavam presentes em todo o mundo – como soldados nas Legiões romanas, ou lavradores na Ásia, ou estivadores na China, ou estivadores e marinheiros em embarcações no Oceano Índico, ou como trabalhadores domésticos, ourives ou cortesãs no Oriente Médio -, durante a Idade Média européia produziram-se mais mercadorias manufaturadas na África do que na Europa; além disso, as maiores cidades e centros comerciais e de finanças do Ocidente estavam localizados na África, no mesmo período.

Mas o tráfico internacional de pessoas, cuja origem estava na África, desestruturou toda a base civilizacional sobre a qual se sustentavam reinos e impérios, que vinham seguindo seu curso histórico desde tempos imemoriais.

A venda de inimigos ou desafetos na condição de escravos a europeus estabelecidos em fortes localizados nas franjas do continente privou nações inteiras de suas pessoas mais valiosas: jovens, saudáveis e férteis, que contribuíram compulsoriamente para o desenvolvimento de doutras sociedades que não as suas. Pior do que isso: aquele comércio desumano, alçado a uma escala inédita, levou ao acúmulo de riquezas na Europa, o que viabilizou o processo de industrialização nas metrópoles, especialmente na Inglaterra.

Esse processo de desenraizamento de africanos se modificou bastante no século XIX, quando o progresso técnico europeu permitiu o desenvolvimento de ferramentais que permitiam dominar o próprio continente africano, sem intermediários e em sua própria casa.

A despeito de todas as conseqüências inomináveis e cruéis derivadas do processo acima descrito, houve uma aproximação cultural entre africanos e o resto do mundo, por meio do qual pessoas, culturas, tecnologias e conhecimentos circularam e modificaram a todos.

Entre 1830 e 1870, cerca de 8 mil negros livres, a maioria dos quais africano, retornaram à África a partir do Brasil. Eram chamados de retornados em casa, mas no seu continente originários, ou originário de seus antepassados, eram conhecidos como brasileiros – ou recebiam o nome correspondente na língua local, como agudas, amaros, ta-bom etc.

Estabelecidos em regiões litorâneas, usavam o conhecimento que trouxeram consigo: falavam português, praticavam o catolicismo, tinham hábitos e costumes muito mais próximos dos brasileiros do que dos africanos com quem se relacionavam, como as roupas que vestiam, a culinária que praticavam, os folclores que conheciam, a arquitetura de suas casas.

Evidentemente o processo de aquisição cultural continuou na África, onde aprenderam tecnologias, conhecimentos e línguas que até então não conheciam. Mas o ferramental que traziam poderia ter sido adquirido a partir de portos os mais diversos.

Este fato fica patente na história de Mohammah Gardo Baquaqua. Tornado escravo na África Ocidental, por volta de 1840, Baquaqua desembarcou no Recife em 1845; após, foi levado ao Rio de Janeiro; depois, ao Rio Grande do Sul. Algum tempo depois, foi embarcado num navio que transportava café para os Estados Unidos, ainda como escravo. Depois, foi levado para o Haiti. Dali, retornou aos EUA, mais especificamente a NY. Após permanecer ali por anos, foi para o Canadá.

Ali aprendeu inglês e escraveu sua autobiografia, publicada em 1854. Seus últimos relatos davam conta de que estava em Liverpool, em 1857; demonstrava uma imensa vontade de retornar a sua África natal, mas não se sabe se ele conseguiu esse feito, pois as pistas sobre sua vida se perderam a partir destes anos.

O final do processo da diáspora negra terminou com a criação de uma cultura que une os negros de todo o mundo, batizada de Pan-Africanismo. Entre os dias 12 e 15 de junho de 2006 se realizou em Salvador a II CIAD – Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora – cujo tema foi “A diáspora e o renascimento africano”. Nada mais apropriado para o país com o maior número de negros do mundo, fora da África.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Rebeliões no Brasil Colônia”

   

segunda-feira, 28 de maio de 2018

PORTUGAL, ANGOLA E O PÃO DE AÇÚCAR DE LUANDA


A chegada dos portugueses no território da atual Angola se deu em 1482, sob o comando do capitão Diogo Cão. Testemunharam esses portugueses aglomerações humanas fortemente estruturadas em reinos, como e reino do Congo e diversos outros, seus tributários, como o Reino de Lunda. Mais ao sul existiam diversas tribos de bosquímanos, que desconheciam a agricultura e o pastoreio.

Os reinos do Congo e de Luna eram os principais econômica e socialmente, praticavam a modo produção escravagista, segundo o qual os escravos eram de propriedade da aristocracia e dos chefes administrativos das províncias. Os principais trabalhos eram executados por escravos.

As relações iniciais entre portugueses e autoridades locais foram pacíficas, missionários introduziram o cristianismo, comerciantes transformaram Luanda numa importante praça de comércio internacional. Essa seria a realidade das primeiras cinco décadas de relacionamento.

Foi a partir do mandato do governador Paulo Dias de Novais que se iniciaram as investidas militares contra Angola. Entre 1560 e 1574 tomou lugar uma ocupação militar que chegou a vitimar o próprio governador, capturado e feito escravo pelo rei Ngola Kiluanje, do reino do Ndongo, por seis anos.

O cativeiro de Novais terminou quando ele e um embaixador local foram enviados a Portugal, levando um pedido de ajuda de Ngola ao rei português em sua luta contra os reinos africanos vizinhos ao seu. Em troca, comprometia-se a realizar comércio pacífico com Portugal. Assim, em 1575, Novais retorna a Luanda, constrói uma igreja e começa a povoação portuguesa em Angola.

Após serem expulsos de Pernambuco, os holandeses se lançam sobre Angola, em sua luta para tomar um naco do império português. Por sete anos, de 1641 a 1648, os batavos controlaram a maior parte da Angola portuguesa, que a essa altura servia como o principal porto de embarque de escravos para o Brasil. Ao fim do período citado, os holandeses também foram de lá expulsos, viajaram para o sul, seguindo a costa, e então fundaram a colônia do Cabo, embrião da futura África do Sul.

Mas a expulsão dos holandeses de Angola somente seria possível devido à fundamental ajuda brasileira, que compreendia o envio de navios e homens que, em 1648, deixaram o Recife.

Interessante notar que, nessa época, houve uma proto-industrialização do Brasil, que levou à demanda por trabalho escravo qualificado, e este era encontrado nas cortes africanas, mais especificamente os cativos dos reis. Logo os portugueses se voltaram para esses escravos, mandaram-nos para o Brasil e aumentaram bastante os incentivos para que os reinos africanos se engalfinhassem em busca de mais escravos, para comercializar com Portugal, destinados ao Brasil e às demais colônias.

Mas Angola nunca se rendeu totalmente, sendo possível acompanhar diversas rebeliões e movimentos anti-coloniais. Mas um novo capítulo se iniciou em 1822, após a independência do Brasil.

Ficou rapidamente evidente que os brasileiros pretendiam anexar Angola à Federação brasileira, antes que se tornasse independente e no intuito de garantir o fluxo de escravos para o Brasil – além de tornar Angola num mercado cativo para os produtos brasileiros, gerando assim a demanda que permitiria a industrialização do Brasil. Perceba-se que este foi um movimento dos usineiros, não do governo propriamente. E visavam a tirar Portugal do papel de intermediário no comércio entre Brasil e Angola. O método utilizado seria mediante fortalecimento de movimentos rebeldes em Luanda e Benguela contra os lusos.

Havia o interesse dos traficantes de escravos também. Os ingleses fizeram Portugal decretar o fim do tráfico de escravos em 1836. O temor em Portugal foi tamanho que o Brasil assinou um acordo com Portugal pelo qual o primeiro se comprometia a não incorporar colônias do segundo.

Mas o Brasil assinaria em 1850 a extinção do tráfico de escravos. Como resultado, as relações Brasil-Angola entraram em declínio: eliminou-se de um dos principais produtos cambiados e angola passou a país exportador de matérias-primas e de produtos minerais, o que punha aquele país como um dos grandes concorrentes do país nos mercados mundiais.

Aliás, Brasil e Angola praticavam até então um intercâmbio comercial rico, para além do tráfico de escravos. Angola exportava para o Brasil ouro em pó, marfim, óleo de amendoim, cera branca e amarela, azeite de dendê, e outros; o Brasil exportava para Angola aguardentes, açúcar, tabaco, e ainda reexportava produtos europeus e asiáticos, como tecidos, lenços, vinho, manteiga, etc.  

Existiam em Angola, naquela época, algumas facções das classes ricas que nutriam sentimentos um tanto distintos quanto ao futuro da colônia: alguns ricos queriam uma Angola independente, nos moldes do Brasil; outros, queriam a permanência de Angola como colônia portuguesa; e alguns outros, ligados ao comércio com o Brasil, queriam Angola como parte da Federação do Brasil.

Já o povo não queria nada daquilo: protestavam e manifestações sacudiram Luanda e Benguela, locais dos portos mais importantes, entoando gritos anti-Portugal e anti-Brasil. Embora demonstrassem a recusa dos Angolanos a aceitar a invasão estrangeira, esses protestos desuniram o povo contra um inimigo comum, o que levou os portugueses a conquistarem pela primeira vez em séculos todo o território angolano, por volta de 1900.

Durante a primeira parte do século XIX, quando o mundo parecia abraçar a filosofia do liberalismo e do livre-mercado, Angola era um centro de comércio relativamente aberto, negociando com Portugal, Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica, dentre outros. Procuravam ouro, marfim e escravos.

Tudo mudou novamente quando o acirramento das disputas comerciais, ao lado de uma crise econômica global provocada por excesso de produção, levou ao imperialismo nas metrópoles européias. Por volta de 1884, quase todo o continente estava tomada pelas potências da época. Os conflitos decorrentes dessa invasão do continente levaram à Conferência de Berlim. Ali se acordou a partilha da África.

Uma das resoluções da Conferência definia que somente poderia ter colônia quem a ocupasse militarmente; deveriam-se respeitar os acordos firmados com soberanos africanos; a escravidão deveria ser abolida; os nativos deveriam ser civilizados.

Em 1940, a população em Angola era de 3.738.010 pessoas; em 1950, esse número já era de 4.145.184 habitantes. Este aumento de 11% em apenas 10 anos refletia o influxo incessante de brancos, cuja imigração era incentivada pelo governo português. A década seguinte veria o fortalecimento e, em alguns casos, armamento das lutas anti-coloniais.

Em 1953, surge o primeiro partido político nacionalista de angola, o PLUA – Partido da uta Unida dos Africanos de Angola. Alguns dirigentes do PLUA fundaram o MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola, de orientação marxista. Também surgiram em sequência o MINA – Movimento para Independência Nacional de Angola, a UPNA – União das Populações de Angola, e muitas outras.  
Após, surgiram as forças de libertação propriamente ditas, armadas e militarizadas. Foi o caso da FNLA – Frente Nacional para a Libertação de Angola, surgida em 1962, e da UNITA – União Nacional para Independência Total de Angola. Esta última era liderada por Jonas Savimbi, apoiada por EUA e África do Sul, e de fundamentação ideológica capitalista.

Em 4 de fevereiro de 1961, diversas cadeias de Luanda foram atacadas por membros do MPLA, que libertaram vários presos políticos. Foi dada a largada na corrida pela independência nacional. Mas o grande obstáculo eram as muitas riquezas do país – como minas de metais valiosos e jazidas de petróleo – que opunham grupos locais e interesses transnacionais.

O MPLA era apoiado e financiado pela URSS, Cuba e demais membros do Pacto de Varsóvia. A FNLA recebia apoio estadunidense e do Zaire (atual República Democrática do Congo). A UNITa era financiada pela África do Sul do apartheid e pelos EUA.

Apesar desses conflitos, a economia de Angola crescia surpreendentemente: entre 1963 e 1973, crescia 7%, levando a rede de supermercados Pão de Açúcar a inaugurar uma das suas maiores lojas em Luanda, capital de Angola.

O fim da ditadura em Portugal (Salazar e Caetano), após a Revolução dos Cravos, levou ao fim tardio do império português após o reconhecimento da independência de Angola. A transição foi regulada pelo Acordo de Alvor, de 1975, firmado por membros do MPLA, FNLA e UNITA, além de membros do governo português, que transfeririam o poder formalmente m 11 de novembro de 1975, dia da independência. Mas um Acordo estabelecido entre partes tão distintas estava fadado a não ter vida duradoura.

O MPLA, mais forte dos movimentos populares, sentiu-se enfraquecido pelo Acordo, saiu da aliança e, no dia da transferência do poder, declarou unilateralmente a independência de Angola. O Brasil foi o primeiro país do mundo a reconhecer o novo país e a legitimidade do governo do MPLA. Sem dúvidas o governo brasileiro de Geisel não se sentia confortável com um novo governo angolano tão próximo da URSS e de Cuba, numa região geopoliticamente sensível – foco de crescentes interesses brasileiros, econômicos e geopolíticos, mas prejudicados pelo caráter autoritário do regime, o que gerou muitas resistências e repúdio ao Brasil naquela região. Optou-se por apoiar o MPLA, por ser o mais forte dos movimentos independentistas, sob a liderança de Agostinho Neto. Além do mais, sua forte influência religiosa continha um pouco o discurso comunista – que é fundamentalmente ateu.

A independência de Angola viu se iniciar, na sequência, sua trágica guerra civil. De 1975 a 1991, as contradições entre os projetos de governo dos diversos grupos pela libertação, como a UNITA, que abraçou a causa do capitalismo, apoiada pelos EUA e pela África do Sul do apartheid, em oposição aos marxistas do MPLA, levou o país a uma dos episódios mais sangrentos que o mundo veria em breve. Em 1988, quando a Guerra Fria acabava, a ONU se via forçada a enviar uma missão de paz no país.

Forma-se uma “troika” de observadores, composta por EUA, Rússia e Portugal, os principais players com interesses de longa data em Angola, para acompanhar as negociações de paz.

As negociações de paz, plasmadas na forma dos Acordos de NY, firmados na sede da ONU, deram origem à UNAVEM I, missão da ONU para fiscalizar o cumprimento do Acordo.

As negociações de paz entre MPLA e UNITA ensejaram os Acordos de Bicesse, assinado em Portugal e à criação da UNAVEM II. Firmaram este documento: José Eduardo dos Santos, sucessor de Agostinho Neto na presidência de Angola; Jonas Malheiro Savimbi, da UNITA; Cavaco Silva, primeiro-ministro de Portugal; Peres Cuellar, Secretário-Geral da ONU; James Baker, secretário de política exterior dos EUA; Alexandre Brassmertnykh, sua contraparte russa; Joweri Musevini, presidente da OUA, Organização da Unidade Africana. O principal acordo foi sobre a realização de eleições presidenciais em 1992, das quais a UNITA participaria como partido, com candidato.    

As eleições ocorreram, mas o resultado não foi o pretendido: a UNITA não aceitou o resultado das urnas, apesar da garantia dada pela ONU de que o pleito foi legítimo – aliás, os únicos casos de fraude ocorreram nas áreas dominadas pela UNITA. O resultado foi: MPLA, obteve 49,57% dos votos; a UNITA obteve 40,07% - portanto deveria haver um segundo turno, mas a UNITA abandonou a disputa presidencial antes disso. Seguiram-se confrontos armados em Luanda, que duraram uma semana, deixaram mais de mil mortos e terminaram com a expulsão da UNITA de Luanda. O MPLA agora inaugurava um mandato legítimo, consagrado nas urnas, enquanto a UNITA dava início à segunda guerra civil angola, que se estenderia até 2002.

Nesse meio tempo, com as mudanças drásticas da geopolítica, o caráter marxista do governo de Angola foi sendo deixado de lado, enquanto se adotava a economia de mercado e o pluripartidarismo. O discurso pró-mercado da UNITA já não reverberava tanto. Os EUA reconheceram a legitimidade do governo angolano em 1993, e isso deixou a UNITA sujeita a sanções aplicadas pela ONU.

Em 20 de novembro de 1994, ocorre a assinatura do Protocolo de Lusaka e a subseqüente criação da UNAVEM III – mas com a ausência de Jonas Savimbi. Aliás, a UNITA não ajudou em qualquer momento, nem com a elaboração de um governo de unidade.

Em 30 de junho de 1997 a UNAVEM III é extinta e substituída pela MONUA, uma missão de observação. Durante essa missão, um fato trágico ocorreu: dois aviões a serviço da ONU foram abatidos quando sobrevoavam Angola, na área dominada pela UNITA. Mas já em 1999 a missão foi declarada desnecessária pelo governo de Angola, restando apenas um escritório da ONU no país. Em 2002, Jonas Savimbi foi morto em combate, o caminho estava aberto para as negociações de paz definitivas.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Desvendando a história da África”


sexta-feira, 25 de maio de 2018

APARTHEID: A SOMA DE EGOÍSMO ECONÔMICO COM SADISMO SOCIAL


A história do racismo-constitucional, também chamado de apartheid, começa por volta de 1948. Mas a segregação que está em suas bases tem início décadas antes, talvez ainda no século XIX.

A sociedade afrikaaner, que submeteu os africanos nativos, praticava a agricultura, no entanto utilizavam técnicas muito atrasadas e pouco produtivas, o que lhes levou a utilizar a mão de obra africana em condições de escravidão. Para tanto, usaram a ideologia da “superioridade branca” e a própria discriminação racial como ferramentas de dominação.

Por seu turno, os ingleses praticavam um tipo de agricultura bem mais moderna nas províncias do Cabo e de Natal. Nesse ambiente, a escravidão era inaceitável, embora a ascensão social dos trabalhadores negros fosse igualmente impossível, em razão da discriminação social.

Os ventos da mudança surgiram no rastro da exploração das minas de ouro e diamantes, quando os grandes empreendimentos tiveram de contratar mão de obra especializada e bem educada, evidentemente provenientes de famílias brancas, fossem boers empobrecidos após a invasão britânica, fossem europeus procurando melhores condições de vida.

Estes trabalhadores exigiam receber salários compatíveis com aqueles pagos nos grandes centros industriais europeus. Não tardou para que esses trabalhadores brancas se vissem em pólo oposto àquele dos trabalhadores negros, relegados à condição de trabalhadores braçais super-explorados.

O passo seguinte foi tirar-lhes o direito de participação política. A elite branca pariu a Constituição da União Sul-Africana, uma federação que reunia as províncias do Cabo, Natal, Orange, e Transvaal: a população negra foi proibida de votar e de possuir terras nessa região.

Em 1910, África do Sul, Canadá e Austrália foram tornados independentes. Este ano também viu a edição de diversas leis segregacionistas. Em 1913, foi dado mais um passo ambicioso em direção ao Apartheid total: foi editado o Native Labour Act, que urbanizou a realidade escravagista que já existia nas fazendas. O país foi dividido em duas partes bastante desiguais: 7% do território nacional foram reservados aos negros, que representavam 75% da população, em páreas conhecidas como bantustões; 93% do território, que englobavam as terras mais férteis, claro, foram garantidos exclusivamente aos brancos, que correspondiam a apenas 10% da população total. Enquanto os negros tentavam sobreviver com seu minúsculo naco, os brancos praticam agricultura moderna, mecanizada, lucrativa. Caso necessitassem de mão de obra barata, poderiam recorrer à imensa reserva permanente de escravos chamada bantustões.

Em 1923, mais uma lei racista foi editada: o Native Urban Act praticamente proibiu que negros morassem em cidades de maioria branca. Os trabalhadores negros, agora necessariamente assalariados, passaram a ser objeto de controle estatal por meio de ações policiais, foram proibidos de se casarem com brancos, dentre outras medidas discriminatórias. Foi editado ainda o Native Affairs Act, tounou lei o sistema escravagista de trabalho a que os negros estavam submetidos.

Desde 1924, a África do Sul vinha sendo governada por nacionalistas em coalização com o Partido Trabalhista. Esse grupo rompeu com as medidas liberais vigentes e implementaram o protecionismo como estratégia de desenvolvimento nacional. Fizeram quase cessar as transferências de lucros das mineradoras estrangeiras para suas sedes européias e passaram a verter a renda da agricultura em projetos industriais, criando oportunidades profissionais e bons empregos, para os “afro-europeus”, claro.

Esse capitalismo de Estado gerou frutos rapidamente: surgiram siderúrgicas, estradas de ferro, usinas elétricas – falava-se até em milagre econômico.

Mas, veio a Crise de 1929, o preço do ouro despencou, uma crise econômica tomou lugar e a coalizão no poder se desfez. Resultou daí uma maior aceitação do capital internacional, especialmente do britânico, pelos nacionalistas. Daí resultou uma pouquíssima alteração das forças políticas, os afrikaaners se mantiveram no poder e a política racista e segregacionista não arrefeceu.

Em 1948, finalmente, o Apartheid é adotado aberta e legalmente. Os nacionalistas voltaram ao poder, agora sem necessitarem de qualquer aliança.

Agora, a população de origem inglesa mantinha seu poder econômico, enquanto os afrikaaners detinham o poder político – divisão única no mundo. E assim a institucionalização do Apartheid se tonou realidade. A África do Sul agora se identificava como um país europeu na África. Embora totalmente ilógico, o pais do Apartheid era parte do assim chamado “mundo livre”...

Aos poucos, o Estado, liderado pelos afrikaaners, adquiria participação no grande bastião do capital inglês, a indústria da mineração. Era um claro sinal de que os afrikaaners queriam agora somar o poder econômico à sua já proeminência política: certamente procuravam se perenizar no poder.

O poder econômico do Estado se fez presente na fase seguinte do desenvolvimento industrial, quando a política de substituição de importações, que se fez presente nos setores siderúrgico, químico, energético e, não menos importante, armamentos.

Embora já fosse atacado internacionalmente, o período 1958-1966 viu o repugnante ser fortalecido sobremaneira, sob a liderança de Hendrik Frensch Verwoerd. Um dos principais “pensadores’ da política de segregação racial total, fez passar a Lei de Promoção do Autogoverno Banto, que pretendia transformar as reservas precárias de mão de obra negra superexplorada em territórios autônomos, mas ainda submetidos a Pretória. Isto é, seriam Teritórios Autônomos, ou independentes, mas só no nome; na prática, eram apenas colônias negras da metrópole branca, conformando uma espécie de colonialismo intestino. Pior: os bantustões eram oito, enquanto o território branco era apenas um, e maior do que os bantustões somados: era o maquiavélico dividir para conquistar posto em prática.

Não tardou e, em 1971, a ONU condenou o repulsivo Apartheid e exigiu que se adotasse um governo de maioria. Mas o governo racista se mostrava impermeável a idéias democráticas e criou uma constituição para ser adotada nos bantustões independentes, mantendo os negros fora das áreas brancas, mas pertos o suficiente para fornecerem a mão de obra barata, cumprindo assim sua função naquela sociedade.

A maioria dos bantustões foram tornados independentes nos anos 1970, ocasião em que seus moradores foram privados da nacionalidade sul-africana. Não tardou para que o governo organizasse territórios exclusivos para brancos, negros e mestiços.  

Ao fim e ao cabo, surgiu outro obstáculo, quase imprevisível, no caminho dos negros: o Apartheid ganhou novos defensores, estes agora negros, representados pelos líderes locais, submetidos a Pretória mas detentores de grande poder local. O sistema fazia vencedores, ainda que dentre os perdedores, e esses vencedores não queriam a derrocada do sistema que os beneficiava.

Não devemos estudar episódios de grandes injustiças históricas desconsiderando a luta de quem se opôs a elas. O Apartheid teve seus opositores, dentro os quais milhares caíram vitimados por um brutal sistema repressivo.

Em 1912, foi fundado o ANC – African National Congress – primeira organização política de negros sul-africanos. Foi concebido por egressos de escolas de missionários, muitos deles detentores de títulos concedidos por Universidades européias ou norte-americanas, e que optaram por atuarem inicialmente de maneira conciliadora. Pensavam ser possível convencer os afrikaaners (e os “liberais” ingleses que se recusavam a atacar a política racista dos afrikaaners) de que a política discriminatória que perseguiam era um equívoco. Para chamar atenção para suas reivindicações, organizaram uma greve de mais de 40 mil mineiros em 1920.

As décadas seguintes viram outras mobilizações todas de caráter não-violento. Em 1955 emitiram a Freedom Chartes (firmada também por indianos, mulatos, liberais e socialistas) que fazia uma ataque radical ao Apartheid e defendia uma melhor distribuição da riqueza.

As mobilizações sociais se ampliaram: no período da II Guerra Mundial ocorreram mais de 300 greves, sendo de 58 mil trabalhadores negros e de 60 mil brancos. Foram essas ações mais radicais que fizeram surgir lideranças mais aguerridas, como Nelson Mandela e Oliver Tambo.

Dissidentes da ANC criaram o PAC (Pan-Africanist Congress), que realizaou uma manifestação em Sharpeville. A repressão que se seguiu pôs na ilegalidade ANC, PAC e Partido Comunista. A resposta da sociedade foi a desistência da luta conciliadora. O ANC fundou seu braço armado, o mK; o PAC criou seu equivalente, o Poqo.  

Em 1963, Mandela foi preso e condenado à prisão perpétua. Oliver Tambo passou a liderar o movimento a partir do exílio. Naqueles anos, resistir era muito difícil, pois todos os países vizinhos eram liderados por simpatizantes dos afrikaaners. Além disso, o capital internacional não parava de investir no país, atraído pela mão de obra barata.

A abertura de vagas de trabalho e a miséria dos bantustões levavam à emigração de trabalhadores rurais negros em direção às cidades. Eram atraídos especialmente os mulatos, esperançosos de conseguirem se integrar à sociedade branca. Isso, sem dúvidas, enfraquecia a luta contra o Apartheid.

Em 1976, uma nova tragédia ocorreu: mais e 600 pessoas foram massacrados numa manifestação em Soweto, o famoso Levante do Soweto, localizado no subúrbio de Johannesburgo. O que diferenciou esse episódio de outros tão trágicos quanto foi a proximidade dos bairros brancos: pela primeira vez, a minoria branca pode assistir com seus próprios olhos o que significava o problema que os negros enfrentavam.

A política econômica do Partido Nacionalista, substituição de importações e protecionismo, financiada pelas exportações de ouro e de produtos agrícolas, gerou resultados expressivos. A África do Sul garantiu sua entrada no clube das 10 nações mais ricas do mundo e o setor industrial já era o mais importante do país. A autosuficiência perseguida agora era uma ferramenta para superar as sanções internacionais contra o país por sua política racista oficial.

Mas logo ficou evidente que isso não seria possível: o setor industrial era forte, mas dependia da importação de bens de capital; além disso, grande parte da indústria se concentrava nos setores de armas e de combustíveis. Portanto o país ainda era muito dependente do resto do mundo; um fechamento internacional abalaria muito a economia nacional.

E foi justamente o que ocorreu nos estertores daquela política racista. Crises social e política se acumularam durante o período liderado por Botha, muito em conseqüência do isolamento econômico a que o país foi relegado. Após o período de crescimento acelerado dos anos 1950, uma crise acometeu o país nas décadas de 1970 e 1980. Enquanto o país continuava a importar, suas exportações despencaram, trazendo a crise da Balança de Pagamentos. Além disso, os índices de investimento despencaram no final dos anos 1970.

Os anos 1980 viram o salto do custo do crédito internacional; políticas contracionistas se seguiram, objetivando equilibrar a Balança de Pagamentos; o resultado foi uma crise econômica ainda pior. Para piorar, o governo não reduzia seus gastos com segurança, necessárias para manter o Apartheid.

Na década de 1980 houve uma desvalorização do preço internacional do ouro, um dos principais produtos de exportação do país – isso levou à desvaloriazação do rand, a moeda local. Além disso, Angola, Moçambique e Zimbábue passavam para as mãos de governos absolutamente antipáticos à África do Sul racista, aumentando o isolamento do país.

Ainda, uma crise de crédito se abateu sobe o país, quando o país declarou moratória dos juros de suas dívidas em 1985. Isso estancou a concessão de qualquer crédito, a recessão se instalou em 1989 e só foi amenizada em 1993.

O Apartheid desmoronava: em 1985 foram extintas as leis que proibiam casamentos interraciais; um mês depois, foi revogada a leis que impedia pessoas de raças diferentes se filiarem ao mesmo partido. Em 1986, caíram as leis que restringiam o trânsito de negros em áreas reservadas aos brancos; no mesmo ano, revogaram-se as leis de passaporte, voltando os negros a terem nacionalidade sul-africana.

O governo Botha passou a perseguir agora apenas a manutenção do poder político, ainda que isso significasse fazer concessões aos “colored”.

A incorporação dos negros no mercado de trabalho também se acelerou, embora sempre tivesse existido, mesmo nos anos de apogeu do Apartheid. Em 1960, os negros eram 23% dos profissionais técnicos, 9% dos gerentes e administradores, 6% dos empregados em escritórios e 18% dos profissionais de vendas. Em 1980, eram 31%, 4%, 25% e 40% respectivamente – ou seja, apenas o quantitativo em cargos de gerência se reduziu no período do Apartheid oficial. Até a distribuição de renda melhorou no período – e pelo mesmo motivo.

Assim, surgiu uma classe média negra e que se recusava a negociar a manutenção daquele sistema medieval. Ou seja, agora o sindicalismo era a principal força contra o Apartheid. Mesmo os “líderes” tribais seduzidos pelo poder passaram a ser alvo de revoltas populares. Entre 1984 e 1987, episódios como os de Sharpeville e do Soweto eram constantes.

Embora alguns governos conservadores, EUA de Reagan e Grão-Bretanha de Thatcher à frente, começaram a fazer discursos menos duros contra Pretória, mas a cisão do Partido Nacional, dando origem ao Partido Conservador, criou ainda mais problemas para a manutenção do sistema.

Seguiram-se críticas morais ao Apartheid e pró-direitos humanos vindas de toda parte, sanções internacionais eram decretadas com cada vez mais freqüência, boicotes globais agravavam os problemas internos.

Os conflitos internos cessaram quando o país reconheceu a independência da Namíbia em troca da saída das tropas cubanas da região.

E assim o odioso sistema racista-constitucional chegou ao tão ansiado fim. Mandela foi libertado, elegeu-se presidente, mas o país ainda convive com muitos problemas decorrentes daquele obscuro período.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Desvendando a historia da África”


quinta-feira, 24 de maio de 2018

ÁFRICA: ALGUMA COISA ESTÁ FORA DA NOVA ORDEM MUNDIAL


Após décadas de guerras externas e intestinas, em busca de sua independência, os novos países africanos enfrentaram um outro ponto de inflexão, mais um obstáculo no caminho da sua tão sofrida reconstrução: a queda do comunismo.

A União Soviética, parceira de primeira hora dos países africanos descolonizados, massivamente adotantes do regime comunista, passava por problemas sérios em casa. Em 1985, o país elegeu um novo líder, que destoava um tanto da gerontocracia que sucedeu Stalin.

Eleito, Gorbachov buscou o diálogo com os EUA. Os soviéticos desejavam pôr um ponto final na corrida armamentista, que consumia grande parte da riqueza produzida pelos dois lados, mas evidentemente gravava mais as finanças do menos rico. Nesse sentido, a partir de 1987, a URSS passou a exigir que seus aliados buscassem o entendimento com seus vizinhos.

Mas a grande surpresa ficou a cargo da África do Sul. Em 1988, as tropas cubano-angolanas derrotavam o exército sul-africano sucessivamente, primeiro no sul de Angola, quando liquidaram a UNITA; depois, explodiram a represa que fornecia energia elétrica à Namíbia. O governo do Apartheid logo percebeu que havia chegado a hora de negociar, pois o desgaste de suas tropas era evidente.

Os americanos então propuseram o que chamaram de Linkage: os cubanos se retirariam da do conflito e, em troca, a independência da Namíbia seria aceita. A África do Sul aceitou a proposta.

O ano de 1989 testemunhou alguns  fatos há muito aguardados: Cuba se despediu da África, o muro de Berlim caiu (ou foi derrubado?) e a Namíbia experimentou sua primeira eleição, com o apoio da ONU. Primeiramente se estabeleceram as regras que regeriam tanto a minoria branca quanto o capital internacional, vital para a reestruturação do país; depois de se computarem os votos, foi declarada a vitória da SWAPO. Em março, foi declarada independente.

Foi então que os ventos de mudança chegaram à África, levaram embora os regimes de matiz comunista, com seus Partidos centrais, e forçaram seus governos a adotarem regimes liberal-democratas e multipartidários. A guerra civil de Angola terminou em maio de 1991; a de Moçambique durou até outubro de 1992. O regime marxista da Etiópia foi derrubado em maio de 1991.

A África do Sul extinguiu seu repulsivo Apartheid em fevereiro de 1991, quando libertou o festejado herói nacional e futuro presidente Nelson Mandela. O processo foi conduzido pelo presidente Frederik De Klerk e a eleição de Mandela ocorreu em 1994, mas tudo isso ocorreu em meio a conflitos internos.

Mas esses sucessos iniciais não correspondiam aos problemas que surgiriam em seguida. O fim da velha ordem mundial bipolar fez com que o continente africano perdesse sua importância geoestratégica: agora não havia mais uma potência econômica capaz de fornecer os recursos de que necessitavam em troca do alinhamento e suas fileiras. A África era agora um território marginal no sistema internacional. Era marginalizada e seus conflitos agora eram legados ao estrato do tribalismo.

Sem uma potência mundial que lhes vendessem armas modernas, as cartas eram agora ditadas por mafiosos ou por grandes traficantes de drogas: diversos países se tornaram grandes produtores de internacionais de drogas. OS diversos conflitos surgidos pareciam sem previsão de término, afinal alimentavam tanto as elites quanto grupos étnicos. Mesmo em Angola conflitos ressurgiram e o Tratado de Paz assinado nunca produziu realmente todos os seus efeitos.

Os Estados do Golfo da Guiné voltaram a entrar em conflito. Um dos países mais ricos do continente, a Nigéria, viveu uma década de 1990 infernal:  a cada eleição realizada correspondia um golpe militar subseqüente. As guerras civis eram tão numerosas que é difícil de se numerá-las: Senegal, Libéria, Serra Leoa, Mali, Níger, Mauritânia, Argélia. Estes quatro últimos em guerra contra os nômades tuaregues do deserto. Angola somente conseguiu pôr um ponto final em sua guerra civil em 2002, após a morte de Jonas Savimbi e conseqüente extinção da UNITA – iniciou-se então a missão humanitária de desarmar as minas terrestres no país que mais as acumulou em todo o mundo, e de recriar a infraestrutura do país que era considerado um dos mais bem aparelhados no continente. A OUA criou tropas de paz para amenizar alguns desses conflitos, mas aparentemente não lograram sucesso.

Vários desses conflitos internos envolviam, de um lado, africanos nativos e, do outro, negros descendentes de ex-escravos que retornaram da América no século XIX. Incrivelmente surgiu uma discriminação entre ambos os grupos e que ainda persiste hoje.

Como resultante, diversos regimes autoritários debelados anos antes retornaram ao poder, muitas vezes trazendo os mesmos velhos ditadores – e, muitas vezes, com apoio popular, mediante eleições ou não.  

Outro processo de triste memória foi o conflito entre tutsis e hutus em Ruanda e Burundi. Os agricultores hutus conformavam uma maioria de 90% da sociedade – contra os 10% de tutsis. Entretanto, nessas duas colônias, alemã e belga respectivamente, os tutsis foram alçados à elite no poder. Esse arranjo só durou até a independência, quando os hutus passaram a ser a etnia dominante, usando-se de sua expressiva maioria, e alinharam-se à França e ao Zaire.

Na década de 1980, os governos hutus foram postos na berlinda em razão de sua descarada corrupção e perseguição aos opositores. Milhares de refugiados tutsis reunidos em Uganda se organizaram num exército e invadiram Ruanda, pelo norte, em outubro de 1990, mas o exército de Ruanda os expulsou facilmente, um mês depois.

Enfraquecido internamente, o governo de Ruanda então encontrou uma forma de se manter no poder: massacrou tutsis ao longo dos anos de 1991 e 1992 – divisão étnica necessária para criar um inimigo causador de todos os problemas...

Assinaram então as partes o Acordo de Arusha, mas a guerra civil permaneceu e os rebeldes se estabeleceram no norte do país, dando início ao massacre de populações hutus, em represália. Estando patente que o conflito armado não levaria a qualquer entendimento, em 1993 foi criado um governo de coalizão. A paz parecia iminente, mas a vitória de um hutu em Burundi, país vizinho a Ruanda, levou os tutsis a reagirem com violência. Foi então que os extremistas hutus se viram legitimados a atacarem tanto tutsis quanto hutus moderados.

Como se esse armagedon não fosse o bastante, um avião que transportava os presidentes de Ruanda e de Burundi foi derrubado quando voava sobre Ruanda. A guerra ficou ainda mais sangrenta e o exército tutsi conseguiu conquistar Kigali, capital de Ruanda.

Em 1994 ocorreu um massacre impressionante de hutus: entre 500 e 800 mil mortos e mais de 4 milhões de refugiados. A FPR foi capaz de estabelecer um novo regime, que foi apoiado e reconhecido imediatamente pelos EUA – além de estar alinhado com Uganda e Tanzânia.

O Zaire terminou por receber grande parte dos refugiados de Ruanda, o que prejudicou ainda mais o fraco equilíbrio interno que existia e que levava o país, ainda que cambaleante, em direção à democracia. Mas, em 1996, formou-se no leste do país a Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo-Zaire: tutsis do Zaire, liderados por Laurent Kabila, rico comerciante de ouro e marfim, próximo de empresários norte-americanos e ex-apoiador de Lumumba nos anos 1960.

Em poucos meses esses milicianos haviam tomado as províncias mais ricas, adentraram a capital, Kinshasa, tudo isso praticamente sem resistência.            

Ao fim e ao cabo desses inúmeros conflitos, o país vitorioso atendia por um nome bem conhecido: Estados Unidos da América. Historicamente, a França era o país que empunhava as armas no continente. Durante a Guerra Fria, o aliado era a URSS, em oposição aos EUA e à França. Após a Guerra Fria, os países africanos se voltaram a Washington em busca de apoio, ainda como repúdio contra Paris.

Apesar do fracasso retumbante em suas incursões na Somália, Washington passou a ter influência direta e sem concorrentes na Etiópia, na Eritréia, Uganda, Angola e Moçambique, além de estarem bem estabelecidos no Quênia. Agora, após os massacres descritos acima, Ruanda, Burundi e Zaire entraram no pacote. Todos dando Au Revoir à França.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Desvendando a história da África” 

A DESCOLONIZAÇÃO DA ÁFRICA NO CALOR DA GUERRA FRIA


O processo de descolonização da África teve início nos anos 1960, mas não havia envolvido ainda os chamados “bastiões brancos” do sul do continente. Portugal refutara totalmente a idéia de conceder a independência a Angola e Moçambique.

A África do Sul era governada exclusivamente por brancos que correspondiam a apenas 20% da população e ainda governava de fato a Namíbia. A Rodésia (atual Zimbábue), governada por brancos que mal chegavam aos 5% da população, apoiou Ian Smith em seu grito pela independência do país em 1965, mas Londres não reconheceu essa jogada.

Mas o maior caso mais complexo ocorria na África do Sul, com seu repugnante racismo constitucional. Este país tinha muita relevância econômica e estava plenamente associado a empreendimentos e empresas transnacionais – o sul do continente africano é riquíssimo em minerais fundamentais no mundo moderno, possui grandes extensões de terras férteis e detém posição geopolítica estratégica por sua proximidade com rotas marítimas entre o Atlântico e o Índico.  

A África portuguesa conseguiu sua independência após mais de 15 anos de lutas ferrenhas – o processo foi relativamente acelerado após a Revolução dos Cravos, em 1974. Moçambique conseguiu se libertar dos lusitanos liderado por Samora Machel, da Frelimo.

Vitoriosos, Moçambique passou a ser governado exclusivamente por negros que se declaravam marxistas-leninistas. Um governo negro e comunista agora vizinho dos brancos racistas da Rodésia e da África do Sul foi capaz de contagiar a maioria reprimida e em 1976 ocorreu o Levante de Soweto (localidade mais miserável de Joanesburgo), que foi duramente reprimido, mas capaz de chamar a atenção do mundo para aquela realidade inaceitável.

Nesses anos também se deu a independência de outras colônias portuguesas: Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe.

Mas a ex-colônia portuguesa mais expressiva era Angola, cujo processo de independência foi acompanhado de perto: era economicamente forte por dispor de petróleo, ferro, diamantes, além de metais bastante valorizados; e tinha uma minoria branca muito forte politicamente. O  que se viu foi um confronto sangrento envolvendo diversos  grupos sedentos por assumir o poder na ex-colônia: a Frente Nacional de Libertação de Angola, apoiada pelos EUA; tropas vindas do Zaire, ao norte; o Movimento Popular para a Libertação de Angola, o MPLA de Agostinho Neto, o mais forte dos três, que contou com apoio fundamental de militares cubanos, enviados ao milhares, tanto soldados quanto instrutores. Note-se que grande parte daqueles cubanos eram descendentes de angolanos levados para a América como escravos. Havia ainda a guerra no sul do país, envolvendo a União para a Independência Total de Angola (UNITA), que, ao lado do exército sul-africano, um dos mais poderosos do mundo então, declarava uma guerra-relâmpago contra o MPLA.

A situação difícil em que se encontrava o MPLA ensejou a criação de uma ponte aérea entre Luanda e Havana, que serviu para o envio de uma tropa de mais de 20 mil soldados cubanos, que lograram êxito ao expulsarem o exército sul-africano do centro do país, uma vitória realmente assombrosa se considerarmos a força das tropas sul-africanas.

Após a vitória, o MPLA passou a governar o país recém-independizado, declarando seguir a linha marxista-leninista: mais uma república negra e comunista, para calafrios dos vizinhos capitalistas e racistas. Contudo a guerrilha no sul, envolvendo a UNITA e seu líder Jonas Savimbi, apoiado e financiado pelo governo sul-africano e pelos EUA.

Ao mesmo tempo, Angola tentava infiltrar na Namíbia os agentes-guerrilheiros da Organização Popular do Sudoeste Africano – SWAPO, o que levou a África do Sul a ocupar uma faixa de terra no sul de Angola, com a intenção de impedir essa invasão. Em resposta, Angola enfileirou seus homens ao norte dos soldados sul-africanos.  

Todas as lutas de independência africanas sofreram com o mesmo problema: após a debandada dos colonos brancos, pouco sobrava em termos de capitais, conhecimentos técnicos e administrativos, enquanto as guerras internas e externas consumiam os poucos recursos disponíveis, inclusive em termos humanos.
A Etiópia era governada pela marionete de Washington Haile Selaissie, quando foi derrubado em 1974 por meio de um golpe militar. O país sofria com miséria aguda, seca, guerrilhas muçulmanas e esquerdistas na vizinha Eritréia. O novo governo, de matiz esquerdista, pôs em curso uma reforma agrária, rompeu com os EUA e parecia conseguir conter a oposição aguerrida.

Em 1977, em meio a rebeliões separatistas, que acometiam diversos países da região, a Somália, governada por socialistas e aliada da URSS, atacou a Etiópia, com apoio de Moscou.

Nesse período, membros da CNA (Congresso Nacional Africano) iniciaram uma série de atentados na África do Sul, o que levou o governo a aumentar a repressão contra a maioria negra e a investir pesadamente em armamentos para seu exército.

Já na Rodésia, o inimaginável aconteceu: subiu ao poder a ZANU (União Nacional Africana do Zimbábue), por meio de eleições coordenadas pela Grã-Bretanha. O novo presidente, Robert Mugabe, formou um governo de coalizão com o ZAPU (União do Povo Africano do Zimbábue) e procurou oferecer garantias aos colonos brancos de que seus investimentos estavam seguros naquele novo país. A economia continuo a prosperar e ele teve o apoio necessário para encaminhar as reformas que beneficiariam a maioria negra. Além disso, o país foi rebatizado para Zimbábue, nome de origem africana, em lugar da ridícula homenagem ao empresário de origem britânica.

Após mais este capítulo, a África do Sul ficou completamente isolada na região, mas mantinha seus ataques bombardeios ininterruptos aos vizinhos revolucionários e mal-comportados.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “Desvendando a história da África”  

quarta-feira, 23 de maio de 2018

O LIBERALISMO QUE O IMPERIALISMO ENTERROU NA ÁFRICA


Se o século XIX se iniciou sob o manto da moral liberal e da defesa intransigente das liberdades individuais, seu final se deu em pólo diametralmente oposto.

A revolução industrial, o uso cada vez mais intensivo das máquinas, a dependência energética que se seguiu, a superioridade inimaginável das armas de fogo européias em relação às dos demais países, ganhos de escala em razão da produção em massa, novos e revolucionários meios de comunicação, tudo isso e muitos outros fatores fizeram a opinião pública européia e seus representantes estatais aderirem fielmente ao Imperialismo.

Os progressos citados descambaram na necessidade ilimitada de expansão dos mercados e de controle sobre as fontes de matérias primas que permitiam todo aquele progresso.

Em 1873, os mercados davam sinais de estrangulamento. A oferta superava sensivelmente a demanda, sucedeu-se uma depressão econômica que durará mais de 20 anos. As ações tomadas pelos diversos governos não destoa em nada das atuais: criação de monopólios e protecionismo.

Deu-se então um processo brutal de concentração de capital: fusões e aquisições em meio a falências, além da instituição de monopólios e cartéis com vistas à sustentação dos preços, enterravam definitivamente os sonhos do ideário liberal.

O mesmo processo se deu entre indústrias e bancos.Foi a aproximação entre ambos que levou ao nascimento do assim denominado capitalismo financeiro: bancos emprestam vultosas somas às indústrias, que se associam em cartéis ou monopolizam o mercado, garantindo a rentabilidade que remunerará o credor, que pode também adquiri um naco do devedor e se tornar sócio-acionista. Assim nasceram trusts, holdings...

Em meio a esses movimentos, os países traçaram suas jogadas: o protecionismo foi adotado abertamente por Alemanha, França (mediante Decreto), EUA, Grã-Bretanha. O livre cambismo é enterrado e o nacionalismo dá novos rumos às já dramáticas rivalidades europeias, levando à I Guerra Mundial décadas mais tarde.

O período de adoção do protecionismo internamente foi aquele em que o Imperialismo mais se expandiu no mundo. E o imperialismo nasceu sob um conjunto de doutrinas no mínimo nefastas: nacionalismo, xenofobia e racismo-científico que tentava justificar a superioridade da “raça” branca sobre todas as demais a partir da Teoria da Evolução de Darwin.

A expansão comercial que se logrou naqueles anos se deu por meio de um intermediário privado: as companhias de carta-patente – de fato, uma reedição das Companhias de navegação criadas séculos antes, durante a exploração da América e do Oriente. Todas tiveram curta duração, apenas o período para se estabelecerem e passarem o controle para o Estado, mediante grandes indenizações a seus proprietários.

A Grã-Bretanha usou a Royal Niger Company, que durou menos de dez anos, mas firmou mais de 400 tratados com chefes locais, para tomar posse da região. Os fundadores da Companhia foram indenizados em mais de 22 milhões de libras.

Os alemães usaram o mesmo método, tendo-se desenrolado intenso conflito entre a alemã Deutsch Ostafrika e a britânica British East African na África Oriental.

A França segue sua estratégia traçada décadas antes: estende seus domínios no norte da África da Argélia até o Marrocos, a oeste; até a Tunísia, a leste (que será oficialmente colônia em 1881). Isso lhe renderá conflitos contra Alemanha, por causa do Marrocos, e com a Itália, por causa da Tunísia, além dos já tradicionais entreveros com os ingleses.

Em 1869, os franceses inauguram o Canal de Suez, no Egito, mas a administração das finanças do país passa a ser exercida em conjunto com a Grã-Bretanha, desde 1878. Os britânicos eram proprietários de 7/16 das ações do Canal, adquiridas diretamente do governo do Egito.

Uma reação dos nacionalistas egípcios leva à eclosão de um conflito, abafado por soldados ingleses. Em conseqüência, tomam os ingleses controle sobre toda a região e sobre o Sudão, de onde expulsam os franceses.

Na África ocidental, mais choques ente franceses e ingleses, em torno da Royal Niger Company. A partir de Senegal e Guiné, os franceses estendem seus domínios até a Costa do Marfim e o Daomé, processo finalizado em 1894.

A França estabelece domínio também na África Equatorial, partir das ações de Savorgnan de Brazza, fundador de Brazzaville, em 1881, na margem direita do rio Congo. Seguiu ele o mesmo método inaugurado pelos ingleses: após firmar vários Tratados com chefes locais, o Estado francês os ratificou e assim passou a tomar controle sobre todo o território. Este episódio gerou conflitos com Alemanha, Portugal e Bélgica, agora sob o manto do infame rei Leopoldo II.

Este soberano, de triste memória, interessara-se pela região do rio Congo, na forma de investimento pessoal. Convocou então, em 1876, a Conferência Geográfica de Bruxelas, que terminou por gerar a Associação Internacional Africana. Após, contratou o explorador e best seller Henry Stanley Morton para explorar o curso superior do rio Congo, o que descamba na criação do Comitê de Estudos do Alto Congo, logo depois rebatizado para Associação Internacional do Congo.

As numerosas rivalidades surgidas nessas décadas levaram à criação da Conferência de Berlim, nos anos de 1884 e 1885. Embora tivesse a África como objeto, os participantes eram países europeus, o Império Otomano e os EUA, disfarçando sua cobiça com discursos pretensamente humanitários.

O documento final se iniciava invocando Deus e terminava estabelecendo regras a serem observadas por todos os países-partes que desejassem se apropriar de territórios no continente africano.

O Estado “Livre” do Congo foi reconhecido e Leopoldo foi declarado seu chefe. Mas somente até 1911, quando o Estado belga toma posse do território e o torna oficialmente colônia. As rusgas com Portugal levaram ao reconhecimento do enclave de Cabinda como seu território. A França foi reconhecida como “legítima” detentora dos territórios na margem direita do rio Congo.

A Alemanha foi declarada possuidora dos territórios onde estabeleceria mais tarde as colônias de Togo, Camarões, África Oriental Alemã e Sudoeste Africano.

A Inglaterra oficializou suas possessões no delta do Níger e na África Meridional.

Deve-se lembrar de que as posses dessas terras eram baseadas nos Tratados firmados com chefes locais. Evidentemente, em algum momento, esses Tratados foram contestados. Esse empecilho era contornado pela assinatura de outros Tratados e Acordos, agora envolvendo apenas as potências imperialistas. Forma os limites estabelecidos nesses Tratados que definiram o mapa da África que duraria até a I Guerra Mundial – e sem qualquer interferência dos “indesejados” africanos. Os conflitos entre Alemanha e França no Marrocos terminaram em 1912, com o estabelecimento de um protetorado francês no país.  

A Itália era detentora dos territórios da Eritréia e da Somália. Em 1896, tentou ocupar também a Etiópia, mas foi rechaçada. Em 1911, a mesma Itália toma posse da Líbia e a transforma em uma nova colônia italiana.

Mas não se pense que o custo dos europeus nessas tomadas de território se restringiu à assinatura de Tratados e na exposição do poderia militar. Em grande parte das vezes foi necessário o uso da força, o que pressupõe resistência por parte dos povos dominados. No Sudão, por exemplo, os ingleses somente conseguiram se impor aos povos locais após uma sangrenta batalha que vitimou mais de 20 mil sudaneses. Aliás, algumas dessas lutas durariam muitas décadas, estendendo sua influência para o período de descolonização, após a II Guerra Mundial.

A África Meridional viu um conflito inédito entre os próprios brancos invasores: ingleses e boers entraram em conflito após a descoberta de ouro e diamante. Quando a Grã-Bretanha se interessou pela colônia do Cabo, investimentos massivos fizeram surgir uma rica oligarquia local, da qual sairia Cecil Rhodes. Este fundou a Gold Fields os South Africa, cujo objeto era a exploração do ouro, e a De Beers Consolidated Mines, para explorar o diamante. Tudo isso usando os direitos derivados da compra da Companhia Britânica da África do Sul. Assim adquiriu o direito de anexar diversos territórios a seu império nascente.

A guerra entre britânicos e boers resultou na vitória dos britânicos. Mas estes não tinham as condições necessárias para governar o país, o que levou ao estabelecimento da União Sul-Africana, que procurou um termo comum para ambos. Oficializaram-se duas línguas para o país, o inglês e o africânder (a língua dos boers). No período entre guerras, essa união levou ao estabelecimento da segregação ente brancos e negros, o repugnante Apartheid.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Desvendando a história da África”

     

SÉCULO XIX: A ÁFRICA SUCUMBE SOB O PESO DO IMPERIALISMO


Até o início do século XIX, A África que os europeus conheciam se limitava à parte mediterrânea, no norte do continente. O deserto do Saara ainda escondia aquela África negra, que há séculos lhes fornecia ouro e, especialmente, escravos.

No século XIX, o norte da África era parte do Império Otomano, bastante enfraquecido e fadado a desaparecer ao cabo da I Guerra Mundial. A partir de Istambul, o islamismo teve sua área de influência ampliada até o deserto, ao sul, e ao longo da costa oriental, da Somália ao Zanzibar.

Nessa região, a jóia da coroa atende pelo milenar nome de Egito: localizava-se na preciosa rota para o Oriente. Britânicos e franceses se engalfinhariam pelo controle dessa região.

A África subsaariana continuava praticamente intacta à invasão estrangeira. Após séculos de incursões e instalação de entrepostos e fortalezas, apenas faixas costeiras do continente foram afetadas. Assíduos freqüentadores desde meados do século XV, os portugueses estavam estabelecidos em faixas do litoral de Angola e de Moçambique, e nas ilhas de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe.

A Espanha conseguira fincar âncora no litoral norte do Marrocos e na ilha de Fernando Pó, no Golfo da Guiné; a Fraça fizera o mesmo em Saint-Louis, no estuário do Senegal; a Inglaterra garantiu presença em Fort James, na foz do rio Gâmbia; e os holandeses estavam estabelecidos na colônia do Cabo.

A superioridade naval britânica a levaria e tomar posse de pontos estratégicos na região. Durante a Revolução francesa, por exemplo, conseguiram tomar para si a Colônia do Cabo, tirando-a do domínio holandês, e tomaram posse de Gibraltar.  A cidade do Cabo era um ponto fundamental na Rota marítima para as Índias.

Durante esse período, de meados do século XVIII até seus estertores, o mundo foi sacudido pelas revoluções burguesas, de caráter liberal. Os monopólios comerciais que sustentaram o período do capitalismo mercantilista passaram a ser atacados nas próprias metrópoles; livre cambismo, livre concorrência e liberdade para empreender passaram a ser as palavras de ordem. Nesse mundo que surgia não havia mais espaço para o trabalho escravo, e essa odiosa instituição estava finalmente na berlinda, contando os dias para seu completo desaparecimento.

Embora os europeus não tenham ido muito além de faixas litorâneas em termos de ocupação territorial, o impacto que a escravidão já havia causado no continente africano era aterrador. Desde o século XV, calcula-se em 100 milhões o desfalque de seres humanos nos quatro séculos seguintes. O efeito mais avassalador dessa monstruosidade foi, sem dúvidas, o fim de tradicionais e complexas formações políticas e sua substituição por reinos cuja base econômica era o escambo de seres humanos.

E então o já abalado continente sofre outro golpe. No século XIX, após embargos e ameaças britânicas e de outros países, o tráfico internacional de escravos é proibido. Agora as economias africanas surgidas a reboque do tráfico de pessoas perdiam seu principal “produto” de exportação, ao passo que a revolução industrial destruiu o mercado de artesanatos. Apenas as exportações de produtos agrícolas se mostrou insuficiente para gerar a renda de que se viram alijados. Seguiu-se então uma crise de proporções épicas.  
Em meados do século XIX tem início um processo que se mostraria muito precioso alguns anos depois: a entrada de missionário e de expedições científicas na África. Ainda no período de apogeu do liberalismo na Europa, portanto sem mostrar qualquer intenção de dominação colonial, milhares de europeus fizeram incursões no continente e acumularam uma quantidade enorme de informações sobre sua geografia, costumes de povos locais, práticas religiosas etc. Em 1815 havia cerca de 200 missionários católicos fora da Europa; em 1900, eram 6.100. Os equivalentes protestantes eram 16.000 em 1900. Entoando discursos de fundo humanitário e antiescravista, abriram rotas que penetravam fundo no continente.

As missões científicas ficavam a cargo das Sociedades Geográficas que pulularam ao longo do século XIX, especialmente a britânica. O nome que mais brilhou em suas publicações foram os relatos da viagem de David Livingstone, enterradocom honras oficiais na Abadia de Westminster, em 1873. O livro How I Found Livingstone, escrito por Henry Stanley, enviado pelo New York Herald especialmente para achar o aventureiro inglês, que estava há vários anos sem dar notícias, também virou best seller.

Assim, tornaram-se de conhecidos dos europeus todo o interior do continente e as bacias dos grandes rios africanos, o que não haviam conseguido nos séculos anteriores.

Como se não bastassem os fatores já citados, a revolução industrial e o progresso da medicina deram sua contribuição para o destino trágico que se desenhava para a África. Novos medicamentos e terapias fizeram a população européia mais do que dobrar no século XIX. Além disso, novas medicações criaram imunidades contra as doenças tropicais que deram à África sua fama de “túmulo do homem branco”.
O resultado disso é que o excedente populacional da Europa se lança pelo planeta Terra, liderado por operários sub-remunerados, fugindo de condições de vida bastante precárias. O fato de migrar para a África não ser mais sinônimo de morte por doenças levou muitos deles a tomarem o rumo do Sul.

Por fim, a revolução nos meios de transporte e de comunicação – navio a vapor, locomotiva, telégrafo -, levou à criação de projetos de ocupação do continente. Frete com preço em queda, preços de passagens de navio acessíveis, trouxeram investimentos materializados na forma de ferrovias que cortavam o interior do continente, acompanhadas de postes telegráficos que traziam a comunicação instantânea.

As modificações na paisagem econômica que se seguiram foram enormes. As regiões de Serra Leoa, Costa do Ouro, Nigéria, Congo e Angola, que há séculos se tornaram basicamente exortadoras de escravos, desenvolveram a produção e exportação de óleo de palma como substituto do tráfico humano. O delta do rio Níger era conhecido pelos seus “Oil Rivers” (riod e óleo, isto é, petróleo) e isso atraiu inevitavelmente a atenção dos britânicos para o que seria futuramente a Nigéria.

O Rio Senegal e sua enorme extensão em direção ao alto Níger e ao Sudão atraiu os franceses.
A parte oriental da África, de influência muçulmana, continuava sob influência árabe, swahili ou indiana. Mas essa influência estava chegando ao fim. Pouco a pouco as principais rotas comerciais migravam para mãos europeias. Os ingleses, por exemplo, apoiaram o sultanato de Zanzibar, importante produtor de especiarias, como o cravo.

Por essa época já se achavam estabelecidos no continente, além dos pioneiros Portugal e Espanha, britânicos, franceses, alemães e italianos. Os holandeses do sul da África, conhecidos como boers, criaram sérios obstáculos aos ingleses, quando decidiram invadir a colônia do Cabo com vistas a tomarem posse das riquezas minerais (ouro e diamantes à frente) locais.

A posse de Madagascar pelos franceses criou rusgas com os ingleses, temerosos de sua proximidade com a rota comercial que passa pelo Cabo, em direção ao Oriente.

No norte do continente, tomava corpo uma ocupação colonial francesa que teria uma história dramática no futuro: Argélia. Desde 1830 o país europeu enviava colonos, em quantidade crescente, para a região. A efetiva ocupação daquela região só se deu em meados da década de 1870, quando finalmente a população local não era mais capaz de impor resistência ao invasor do norte.

O mesmo ocorreria nas zonas do Magreb até a Líbia. Igual história seria encenada também na Tunísia, objeto de desejo de comerciantes de Marselha.

Ainda na década de 1830 é instituído o Governo-Geral das províncias francesas no norte da África. Em 1844, a França invade o Marrocos, onde já se encontravam os espanhóis: o choque entre as duas nações foi inevitável e acabou com a retirada dos franceses, após um acordo mediado pela Inglaterra.

O Egito era parte do Império Otomano. Ao lado da Tunísia, era uma de suas províncias mais autônomas e importante exportador de algodão para a Europa. Mehmet Ali seus sucessores perceberam rapidamente que precisavam modernizar seus domínios para fazer frente à ofensiva irresistível vinda do norte. 

Perceberam o interesse incontido das potências em criar um canal navegável na região, que reduziria sobremaneira a distância até o Oriente: seria o futuro Canal de Suez.

Usando-se da rivalidade aberta entre a Inglaterra e a França, consegue o Egito empréstimos milionários para construir, ele próprio, o ambicioso Canal. A cena seguinte é um caso clássico de países do Terceiro Mundo – e também ocorreu na Tunísia: empréstimos volumosos levam a crises econômicas, que levam ao calote da dívida, que leva à rolagem da mesma, a que se somam juros elevados, que levam à decretação da insolvência, que levam ao controle externo, enviado para auxílio aos credores... E, enfim, cai a soberania e surge uma nova colônia.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Desvendando a história da África”


terça-feira, 22 de maio de 2018

UM CONTINENTE CONFIGURADO PELO TRÁFICO DE PESSOAS


Inicialmente, conforme singravam suas costas e procuravam uma saída para a Ásia em seu périplo, a África não interessava diretamente aos portugueses. Tratava-se apenas de um local para fundarem entrepostos e bases que servissem de escala em suas jornadas para a Índia. Daí interessarem-se tanto por ilhas e portos litorâneos.

Dificilmente se aventuravam em seu interior. Uma exceção foram os franceses que, ainda em meados do século XVII, navegaram o Rio Senegal adentro.

O papel mais importante nesse período foi o executado pelos lançados – ou tangomaus. Eram chamados de lançados em referência à expressão “lançados às praias”. Eram aventureiros ou degredados, largados nas costas africanas, inicialmente, depois também na América e na Ásia. Foram eles que estabeleceram redes comerciais entre europeus e africanos.

A grande maioria sucumbia às doenças e aos ataques, mas os que sobreviviam adquiriam tanto imunidades quanto conhecimento da geografia local. Aprendiam a língua dos povos com quem travavam contato, seus usos e costumes comerciais. Muitos se tornavam responsáveis por atividades comerciais relevantes.

Importante lembrar que a Ilha de Cabo Verde, cuja colonização se iniciara em 1462, era ponto importante para o comércio com a África. E mais, a atuação comercial mais importante na ilha estava em mãos de mulatos, cuja miscigenação se dava com mulheres africanas. Este fato causou preocupação na Coroa portuguesa, que enviou grande contingente de mulheres brancas, pois temiam que os mulatos fossem menos leais à Coroa portuguesa por sua meai ascendência africana.

No início do século XVII, outras nações européias começaram a desembarcar na costa da África, como os holandeses e os ingleses. Os holandeses iniciaram suas aventuras africanas atacando as possessões portuguesas: atacaram El Mina, na Costa do Ouro, em 1637; depois, ocuparam Luanda, capital de Angola, entre 1641 e 1648. Finalmente, em 1652, fundaram a Cidade do Cabo.

Os ingleses faziam incursões regulares na África desde 1533. Em diversas oportunidades tiveram entreveros com os portugueses.

A Companhia Francesa da África Ocidental foi fundada em 1626 e os franceses logo se estabeleceram no Senegal.

Nesse período, o produto de exportação por excelência, o grande interesse europeu no continente, eram os escravos. Por esse motivo, durantes os séculos XVI e XVII houve a formação de novas organizações políticas cujas bases eram o comércio de escravos: os achântis e os iorubás, por exemplo. A contrapartida mais desejada pelos africanos eram as armas de fogo.

Em meados do século XIX, quando o comércio de escravos foi extinto, essas nações demonstraram toda a fragilidade sobre a qual foram erguidas, pois não restara qualquer atividade econômica relevante afora aquele degradante comércio de seres humanos. A atividade econômica costeira levou ao definhamento o tradicional comércio transaariano.

As mudanças políticas decorrentes da instalação de mais de trinta fortes europeuis na Costa do Ouro eram inevitáveis. Inicialmente, os europeus deveriam pagar tributos para os líderes locais, pelo direito de lá se estabelecerem. Mas em alguns lugares os europeus rapidamente passaram a prevalecer em relação aos povos locais, e então o dever de pagar tributos se inverteu. Outros efeitos foram mais sutis, mas igualmente importantes.

Os fortes europeus empregavam africanos, que lá trabalhavam segundo o esquema de trabalho assalariado. Lá, aprendiam diversos ofícios, além de aprenderem a realizar de maneira mais refinada o ofício que dominavam. Ainda, muitos europeus tiveram filhos miscigenados, que já cresciam em contato com estrangeiros.

Assim surgiram africanos que conseguiam estabelecer contato facilmente com os europeus, tornando-se intermediários no trato com chefes africanos. Muitos destes se tornaram pessoas bastante poderosas.
A sistematização do tráfico de escravos levou a uma restrição da moeda de troca em torno de produtos realmente valiosos. Agora, os comerciantes africanos exigiam, além do tradicional cauri (que servia como moeda local), tecidos, armas de fogo, facas, pólvora, bebidas alcoólicas, fumo, açúcar, bacias de cobre. Desnecessário dizer que produtos de consumo como esses eram incapazes de desenvolver qualquer atividades econômica na África (ao contrário do que ocorria na Europa, em que a demanda por esses produtos para as trocas comerciais ajudou a dar início à Revolução Industrial).

Completando ao cenário apocalíptico que se desenhava, a drenagem de mão de obra começava a dar sinais de sua perversidade, embora relativamente compensada por não envolver mulheres.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Desvendando a história da África”


ÁFRICA: DESDE QUANDO?


Segundo Samir Amin (O desenvolvimento desigual), a análise dos diversos modos de produção pode levar ao entendimento acerca do nível de desenvolvimento de uma sociedade e seus passos até alcançar o estágio capitalista.

Mas o conceito de Modo de Produção é algo abstrato e seus diversos estágios não ocorrem de forma “pura”, mas se sobrepõem em diversos momentos. Samir aponta a existência de 5 modos de produção: 1) modo de produção comunitário, primitivo, anterior a todos os outros. 2) modo de produção tributário. 3) modo de produção escravista. 4) modo de produção mercantil simples. 5) modo de produção capitalista. Esses modos de produção são articulados com os demais modos de produção, muitas vezes submetidos a um modo predominante.  

Samir Amin identifica em todas as sociedades pré-capitalistas os seguintes elementos: 1) dominância do modo de produção comunitário ou tributário. 2) relações mercantis com âmbito limitado. 3) existência de comércio de longa distância, permitindo a transferência de excedente de uma sociedade para outra. Sociedades que dependem do comércio de longa distância denunciam a existência de poucos excedentes internos, o que pode levá-la ao apogeu ou à decadência, sem que isso dependa do modo de produção nela predominante.

Quando da chegada dos europeus à África, os modos de produção praticados eram predominantemente o comunitário e o tributário. O modo de produção comunitário variava desde modelos menos hierarquizados no sul do continente até outros mais complexos, mais ao norte, em territórios do Senegal, Gana e Nigéria. Como a terra é garantida a todos os membros de um clã, não pode haver a proletarização da mão de obra, que separou o produtor dos meios de produção.

Mas prevalecia o modo de produção tributário, que pode ser de 3 tipos: 1) formaç~eos tributárias ricas, com excedente volumoso, como Egito e China. 2) formações pobres, com poucos excedentes, como as sociedades medievais e feudais européias. 3) formações tributárias comerciantes, dependentes das rotas de comércio e do lucro daí advindo, como a Grécia Antiga, as sociedades árabes e diversos Estados da savana africana.

O escravismo era um fenômeno de intensidade variada, pois era praticado marginalmente na África, ao mesmo tempo em que era praticado intensamente na Grécia Antiga.

O impacto resultante do encontro da África com a Europa deu surgimento ao capitalismo na Europa, na África do resultado não foi o mesmo. Ali ocorreu o bloqueamento do desenvolvimetno europeu, e a razão está ligada justamente à pobreza relativa dos Europeus frente aos africanos. A chave para o sucesso europeu foi a desestruturação do modo de produção existente até então: o feudalismo. Na África não houve a desarticulação dos modos de produção tradicionais, e a razão era justamente seu sucesso relativo.

O segundo fator para o sucesso relativo da Europa foi a acumulação de capital. Esta existiu em algumas sociedades do norte da África, durante o apogeu de alguns grandes impérios africanos, mas o excedente era pouco volumoso e o lucro advinha do comércio de grande distância, inexistindo portanto articulação complexa da produção local. Este foi o caso das grandes sociedades surgidas no Magreb, estruturadas sobre o comércio do ouro da África Ocidental. Todo o mundo antigo ocidental se abasteceu do ouro daquela região.

O declínio de civilizações do norte da África se deu após o desvio das rotas comerciais mais importantes. Até o surgimento do capitalismo mercantilista, as civilizações africanas estavam plenamente articuladas com suas contrapartes da Ásia, do Mediterrâneo e do Oriente Médio, e seu desenvolvimento era comparável em todos os aspectos. É o que se depreende dos relatos de viajantes maravilhados daquela época.

O fim desse concerto quando da chegada dos portugueses, no século XV. O comércio mercantilista, do século XVI ao XVIII, caracterizou-se pelo desequilíbrio das relações comerciais, em absoluta contraposição às práticas comerciais existentes até então. A razão eram duas: especialização e divisão do trabalho. Os reinos africanos ficaram com a tarefa de abastecer o sistema de mão de obra escrava e de poucos produtos extrativistas.

Assim, com a completa destruição do comércio saariano e com a subseqüente rearticulação em torno do comércio atlântico, as nações existentes africanas iniciaram sua trágica derrocada.

O exemplo mais prolífico foi o do Império Songai, última grande nação do Sudão Ocidental. Estavam na iminência de iniciar uma transformação interna magnífica, em direção à especialização e organização dos modos de produção, com claros aspectos classistas. Ou seja, deveriam surgir em breve classes sociais semelhantes às dos burgueses europeus.

Mas o movimento acima foi interditado após a derrota para o sultão do Marrocos, em 1591. Foi o fim do império e de seu possível futuro brilhante. O estabelecimento de europeus na região levou à criação de ilhas de comércio desarticuladas, que puseram fim à complexidade exigida para a manutenção de um império.

A migração do centro de gravidade econômico na África da savana em direção à costa refletiu em larga medida a migração do centro econômico europeu do Mediterrâneo em direção ao Atlântico. Sem falar no fundo capitalista mercantilista, que levou o desenvolvimento desigual entre os pólos africano e europeu.

Impossível saber o que seria o continente caso o episódio acima descrito nunca tivesse ocorrido. Mas é fato que dificilmente as sociedades lá surgidas, mesmo as mais bem sucedidas comercialmente, teriam acumulado todos os recursos necessários para o surgimento do capitalismo mercantilista e, após, do capitalismo industrial que moldou nosso mundo.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Desvendando a história da África”

VISÃO DO PARAÍSO... PARA UNS; DO INFERNO, PARA OUTROS


O poeta e historiador Alberto da Costa e Silva escreveu um primor a respeito das relações luso-africanas, que descambaram em relações luso-indianas e, finalmente, luso-brasileiras.

Ele alertou para o estranhamento que os africanos sentiram ao avistarem aqueles seres humanos de baixa estatura, de cabelos lisos e longos, de faces rosadas e barbudas, nariz comprido, lábios estreitos e pele desbotada. Pareciam não ter artelhos e seu cheiro era fétido. Os que contraiam escorbuto chegavam desdentados e com a boca sangrando.

Em geral, quem descia à terra nos primeiros contatos eram aqueles que traziam um péssimo aspecto, em geral adoentados, febris e infestados de pulgas e piolhos.

Por outro lado, logo perceberam os africanos que tratavam com gente extremamente curiosa, estavam interessados nos aspectos da região, quais riquezas exploravam, qual religião praticavam. Pareciam frágeis às doenças locais, mas traziam consigo armas que cuspiam fogo e faziam um estrondo como um trovão.
Algumas das mercadorias que ofereciam lhes interessavam, outras não. Moviam–se em embarcações enormes e velozes, chegavam a destinos inimagináveis aos africanos restritos à navegação de cabotagem.
Passaram o século XV quase inteiramente descobrindo a costa atlântica da África. Selaram alianças com alguns povos, entraram em conflito com outros. Muitos desses forasteiros tiveram descendentes mestiços, alguns se enriqueceram, enriqueceram outros comerciantes, reis, por vezes empobreceram outros.
Enriqueceram também a variedade de mercadorias comercializadas localmente, o mesmo fizeram em seu terra natal. Mas retiraram dali muitos de seus filhos, comprados como escravos. Profanaram locais sagrados segundo a religião alheia, queimaram ídolos, introduziram uma nova religião.

Introduziram animais e vegetais europeus ou asiáticos na costa atlântica da África, ergueram cruzes, construíram capelas, fortalezas. As relações daí advindas marcaram as relações futuras de Portugal com o resto do mundo.

Em sua segunda viagem à Índia, o capitão-mor Pedro Álvares Cabral mandou descer a uma praia desconhecida um batel, um barco pequeno que permitia ser aportado em praias rasas. Esse era exatamente o procedimento adotado na exploração da África.

Um negro grumete, um marinheiro de baixa graduação, desembarcou e se dirigiu na língua da Guiné às pessoas que avistava, “de cor baça e de cabelo comprido e corredio, e a figura do rosto coisa mui nova”. O risco e era conhecido e esta forma de contato terminou de maneira trágica em diversas incursões portuguesas na África.

A primeira tentativa foi falha. Tentaram então fazer contato em árabe. Obtiveram igual insucesso.

Logo os portugueses se lembraram da descrição dada pelos castelhanos dos povos que encontraram no Poente, isto é, naquilo que seria batizado de América.

Sim, agora sabiam que estavam na outra margem do Atlântico.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Desvendando a história da África”

segunda-feira, 21 de maio de 2018

A ÁFRICA ENCONTRA A EUROPA


Até a Idade Média européia, as referências que existiam sobre negros se baseavam ou em preceitos bíblicos – eram referenciados como filhos de Cam - e nos textos Greco-romanos. Mas o comércio atlântico trouxe outra referência, mais real.

No Museu do Prado, em Madri, existem diversos quadros contendo pessoas negras. Um deles é o quadro Adoração dos Reis Magos, de Hans Memling e Jerônimo Bosch. Bosch produziu ainda O Jardim das Delícias, contendo também diversos negros – além de animais africanos como elefantes, girafas e outros.
Alberto Durer retratou um negro em 1508 e uma negra, em 1521. Esta última teve como modelo Catarina, doméstica do português João Brandão.

Muita informação sobre populações habitantes do interior da África surgiram no encalço do comércio mediterrâneo. Essa experiência foi se acumulando desde a tomada pelos portugueses da cidade de Ceuta, em 1415, até o término do périplo africano, em 1498. Essa jornada foi marcada pela passagem do Cabo Bojador, em 1434; e pela chegada à Guiné e ao Cabo Verde, na década seguinte. A Costa da Malagueta 
foi alcançada em 1470.

Em 1482 ergueram a fortaleza d`El Mina. Ainda naquela década, Diogo Cão navegou pela Rio Zaire, enquanto Bartolomeu Dias chegava ao extremo sul do continente.

Finalmente, em 1497, Vasco da Gama legou padrões ao longo da costa africana, antes de desembarcar na Índia. Diversos contatos com povos africanos foram travados, embora muitas vezes com resultados trágicos. Já nessa época se tornou comum o comércio de escravos, mas a escala era minúscula se comparada àquela após a conquista da América.

Mesmo após terem travado contato com agentes da Guiné, as hostilidades contra os portugueses eram constantes. Somente após o português Diogo Gomes adentrar a região da Senegâmbia as relações comerciais com Portugal se tornaram constantes, especialmente na região do Rio Gâmbia, o Casamansa, o São Domingos e o Rio Grande.

A chegada dos portugueses coincide historicamente com o declínio do império de Mali e a ascensão do império Songai, mas é difícil estabelecer uma correlação confiável entre esses fenômenos.
A exploração da Guiné se fez por Portugal em parceria com a iniciativa provada: o comerciante português Fernão Gomes recebeu do Rei D. Afonso V o monopólio comercial da Guiné. Desde o início este monopólio enfrentou a concorrência de castelhanos, levando a capturas de embarcações e enforcamento da tripulação. Mais tarde foi a vez dos flamencos enfrentarem o monopólio lusitano.

Somente após a assinatura de um tratado luso-castelhano em 1479, ratificado em 1480 pelos reis, o cenário se tornou menos caótico. Em 1481, o papa Xisto IV emitiu a bula papal Aeterni Regis, no qual ficava ratificada a divisão entre territórios de influência exclusiva de Portugal e da Espanha. Foi então que Portugal decidiu pela construção de um forte no litoral que explorava.

Mas a construção imprescindia de um acordo com líderes locais. Tal entendimento foi conquistado e a fortaleza de São Jorge da Mina foi erguida em poucas semanas. Daí em diante os portugueses barganharam por vantagens comerciais – além de se lançarem à odioso prática da conversão ao cristianismo.
Foram inevitáveis e cada vez mais comuns conflitos com povos locais, levando à recusa absoluta de tolerar estrangeiros no seu litoral. A permanência desses europeus necessitou da adoção de costumes locais, isto é, os portugueses se africanizaram na chamada Costa da Mina; dessa forma conseguiram se manter intermediando o comércio de riquezas africanas.

Outra saída encontrada foi a aliança com povos vizinhos, como os de Eguafo e Fetu. Com a alinça com os ntotila do Congo, em 1482, os portugueses conseguiram fazer parte de uma imensa rede comercial africana. Mercadorias européias e africanas eram trocadas intensamente a partir de então. A navegação portuguesa levou esse comércio a atingir proporções intercontinentais. Foi inevitável a reorganização social em diversas partes do continente surgida com essa inédita atividade comercial.

No entanto, a aliança entre Portugal e os povos do Congo terminou de maneira trágica, quando foram atacados por outros povos, solicitaram ajuda a seu aliado europeu, que respondeu com a mais cínica omissão.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Desvendando a história da África”

          

ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA – TÃO ABOMINÁVEL QUANTO GOBAL


O Sudão africano era chamado pelos árabes de Bilad al-Sudan, ou “terra dos negros”. Foi ali que provavelmente nasceu a deplorável instituição da escravidão, a partir do estreitamento do contato entre populações nômades do deserto do Saara e os povos sedentários da região do Sahel.

Não se pode dizer que não havia qualquer tipo de escravidão até então, pois já havia uma espécie de escravidão de linhagem.

O camelo foi introduzido no deserto do Saara entre os séculos I e III. A partir de então as tribos berberes iniciam sua expansão, que incluiu as regiões dos oásis e a criação de diversas rotas comerciais.
Eram comuns ataques de nômades (inclusive os sedentários que habitavam os oásis) a povoados limítrofes, o que levou diversos desses povos a serem cativos dos berberes.

O estreitamento do contato entre povos das savanas - cultivadores da terra, criadores de animais, pescadores – e tribos nômades – pastores e caçadores – levou ao nascimento de relações comerciais, que trazia o gene da escravidão dentro de si desde o berço – porém de maneira incidental, não estava ainda na base da estrutura de produção e comércio.

As relações sociais de ambos os povos era baseada nas relações étnicas e de parentesco, conformando uma estrutura social comunitária, portanto ligada à linhagem do indivíduo – não existiam classes em conflito. Portanto, mesmo que um indivíduo fosse reduzido à condição de escravo, ele não faria parte de uma classe de escravos; este exerceria as mesmas tarefas de qualquer outro indivíduo – até mesmo porque os escravos eram muito pouco numerosos.

Os escravos poderiam futuramente vir a fazer parte do núcleo familiar, o que poderia ser desejado pelo próprio clã familiar, pois ser numerosos era precondição para aumentar o poder e a influência.

Por seu turno, haviam os escravos vistos como meras mercadorias. Estavam restritos a exercerem as funções para as quais foi designado. Este era o destino dos escravos adquiridos por tribos berberes, ou mesmo daqueles que faziam parte de tribos conquistadas, caso fossem reduzidos à condição de escravo.
Aos poucos, tarefas muito estafantes foram sendo exercidas majoritariamento por escravos, como o trabalho de extração de minérios: o ferro era conhecido e muito usado no Sudão, há muito tempo; o sal vinha de minas no Saara; o ouro vinha de regiões ao sul, e era adquirido delas. Em todos esses trabalhos a mão de obra escrava se fazia presente.

As relações de conflito eram, até certo ponto, equiilibradas: se, por um lado, os nômades conseguissem prevalecer usando de sua superioridade militar; por outro, os povos sedentários agrícolas possuíam uma estrutura social mais sólida, uma cultura mais enraizada, o que obrigou aos nômades, por diversas vezes, a se adequarem à sociedade que eventualmente conquistassem.  

Conforme as relações comerciais se desenvolviam, diversas aldeias pululavam ao longo das rotas comerciais do deserto. Aos poucos, tornavam-se importantes centros comerciais, levando o comércio da África negra a outros continentes. Audagost e Ualata evoluíram para portos caravaneiros relevantes.

Enquanto o comércio e as rotas comerciais tomavam corpo, um outro “produto” da região se tornava cada vez mais comum: os escravos. Exportados para o norte da África e para o Oriente Médio, os escravos se converteram nas mercadorias mais valorizadas no comércio transaariano, ao lado do sal e do ouro.

Inicialmente eram direcionados para o trabalho nos oásis e nos canaviais da África mediterrânea, porém, com a expansão dos reinos muçulmanos, viram sua demanda ampliada para o trabalho nos palácios: fosse no exército, fosse nos haréns. Serviços domésticos e a lavoura, pouco a pouco, passaram a demandar quantidades enormes de cativos. Meninos e pré-adolescentes eram desejados para serem educados militarmente e, futuramente, integrarem as forças militares.

Aliás essa conformação militar foi batizada de “Força Palaciana”, e também se trornou comum nos reinos de Gana, Mali e Songai: os soldados eram geralmente mercenários ou escravos; os oficiais eram membros da nobreza.

Eunucos eram demandados para as tarefas administrativas, assim como para montarem guarda nos haréns. Os escravos homens adultos eram os mais baratos e eram usados nas tarefas mais penosas.

A escravidão no mundo muçulmano não atingia os descendentes do escravo. Os filhos eram assimilados pela sociedade e uma nova importação de escravos repunha o contingente cativo. Também não havia uma classe de escravos conscientes de sua condição: eles atuavam nas mais diversas atividades, tinham as mais diversas origens, provinham de etnias as mais variadas e normalmente eram incorporados à sociedade em que passavam a habitar. Além do mais, os escravos nas sociedades islâmicas não eram necessariamente africanos: eram comuns escravos vindos da Europa, da Rússia, do Oriente etc.

A condição básica para ser escravo no mundo islâmico eram não praticar o islamismo: um islâmico não poderia escravizar outro islâmico. Daí serem capturados nas regiões de fronteira do Islã. Mas as quantidades foram bastante irrisórias do seu surgimento até o século XV. Deste período até o século XIX o montante praticamente não se expandiu. Exportavam-se alguns milhares por ano, porém saídos de regiões muito extensas, provocando quase nenhum impacto local.

Mas é fato que o islamismo, os grandes reinos africanos e a escravidão se imbricavam a cada dia mais, conformando um novelo reciprocamente auto-alimentado.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Desvendando a história da África”