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quinta-feira, 24 de agosto de 2017

D. JOÃO II, REI DE DOIS MUNDOS


Seu reinado durou apenas 14 anos, mas foi um dos mais relevantes da história da Europa. Conforme inscrito em seu epitáfio: “Poderá não ter sido um grande homem, mas foi certamente um grande rei”. Segundo o historiador Oliveira Marques, deve-se dever a ele, não a D. Henrique, o plano global dos descobrimentos.

Quando herdou a coroa de seu pai, D. Afonso, Portugal tinha uma população total inferior a 1,5 milhão de pessoas – 1/8 da população da Itália, menos de ¼ da Espanha, ou quase metade da população inglesa. O apoio financeiro para as expedições se devia unicamente à Casa dos Medici, banqueiros de Florença.

O Tesouro português estava completamente esvaziado, após anos de conflito com Castela, de tal forma que urgia qualquer recurso emprestado de fora. Solicitou à França, que recusou. Desesperado, D. Afonso se disfarçou de monge e se refugiou num mosteiro da Bretanha. Descoberto, foi deportado de volta a Portugal, onde pediu permissão para abdicar do trono. Morreu antes que seu pedido fosse analisado. A essa altura, a moeda portuguesa não valia nada. Além de pesadas dívidas com a Igreja, um consórcio de judeus adquiriu o direito de recolher os impostos do país.  

Em 1531, uma geração após o início das tais expedições portuguesas, o rei da Inglaterra se viu obrigado a escrever ao doge de Veneza pedindo-lhe desculpas por seus navios não mais aportarem em Veneza, mas em Lisboa, para adquirirem especiarias. Os armazéns venezianos estavam vazios e a cidade em profunda decadência.

A fortuna em mãos de portugueses era tamanha que nobres deste país, em visita à Itália, mandaram ferrar seus cavalos com ferraduras de ouro e usando um único prego. Deleitavam-se com os esfomeados italianos correndo atrás das ferraduras após se desprenderem dos cavalos. Lisboa era o lugar da fortuna e da abundância. Cidadãos ingleses e de outras cidades européias mais atrasadas se impressionavam com a opulência da cidade. Era referência nos campos das artes, das ciências, da ópera, da medicina, arquitetura e joalheria.

D. João II fundou o Conselho dos Sábios, constituído por eclesiásticos, cosmógrafos, matemáticos dando início à tradição portuguesa de aproximar intelectuais da administração pública. A Casa da Mina, por ele fundada para abrigar o ouro trazido da África, reteve quantidade tal de recursos que pagou as expedições de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e outros.

D. João II deu provas de sua competência logo que chegou ao posto. A aristocracia portuguesa, assistindo às desventuras de um rei fraco e atabalhoado, D. Afonso, planejou um golpe de Estado. Um dos líderes era o duque de Bragança, primo de D. João II, que já havia reunido uma enorme milícia própria. Recentemente coroado, D. João convocou seu primo para uma negociação. Após receber o primo, mandou prendê-lo e matá-lo. Fez o mesmo com o duque de Viseu, seu cunhado – matou com as próprias mãos, com uma punhalada e sem mais palavras.

A nobreza de Borgonha, contemporânea da fundação do país, foi seriamente prejudicada pelas atitudes do rei. Tiveram seus bens confiscados, pela primeira estavam submetidos à Justiça estatal, e somente foi devolvido a quem jurasse lealdade à Coroa, de joelhos.

Passou D. João a recrutar na população homens de qualidade, submetidos a entrevistas e a exame de antecedentes. Os aprovados eram inseridos na Lista do Rei e recebiam cargos na administração pública e na magistratura. Daí surgiu o Conselho dos Sábios.

D. João II foi o rei que recusou a proposta de Cristóvão Colombo. Mesmo tendo achado a proposta um disparate, submeteu-a ao Conselho, que tomou a mesma decisão. São muitas as teorias por trás dessa recusa, mas os historiadores modernos creem que navegadores portugueses já tinham descoberto e já comercializavam com o território que viria a ser o Brasil – mas esse fato era mantido sob sigilo absoluto. Como o retorno contava com um transbordo na costa da África ocidental, diziam que as mercadorias eram dali originárias.

Bartolomeu Dias havia descoberto a rota do Oriente mais de dois anos antes da expedição de Colombo. Portugal havia enviado um espião secreto, Pêro de Covilhã, à Índia, via Oriente Médio, de onde regressou com mapas árabes e indianos, que apontavam para diversas rotas entre a África setentrional e a Índia.

Após sua bem sucedida viagem, Colombo retornou e aportou em Lisboa, antes de informar os reis espanhóis sobre a boa-nova – pretendia humilhar o rei que recusou sua proposta. Mas se decepcionou: D. João o informou de que o Tratado firmado entre ambos os países dizia que a descoberta de Colombo se encontrava dentro de domínios portugueses.

Quando Colombo chegou à Espanha, os reis já tinham sido informados sobre os acontecimentos por meio de missiva enviada por D. João II. Ele ameaçava enviar efetivos militares à Anguilha (nome sob o qual Colombo batizou sua descoberta), a menos que recebesse uma contraproposta generosa.

Aqui se iniciaram as negociações que levariam ao Tratado de Tordesilhas e à divisão do mundo entre os reinos ibéricos. Nesse contexto se encaixa a expedição de Cabral e a tomada de posse do quinhão português das Américas.

A essa altura, a moeda portuguesa já era a mais valiosa da Europa. Todas as dívidas portuguesas estavam saldadas e os impostos voltaram a ser vertidos para os cofres públicos. O fator decisivo havia sido o ouro africano. No território onde hoje é o Gana, Portugal inaugurou uma diplomacia comercial que suplantou a era dos piratas e corsários, violentos e ambiciosos, que seqüestravam e torturavam em troca de ouro.

Portugal optou por enviar membros da nova nobreza, como embaixadores, bem paramentados e portando carta régia, saudando elogiosamente suas contrapartes, para negociar. Diogo de Azambuja foi o enviado ao Gana – local de onde saía o ouro que alimentava o comércio árabe -, onde conheceu Accra e suas areias cobertas de ouro de fácil extração. Havia também o ouro que chegava do interior do continente.

A proposta portuguesa incluía a construção de um entreposto comercial e a cessão do monopólio de todo o ouro da região. A sedução portuguesa falou mais alto e a proposta foi aceita.

Nove caravelas e dois barcos também enormes foram usados para transportar um castelo de pedra, um armazém e uma capela, tudo devidamente desmontado e remontado na África. Assim nasceu o Castelo de São Jorge a localidade de São Jorge da Mina – como os portugueses se referiam a Accra. Na praça do comercio, em Portugal, D. João mandou construir a Casa da Mina, cofre de todo o ouro que chegava.

O maior desafio ao empreendimento era manter as dezenas de navios piratas ingleses, batavos, franceses e de outras partes, distantes. Mesmo assim aportavam em Lisboa mais de 400 quilos de ouro anualmente por volta de 1500.

(Continua)


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “A primeira aldeia global”

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