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terça-feira, 22 de agosto de 2017

D. HENRIQUE, NAVEGADOR OU TRAFICANTE DE ESCRAVOS?


Henrique era o terceiro dos cinco filhos do rei D. João I e da rainha D. Filipa. Era seguramente o menos culto dos cinco. D. Duarte era versado em assuntos de Estado. D. Pedro freqüentou cortes e universidades européias de prestígio – era dono de uma respeitável biblioteca. D. Henrique era mais lembrado por sua dedicação à caça e aos esportes típicos dos fidalgos da época.

Até que completasse 66 anos de idade, somente havia saído de Portugal em duas ocasiões. Na primeira, navegou até a costa do Marrocos. Na segunda, fincou pés no país e lá deixou seu irmão, D. Fernando, na condição de refém do califa de Tânger. Fernando faleceu no cativeiro, em Fez, morto dependurado pelos tornozelos no muro da cidadela.

Embora Henrique seja lembrado pelo seu patrocínio às grandes viagens exploratórias portuguesas, de fato o Estado foi responsável por menos de 1/3 do total. A mais ambiciosa chegou no máximo a Serra Leoa.

Henrique também se notabilizou como pretenso fundador da gloriosa Escola de Sagres. De fato, seu irmão Duarte concedeu-lhe a missão de estabelecer Sagres, mas a obra de Henrique se resumia À construção de uns modestos edifícios, explodidos por Sir Francis Blake, quando de regresso desde Cádis, onde ameaçou decididamente o rei da Espanha.

Henrique contratou um grupo de cartógrafos e astrólogos catalães, estudiosos judeus, mas não parecia haver qualquer escola de navegação. Aliás, o infante residia em Raposeira, pequena aldeia perto de Lagos.
Certo mesmo foi o papel de Henrique como promotor primeiro do nefasto comércio de escravos africanos. Não se sabe se futuramente derrubarão seus monumentos também...

Seu cargo mais importante foi o de grão-mestre da Ordem de Cristo – os novos templários. A principal função da Ordem era proteger Portugal contra sanha espanhola. O financiamento da Ordem vinha da pilhagem além-fronteiras, em terras espanholas. Outro meio era cobrar por proteção, no estilo milícias cariocas.

Portanto o estado de pé de guerra entre Portugal e Espanha garantia o pão à Ordem. Após a assinatura de um tratado entre as duas nações, a sustentação financeira da Ordem estava em risco.

Em 1413, um monge da Ordem regressava da Sicília, e hospedou-se em Ceuta, um dos mais ricos centros de comércio muçulmano. Após breve andança pela histórica cidade: assistiu à vida agitada da cidade, promovida pela presença de mais de 20 mil mercadores ali dedicados ao comércio de especiarias, tecidos, tapetes orientais, pedras preciosas trazidas do Japão, além do ansiado ouro do sul do Saara. E mais: as defesas da cidade pareciam muito frágeis, sem falar no fato de que estava em guerra contra seus vizinhos.

Por sua vez, Portugal ardia na febre do ouro. As minas de ouro desenvolvidas pelos romanos continuavam silentes. Aquelas preciosidades que tanto alegraram os romanos permaneciam no fundo das minas, por não mais se dominarem as técnicas de engenharia desenvolvidas pelos romanos – tiveram de ser reinventadas no final do século XIX.

Os mercadores árabes recebiam seus pagamentos em ouro. Os europeus passaram, naquela época, a consumir carne cada vez em maiores quantidades. Isso exigia temperos e condimentos asiáticos. A compra desses condimentos levou a uma pressão insuportável sobre a balança comercial das nações européias. Uma saída era a desvalorização da moeda local (inflação), levada a efeito por diversas dessas nações. Disso resultou uma crise de confiança enorme sobre o valor das moedas locais, o que paralisou o comércio externo desses países.

D. Henrique pensou numa saída diferente: pela via das armas! Um dia, sobre uma mesa do palácio real de Sintra, usando sacos de areia, feijões, papa de aveia e um rolo de fita, o grão-mestre dos templários criou uma maquete de Ceuta e de seus arredores.

Mais dois anos, e conseguiram reunir as tropas necessárias ao empreendimento. Arregimentaram-se mais de 19 mil soldados. Construíram 240 navios. Cavaleiros portugueses, normandos e alemães tomaram parte.
Tratou-se de empreendimento privado. A Ordem de Cristo financiou tudo, com vistas ao lucro. Não se viam símbolos portugueses, apenas a cruz dos templários. A Igreja os felicitou e desejou que tudo desse errado para os muçulmanos.

Pouco antes da partida, d. Filipa, mãe de Henrique, falecera. Mas não havia tempo para pesares. Ele cria que a partida breve era o último desejo de sua mãe.

Tendo sobrevivido a intensas tempestades, aportaram à noite em Ceuta. Junto com o amanhecer, Henrique liderou um assalto à cidade. Quase sem resistência, derrubaram o portão principal. O califa, assombrado com a quantidade de soldados e com a surpresa do golpe, debandou em retirada. A carta de rendição do califa lhes foi entregue por comerciantes genoveses que permaneceram no lugar.

O capelão consagrou a grande mesquita, que virou igreja. A pilhagem foi um sucesso, apesar do enorme número de riquezas destruídas no afã da vitória. Até estátuas de mármore foram desmontadas e levadas à casa. Depenada Ceuta, a cidade foi entregue à coroa portuguesa. Mas foi o fim daquele rico bastião: isolada das rotas de comércio, iniciou uma queda espetacular. Em 1425 já era um peso-morto para Portugal. Mas seria território português por mais dois séculos e meio.

Incendiado pelo sucesso da primeira expedição, D. Henrique decidiu liderar mais uma invasão, desta feita a Tânger. Pretendia 14 mil homens, mas somente conseguiu amealhar uns 3 mil. Os riscos eram tamanhos que nenhum aliado se dispôs a auxiliá-los. Mas Henrique estava decidido e, a 23 de agosto de 1437, partiram.

Desembarcaram em Tetuão e marcharam em direção a Tânger. Quando a cidade estava à vista, perceberam que trouxeram escadas muito pequenas para o tamanho da muralha da cidade. Montaram um acampamento fortificado em busca de uma solução para o impasse. Tinham pela frente 40 mil cavaleiros e 60 mil soldados de infantaria.

Sem que percebessem, se fechava em torno de si um grande cerco de berberes. A escaramuça seguinte vitimou quase a tropa toda, incluindo o cavalo de Henrique – mas este escapou.

Sem alimentos, os cavalos foram devorados pelos famintos cavaleiros. Bebiam lama, em busca de água.
O retorno foi conquistado após uma trégua negociada com o caifa. Os termos exigidos pelo califa incluíam a devolução de Ceuta, que teria D. Fernando, irmão de D. Henrique, como fiador: refém da corte do califa até que a devolução ocorresse. Henrique levou um filho do califa em troca.

A caminho das embarcações, a tropa foi assaltada por ladrões do deserto. Henrique entendeu aquilo como uma quebra do acordo e decidiu-se por não mais devolver Ceuta.

D. Duarte se desesperou diante da notícia do cativeiro do irmão Fernando. Henrique propôs uma expedição de 24 mil homens para salvar o irmão. Mas D. Duarte morreu ainda naquele ano, aos 49 anos de idade.

D. Henrique exerceu seu ofício de governador do Algarve até sua morte. Diga-se, Algarve sobreviveu separado do território português até meados do século XX. Embora contasse com terras férteis (a laranjeira asiático somente floresceu por lá), o Algarve não contava com praticamente nenhum camponês. Era área sub-povoada e sua população era de comerciantes, feirantes e pescadores.

Essa foi a realidade que despertou em Henrique o interesse pelo intenso comércio de escravos no mundo árabe. Os escravos eram raptados ou comprados ao sul do Saara. O desafio era imenso: nenhum europeu havia dobrado o Cabo Bojador e regressado. Mas era do infante a frase: “não há perigo tão grande capaz de superar a esperança do lucro.”

O progresso da indústria náutica fascinava: as galés usadas contra Ceuta foram superadas pelas caravelas que, por sua vez, ficaram obsoletas frente aos galeões. Mas as caravelas, patrocinadas pela Ordem, quebraram o isolamento europeu. Sua construção era segredo mantido a sete chaves. Foram as caravelas que substituíram os remadores pelo leme na traseira. Isso reduziu muito a necessidade de alimentos a bordo – e aumentou o tempo no mar. Completavam os ferramentais: bússola e astrolábio, importado dos árabes e aperfeiçoado pelos europeus.

Em 1435, fazendo pleno uso dos progressos descritos, Gil Eanes fez o impossível: dobrou o Cabo. Trouxe como prova uma planta: a Rosa de Santa Maria.

No ano seguinte regressou, ao lado de Afonso Gonçalves Baldaia, e desembarcou mais ao sul. Lá, avistaram pegadas de humanos e de camelos.

Em 1437, ocorreu o primeiro encontro entre europeus e africanos. Baldaia fora encarregado de capturar ao menos um africano e trazê-lo vivo. Baldaia desembarcou dois jovens fidalgos bons de caçadas para empreender a missão. Depararam-se com um grupo de 20 africanos que os fizeram regressar à base de pedras e paus.  

Baldai tomou conhecimento do ocorrido e partiu rio acima à procura do bando. Não os avistaram mais e mataram umas focas para vender a pele e ressarcir os custos da expedição.

Em 1441, Nuno Tristão levou um intérprete árabe consigo e tinha a mesma missão. Avistou um tuaregue e uma mulher negra. Deteve-os, mas o intérprete não os entendia e foram logo libertados.

À noite, Tristão chefiou um grupo que invadiu as matas à procura de futuros cativos. Chegando a um acampamento tuaregue, capturaram dez e mataram quatro. O líder falava bem o árabe: chamava-se Adahu. E o mais interessante: trabalhava como comerciante de escravos. Adahu e três companheiros dele foram levados ao Algarve.

Em Lagos, D. Henrique recebeu Adahu como a um cavaleiro. Recebeu roupas novas européias e instalações condignas. Adahu foi interrogado com muita curiosidade. Buscavam-se dele informações sobre a terra verdejante ao sul do Saara, a terra dos negros.

Adahu conseguiu sua libertação após entregar 4 escravos negros para cada tuaregue cativo. Foram levados ao Senegal. Oito dias depois, um mouro num camelo branco trouxe dez escravos para Baldaia, como combinado.

Como rastilho de pólvora, o comércio de escravos africanos se espalhou por toda a costa do continente negro. Pouco após, portugueses assaltaram um entreposto árabe de escravos, capturando 18 mercadores mouros. Arrancaram um resgate de 51 escravos negros guineenses e um leão – o primeiro leão africano a chegar à Europa. D. Henrique o usou para presentear seu preceptor em Galway, na Irlanda.   

Em 1443, Tristão avistou duas canoas vindo no mar, em sua direção. Os 14 homens a bordo foram capturados. Depois, mais 15 que haviam fugido para uma ilha também foram capturados. Neste ano, o papa concedeu a Henrique o monopólio de todo o comércio intercontinental até as Índias.

Meses após, Bartolomeu Dias aportou em Cabo Verde, o tal “país dos negros”. Eram seis caravelas que voltaram lotados de 235 escravos. Alguns tinham a pele clara, outros eram mulatos. Foram conduzidos a um descampado. Estavam cabisbaixos, com o rosto coberto de lágrimas. Alguns se esbofeteavam até cair no chão.

A angústia chegou ao auge na distribuição das “presas”. Para que ocorressem como combinado previamente entre as partes, precisaram separar mês e filhos, maridos e esposas, irmãos. Muitos precipitavam-se em direção ao outro em desespero. Mães pressionavam os filhos contra si, depois atiravam-se no chão, tudo para impedir o inevitável.

A multidão reunida para assistir à cena era enorme.

Henrique estava satisfeito e cedeu sua cota-parte de 46 escravos. Aprazia-lhe a previsão de que, após convertidos ao cristianismo, suas almas seriam salvas...


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “A primeira aldeia global”

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