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terça-feira, 15 de agosto de 2017

CRISTANDADE EM PORTUGAL, A RELIGIÃO DOS REVOLTOSOS


Arqueólogos descobriram em grandes partes de Portugal objetos abandonados, num episódio que lembrava uma grande onda de destruição por volta de 250 d.C. Não se tratava de uma horda de vândalos invasores, mas esta onda ocorreu muito antes da chegada dos alemães (povos germanos).

Os alvos das destruições e saques eram italianos ricos, detentores de grande parte dos bens e controlavam os centros de decisão da economia local. Eram reconhecidos pela dureza com que tratavam os escravos e trabalhadores assalariados. Destruíram-se suas fábricas e seus ricos casarões. Na região da Conímbriga, cidade termal onde vivam pessoas das altas classes, construiu-se um enorme muro de proteção. Mesmo assim a população o derrubou pouco tempo depois.

Chamou atenção o fato de que grande parte dos objetos destruídos eram objetos de culto pré-cristão; isto é, a causa das revoltas também envolvia cismas religiosos. O cenário das revoltas tinha de um lado pessoas convertidas à Igreja primitiva; de outro, a detestável ordem romana que representava as injustiças econômicas e sociais.

A resposta do Império veio a cargo do imperador Domiciano. Ele ordenou por édito que o culto aos deuses romanos e o pagamento dos respectivos tributos ocorressem em templos oficiais. Certificados expedidos na ocasião atestariam o cumprimento da determinação.

Segundo o historiador romano Quintiliano, o cristianismo era, àquela ocasião, apenas o mais recente dos diversos cultos vindos do extremo oposto do decadente Império: o Mediterrâneo oriental. Conceitos atualmente tão caros ao cristianismo eram largamente praticados pelos lusitanos pré-cristãos. A teologia da morte-ressurreição era conhecida dos cultos à deusa Isis. A deusa persa Mitras era objeto de sacramentos, como o batismo e a refeição sagrada (eucaristia). Os primeiros padres celebravam cultos em templos mitraístas e cristãos. O culto a Mitras sobreviveu na Lusitânia por dois séculos após a chegada do cristianismo.

Pois bem: qual foi o fator que desequilibrou a balança tão decisivamente para o lado do cristianismo na região da Lusitânia e além? Pesou bastante o fato de que Cristo era uma divindade relativamente recente, fora assassinado pela detestável classe dominante romana, igualmente opressora dos lusitanos, e ressuscitara triunfalmente ao final de sua penitência.

Outro fator decisivo em prol do cristianismo atendia pelo nome de Santiago, discípulo a que Jesus chamou “Filho do Trovão”. Segundo a lenda que envolve o seu nome, Santiago foi o primeiro a pregar em terras lusas, entre o ano da crucificação, 32 d.C., e o ao de sua decapitação, dez anos depois, na Judéia.

Ainda segundo a lenda, seu corpo se encontra sepultado de baixo da Catedral de Santiago de Compostela (palavra que significa Campo das Estrelas), na Galiza, a norte de Portugal. No entanto, sua cabeça teria sido mantida em ótimo estado de conservação em Braga, primeira cidade portuguesa, numa catedral construída com esse propósito. Essa lenda ainda atrai milhares de turistas e peregrinos anualmente.

Mas a verdade é que é muito improvável que alguma vez Santiago tenha estado na Ibéria. A fábula somente se manteria se seu corpo tivesse voado da Judéia à Ibéria sem a cabeça, envolto em vestes pontificais e rodeado de estrelas, após sua execução. Sua cabeça somente teria sido encontrada pelo bispo de Braga no século XII, em Jerusalém, no âmbito de uma peregrinação.

Alguns estudiosos do assunto dizem que o corpo sepultado em Compostela era um missionário alemão executado após perseguições empreendidas pelo imperador Máximo, no século IV. Seus restos mortais foram trazidos por seus seguidores, que fugiram das perseguições no norte da Europa.

Os textos de Santiago, codificados nas Cartas Católicas, ou Universais, forma os primeiros textos cristãos a aportarem na Ibéria atlântica. São anteriores mesmo aos textos de São Marcos. Crê-se terem sido trazidos por mercenários lusitanos integrados à Sétima Legião Romana, estacionada no norte da África, tendo sido lá mesmo convertidos à nova fé.

A comparação entre as Cartas Universais e as Cartas de São Paulo revela o motivo de assim terem sido denominadas pela Igreja primitiva:  as cartas de Santiago eram endereçadas difusamente, enquanto as de São Paulo eram direcionadas a pessoas e comunidades específicas.

Santiago costumava dizer que seus textos revelavam a “perfeita lei da liberdade”, que ele via se materializarem na revolta santa contra os ricos. Mas Santiago não odiava os ricos pelo simples fato de terem acumulado muitos bens, mas por se terem entregado aos luxos e prazeres, ignorando os próximos. Ainda sobrevivem sete versões manuscritas das tais cartas.

Herodes Agripa II condenou e mandou executar Santiago, em 42 d.C., na Judéia. A 4 mil km dali, na Ibéria, foi invocado como se fosse um santo local.

Nos estertores do Império, a produção agrícola e mineral local despencou, os escravos não eram mais instados tão facilmente a laborarem as lavouras, o poder local de esvaiu e o resultado foram as revoltas e destruições citadas no início do texto.

Das autoridades, ocupantes dos cargos mais elevados no modelo de administração pública constituída pelos romanos, somente restara com alguma relevância os bispos cristãos. Também eram eles os únicos que poderiam pleitear em Roma o reconhecimento da região, após sua pacificação. Desde o século III, a Igreja era a administradora de fato e o poder judiciário na Lusitânia.

O bispo de Mérida, notório corrupto, também passou à história como fundador do primeiro hospital da cidade, totalmente gratuito, e da primeira hospedaria destinada a visitantes, igualmente gratuita. Também fundou um banco que trabalhava com juros subsidiados, voltado à fomentação dos negócios.

Em 710, o rei visigodo, povo bárbaro oriundo da Alemanha e a essa altura detentores do poder na Lusitânia, Vitiza fora assassinado pelo fato da nobreza de então não aceitar que seu filho Agila ocupasse o trono. Queriam o outro filho, Rodrigo.

Agila pediu auxílio ao califa que dominava o Norte da África. O califa enviou então seu general Tarik (em homenagem a quem se denominou a região de Gibraltar (Jabal Tarik), acompanhado de 7 mil homens.
Apesar de contar com um exército muito mais numeroso, Rodrigo não dispunha do comprometimento de seus homens à causa: mantê-lo no Poder. Tarik foi derrubando as forças inimigas uma a uma, geralmente sendo muito bem recebido pela população local por onde passava. Bispos, nobres visigodos e família real fugiram para o norte, a Galiza. O chefe da Igreja na Ibéria escapou para Roma.

E assim o pequeno e indomável país ia tomando forma...


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A primeira aldeia global”


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