Arqueólogos descobriram em grandes partes de Portugal
objetos abandonados, num episódio que lembrava uma grande onda de destruição
por volta de 250 d.C. Não se tratava de uma horda de vândalos invasores, mas
esta onda ocorreu muito antes da chegada dos alemães (povos germanos).
Os alvos das destruições e saques eram italianos ricos,
detentores de grande parte dos bens e controlavam os centros de decisão da
economia local. Eram reconhecidos pela dureza com que tratavam os escravos e
trabalhadores assalariados. Destruíram-se suas fábricas e seus ricos casarões.
Na região da Conímbriga, cidade termal onde vivam pessoas das altas classes,
construiu-se um enorme muro de proteção. Mesmo assim a população o derrubou
pouco tempo depois.
Chamou atenção o fato de que grande parte dos objetos destruídos
eram objetos de culto pré-cristão; isto é, a causa das revoltas também envolvia
cismas religiosos. O cenário das revoltas tinha de um lado pessoas convertidas
à Igreja primitiva; de outro, a detestável ordem romana que representava as
injustiças econômicas e sociais.
A resposta do Império veio a cargo do imperador Domiciano. Ele
ordenou por édito que o culto aos deuses romanos e o pagamento dos respectivos
tributos ocorressem em templos oficiais. Certificados expedidos na ocasião
atestariam o cumprimento da determinação.
Segundo o historiador romano Quintiliano, o cristianismo
era, àquela ocasião, apenas o mais recente dos diversos cultos vindos do
extremo oposto do decadente Império: o Mediterrâneo oriental. Conceitos
atualmente tão caros ao cristianismo eram largamente praticados pelos lusitanos
pré-cristãos. A teologia da morte-ressurreição era conhecida dos cultos à deusa
Isis. A deusa persa Mitras era objeto de sacramentos, como o batismo e a refeição
sagrada (eucaristia). Os primeiros padres celebravam cultos em templos
mitraístas e cristãos. O culto a Mitras sobreviveu na Lusitânia por dois
séculos após a chegada do cristianismo.
Pois bem: qual foi o fator que desequilibrou a balança tão
decisivamente para o lado do cristianismo na região da Lusitânia e além? Pesou
bastante o fato de que Cristo era uma divindade relativamente recente, fora
assassinado pela detestável classe dominante romana, igualmente opressora dos
lusitanos, e ressuscitara triunfalmente ao final de sua penitência.
Outro fator decisivo em prol do cristianismo atendia pelo
nome de Santiago, discípulo a que Jesus chamou “Filho do Trovão”. Segundo a
lenda que envolve o seu nome, Santiago foi o primeiro a pregar em terras lusas,
entre o ano da crucificação, 32 d.C., e o ao de sua decapitação, dez anos
depois, na Judéia.
Ainda segundo a lenda, seu corpo se encontra sepultado de baixo
da Catedral de Santiago de Compostela (palavra que significa Campo das
Estrelas), na Galiza, a norte de Portugal. No entanto, sua cabeça teria sido
mantida em ótimo estado de conservação em Braga, primeira cidade portuguesa,
numa catedral construída com esse propósito. Essa lenda ainda atrai milhares de
turistas e peregrinos anualmente.
Mas a verdade é que é muito improvável que alguma vez
Santiago tenha estado na Ibéria. A fábula somente se manteria se seu corpo
tivesse voado da Judéia à Ibéria sem a cabeça, envolto em vestes pontificais e
rodeado de estrelas, após sua execução. Sua cabeça somente teria sido encontrada
pelo bispo de Braga no século XII, em Jerusalém, no âmbito de uma peregrinação.
Alguns estudiosos do assunto dizem que o corpo sepultado em
Compostela era um missionário alemão executado após perseguições empreendidas
pelo imperador Máximo, no século IV. Seus restos mortais foram trazidos por seus
seguidores, que fugiram das perseguições no norte da Europa.
Os textos de Santiago, codificados nas Cartas Católicas, ou
Universais, forma os primeiros textos cristãos a aportarem na Ibéria atlântica.
São anteriores mesmo aos textos de São Marcos. Crê-se terem sido trazidos por
mercenários lusitanos integrados à Sétima Legião Romana, estacionada no norte
da África, tendo sido lá mesmo convertidos à nova fé.
A comparação entre as Cartas Universais e as Cartas de São
Paulo revela o motivo de assim terem sido denominadas pela Igreja
primitiva: as cartas de Santiago eram
endereçadas difusamente, enquanto as de São Paulo eram direcionadas a pessoas e
comunidades específicas.
Santiago costumava dizer que seus textos revelavam a “perfeita
lei da liberdade”, que ele via se materializarem na revolta santa contra os
ricos. Mas Santiago não odiava os ricos pelo simples fato de terem acumulado
muitos bens, mas por se terem entregado aos luxos e prazeres, ignorando os
próximos. Ainda sobrevivem sete versões manuscritas das tais cartas.
Herodes Agripa II condenou e mandou executar Santiago, em 42
d.C., na Judéia. A 4 mil km dali, na Ibéria, foi invocado como se fosse um santo
local.
Nos estertores do Império, a produção agrícola e mineral
local despencou, os escravos não eram mais instados tão facilmente a laborarem
as lavouras, o poder local de esvaiu e o resultado foram as revoltas e
destruições citadas no início do texto.
Das autoridades, ocupantes dos cargos mais elevados no
modelo de administração pública constituída pelos romanos, somente restara com
alguma relevância os bispos cristãos. Também eram eles os únicos que poderiam
pleitear em Roma o reconhecimento da região, após sua pacificação. Desde o
século III, a Igreja era a administradora de fato e o poder judiciário na
Lusitânia.
O bispo de Mérida, notório corrupto, também passou à
história como fundador do primeiro hospital da cidade, totalmente gratuito, e
da primeira hospedaria destinada a visitantes, igualmente gratuita. Também
fundou um banco que trabalhava com juros subsidiados, voltado à fomentação dos
negócios.
Em 710, o rei visigodo, povo bárbaro oriundo da Alemanha e a
essa altura detentores do poder na Lusitânia, Vitiza fora assassinado pelo fato
da nobreza de então não aceitar que seu filho Agila ocupasse o trono. Queriam o
outro filho, Rodrigo.
Agila pediu auxílio ao califa que dominava o Norte da África.
O califa enviou então seu general Tarik (em homenagem a quem se denominou a
região de Gibraltar (Jabal Tarik), acompanhado de 7 mil homens.
Apesar de contar com um exército muito mais numeroso,
Rodrigo não dispunha do comprometimento de seus homens à causa: mantê-lo no
Poder. Tarik foi derrubando as forças inimigas uma a uma, geralmente sendo
muito bem recebido pela população local por onde passava. Bispos, nobres
visigodos e família real fugiram para o norte, a Galiza. O chefe da Igreja na
Ibéria escapou para Roma.
E assim o pequeno e indomável país ia tomando forma...
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A primeira aldeia global”
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