Após a incontida invasão árabe ao território da velha
Lusitânia, o califa Muça ibn Nusayr se deslocou do norte da África até a
Ibéria, no rastro de seus soldados. Ao constatar que a linha do seu exército se
encontrava mais de 200 quilômetros da costa adentro, o califa ficou furioso.
Quando seu general Tarik se aproximou do califa para cumprimentá-lo, este o
chicoteou e o questionou sobre os motivos de ter avançado tanto, sem
autorização do califa.
No entanto Muça logo observou que aquelas terras eram mais
aprazíveis e atraentes do que ele supunha: eram férteis, chovia bastante, o
clima era ameno. O Atlântico que o banhava era conhecido pelos árabes como “Mar
Tenebroso”. Pedras preciosas e minérios lá abundavam.
Após as primeiras derrotas cristãs, bispos, padres e monges
fugiram, deixando o poder local vago. Os judeus se viram com uma ótima
vantagem: eram os mais instruídos após a fuga das elites locais governantes.
Logo se dedicaram ao comércio. De fato, eram gratos aos árabes que os livraram
do anti-semitismo cristão de outrora.
Fato semelhante ocorreu com diversos cristãos que se
julgavam explorados pela Igreja.
Muça desembarcou ao lado de 18 mil cavaleiros árabes em 712.
Os judeus de Sevilha abriram um dos portões da cidade para os homens do califa.
A única localidade a demonstrar alguma resistência foi Mérida, capital
lusitana, liderada pelo bispo local. Mas caíram após quase um ano. Ademais, não
houve derramamento de sangue.
A marcha árabe atravessou os Pirinéus e chegou a Tours,
apenas 200 km de Paris. Mas não puderam avançar mais e se retiraram.
Aos aliados que facilitaram sobremaneira a invasão árabe,
Muça concedeu terras e altos cargos na administração pública. Quem não resistiu
pode usufruir de conveniências até então inimagináveis.
Não o era para aqueles que pretendiam reafirmar sua fé
diante dos novos governantes: a pena era a morte.
Os árabes permaneceram em Portugal pelos 400 anos seguintes.
Na Espanha, foram 650 anos de domínio ininterrupto. Os progressos árabes na
região superaram os feitos no Oriente Médio. O auge daquela civilização ocorreu
por volta do século X. Os governantes eram membros da família Abd AL-Rahman, da
Síria.
Foram eles que transferiram a capital dos seus domínios para
Cádis. Denominaram a sua nação de Al-Andaluz – Andaluzia significa “terra dos
vândalos”. A região do atual Portugal era então composta por três emirados:
Al-Qunu, atual Algarve; Al-Qasr, atual Alentejo; e Al-Balata, atuais Lisboa,
Sintra e Santarém.
Para os escravos, propriedade de lavradores e comerciantes
cristãos, o islã parecia especialmente sedutor. Segundo o Alcorão, quem liberta
um escravo agrada a Deus. Se um escravo escapasse de uma comunidade cristã e
alcançasse uma comunidade muçulmana, bastava declarar sua fé em Maomé diante de
pelo menos duas testemunhas para que obtivesse abrigo e proteção. Passavam a
ter imediatamente direito ao casamento e a possuir bens.
Embora fosem constantes as incursões noturnas de cristãos a
territórios inimigos com o fito de recuperar seus escravos, a estes os
muçulmanos ofereciam terras cultiváveis. Tais terras haviam sido confiscadas de
bispos que fugiram quando das invasões.
Um progresso técnico trazido pelos árabes foram as
irrigações. Importadas de Alexandria, as terras portuguesas foram as primeiras
na Europa a conhecerem essa técnica. Dois agrônomos, Ibn AL-Basaal e Ibn AL-Awaam,
escreveram manuais que ensinavam a concepção, construção e funcionamento de
rodas, bombas hidráulicas e condutos de água. Ensinavam também diversas
técnicas de plantio e colheita de culturas diversas.
As técnicas de irrigação permitiram importar também plantas
do Oriente Médio: bananeira, coqueiro, cana-de-açúcar, palmeira, milho, arroz. Diversos
alimentos receberam incentivo à sua produção: alfaces, cebolas, cenouras,
pepinos, maças, peras, uvas e figos.
O sistema agrícola árabe se caracterizava por ocorrer em
regime familiar e pelo cultivo intensivo. Vinhas eram plantadas debaixo de
laranjeiras e limoeiros, flores e hortaliças entre plantas.
O sistema de governo também passou por mudanças bruscas. O
sistema cristão era dominado pela Igreja, que por sua vez era dominada pelos
poderosos locais. OS padres acumulavam funções de juízes, governantes,
administradores de terras etc.
Os sistema árabe era uma aula de liberalismo. Os impostos
caíram sobremaneira, muçulmanos e convertidos eram isentos de diversas taxas. O
espaço administrativo deixado pelos cristãos não foi preenchido pelos novos
senhores. Por isso homens-bons (comerciantes e produtores locais) que se
organizavam em praças públicas e ali tomavam decisões importantes referentes ao
poder local. Também administravam os serviços sociais que protegiam viúvas e
órfãos.
Esses homens-bons se organizavam também em cooperativas de
produção de azeite e vinho. Os jovens em geral serviam em corporações de
bombeiros. Ainda hoje os bombeiros voluntários são importantíssimos num país
que sofre com incêndios florestais freqüentes.
Os escravos libertos precisavam ser repostos pelos árabes,
que os adquiriam de mercadores norte-europeus e de piratas locais, que
praticavam seqüestros em alto-mar. Os primeiros escravos assim adquiridos eram
eslavos, capturados por germanos no leste da Europa. As eslavas eram mais caras
e iam direto para os haréns. Eram tão numerosas que o termo “eslavo” passou a
designar todos os estrangeiros europeus em dado momento. A discriminação contra
tais europeus era tamanha que um rei árabe pintou seu cabelo loiro de preto
para se diferenciar dos “eslavos”.
Foram os árabes também que introduziram escolas, a grande
maioria gratuita, e universidades, as primeiras da Europa. A partir de então as
habilidades de escrita e leitura passaram a se disseminar nas sociedades
européias.
Na verdade, surgiu um conflito nesse processo. A língua
usada na matemática, na geografia, na história era o árabe. Mas os letrados de
então falavam latim. O processo de alfabetização em massa fazendo uso do árabe
revoltou a geração anterior. O documento intitulado Indiculus Luminus, de 854,
lia: “Os nossos jovens cristãos, com os seus ares elegantes e discurso fluente,
estão inebriados com a cultura árabe. Devoram e discutem avidamente os livros
maometanos, elogiando frequentemente a sua retórica, ao mesmo tempo que
desconhecem por completo a beleza da literatura da Igreja. Os cristãos ignoram
de tal modo as suas próprias leis, que dificilmente encontramos um homem entre
100 que seja capaz de escrever uma mera carta de forma inteligível, e até para
perguntar pela saúde de um amigo tem de o fazer em árabe.”
Daí surgiram os moçárabes. Quanto aos judeus, eram
respeitados pelos árabes como o “povo do livro” – o tal livro é a Bíblia.
Muitos alcançaram posição de destaque.
Muitos dos conhecimentos anteriores foram trazidos por
Al-Idrisi, celebra geógrafo árabe do século XII. Foi ele quem redescobriu minas
fundadas pelos romanos e abandonadas na era visigoda. Contando com a força de
milhares de homens, tais minas foram alargadas e passaram a fazer uso de
mercúrio. A produção de trigo superou a do Oriente Médio e pomares de figo se
multiplicavam no sul da Península.
A arquitetura árabe da Península, altamente matematizada
naquela era, desenvolveu-se de maneira distinta. Trabalhos em azulejo,
cerâmica, vidro e metal estavam bem adiantados. Lisboa contava com redes de
água, banhos públicos e esgotos, além de diversos fortes.
Em Córdova, pela primeira vez se acordou a existência do
número zero. Esse foi praticamente o nascimento da matemática como a
conhecemos.
Setúbal, ao sul do estuário do Tejo, contava com plantações
de pinhais que abasteciam a crescente indústria naval. Os famosos e belíssimos
jardins de Mondego foram descritos por Al-Idrisi.
A medicina evoluiu muito. Arib Bin Said escreveu um tratado
sobre ginecologia, embriologia e pediatria. Foi um grande avança em relação à
medicina grega. Uma tradução para o latim de texto médico árabe recebeu o
título de Thesaurus Pauperum (O Tesouro dos Pobres).
Em outra passagem, o mesmo escritor dá testemunho de tribos
de cavaleiros salteadores ao norte de Portugal. Foram eles, em conluio com França
e Inglaterra que invadiram o país e tentaram exterminar quatro séculos de
contribuições árabes. Obviamente não foram tão bem sucedidos nesse intento
quanto planejavam.
O sucesso de Portugal como nação teve um marco em 1276,
quando Pedro se tornou o primeiro e único papa português sob a denominação de
João XXI. Morreu esmagado, meses depois, quando o teto da biblioteca que
encomendara, para seu palácio em Roma, caiu sobre si. O detalhe interessante
foi que a tragédia foi precedida por uma intensa discussão entre o Papa e o Rei
de Portugal acerca da subordinação da Igreja ao Estado. Muitos suspeitaram de
assassinato.
Foram muitas as contribuições árabes, por exemplo, na
poesia. Escreveu o poeta arábico Ibn AL-Labban:
“Somos peças de xadrez nas mãos da fortuna
E o rei poderá cair às mãos de um humilde peão.
Não te preocupes com este mundo
Nem com as pessoas que nele vivem.
Pois agora este mundo está perdido,
Desprovido de homens dignos desse nome.”
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A primeira aldeia global”
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