Uma primeira impressão deixada pelos primeiros escravos
africanos a chegarem a Portugal foi relativa à religiosidade daquelas pessoas.
Uma frase dita por Azurara, cronista da época e próximo a D. Henrique: “Provaram
ser muito menos obstinados do que os mouros em relação à religião, tendo de
imediato aceitado o cristianismo”. Isto é, ao contrário do apego dos árabes por
seus símbolos religiosos, capazes de impeli-los à guerra santa, os africanos
recém-chegados se mostravam muito mais permeáveis a uma nova fé, diferente de
suas práticas religiosas em solo pátrio.
O sofrimento da divisão das “mercadorias” permanecia: um pai
poderia permanecer em Lagos, enquanto a mãe era vendida para Lisboa, ao passo
que o outro filho era enviado a outra parte qualquer.
Em África, o impacto dos novos invasores foi grande. Na
costa da África ocidental, o medo preexistente da captura e venda no âmbito do
comércio de escravos foi somado à crença local de que os europeus eram canibais
e queriam aquelas pessoas para um belo banquete... Os portugueses estavam ficando
bem famosos e despertavam ódio rapidamente.
Em 1446, apenas dois anos após o primeiro descarregamento de
escravos no Algarve, Nuno Tristão alcançou a foz do Rio Gâmbia. Subiu o rio ao
lado de um grupo de caçadores, distribuídos em 2 barcos. Subitamente foram
atacados por 80 guerreiros, que se moviam em 12 canoas. Atacaram os odiosos
lusitanos com flechas envenenadas. Tristão e a maior parte de sua tripulação
foram mortos em menos de uma hora. Mesmo os que escaparam do local morreram
poucos dias depois. Sobreviveram apenas um marinheiro ferido, dois grumetes e
um jovem africano, capturado havia pouco.
Esses sobreviventes navegaram para o norte, numa tortuosa
viagem de mais de 60 dias. Foram resgatados por piratas galegos, já na costa de
Portugal.
Tristão foi apenas um dos inúmeros europeus vitimados pela
nova febre. O comércio lucrativo de pessoas atraía ambiciosos e os vitimava com
a mesma facilidade. Um nobre dinamarquês de nome Eberhardt tentou achar outras
mercadorias para comercializar com o continente desconhecido. Tendo viajado de
Lagos até Cabo Verde, levava consigo uma tenda que ele mesmo criara, capaz de
abrigar até 30 pessoas, porém leve a ponto de apenas uma pessoa poder carregá-la.
O nobre dinamarquês pretendia trocá-la por um elefante.
A ignorância sobre as novas terras alimentava boatos sobre
escravatura branca praticada no interior da África.
Os chefes de tribos costeiras rapidamente perceberam a
lucratividade da atividade de capturar negros no interior e sua posterior venda
a europeus, no litoral. Por volta de 1447, a abundância de mão de obra escrava
era tal que o preço caía rapidamente. Nesse ano pelo menos um capitão,
carregando mais escravos do que os mantimentos necessários, decidiu atirar o “excesso
de carga” ao mar.
O monopólio papal concedido a Portugal era mantido pelos
lusitanos a ferro e fogo. Um espanhol foi flagrado cambiando cavalos andaluzes
por escravos (1 cavalo equivalia a 16 escravos). Quebraram-lhe todos os ossos,
por ordem de El-Rey. Ainda vivo, foi lançado numa fornalha.
D. Henrique faleceu em 1460. Àquela altura, cerca de 1.000
escravos eram desembarcados anualmente em Lagos. Já compunham a maior parte da
população do Algarve e representavam cerca de 10% da população de Lisboa.
Eram adquiridos então pacificamente, por meio de um contrato
de fornecimento firmado com o rei Badomel, cujo reinado estava fincado na costa
do atual Senegal. O lucro por viagem girava em torno de 600 a 700%, mantido
mesmo quando a demanda por escravos em Portugal caía, pois reinos no norte da
Espanha e vários países do norte da Europa supriam essa queda de mercado.
A maneira como os escravos eram tratados podia variar
bastante. Casamentos entre africanos e portuguesas não eram incomuns no
Algarve, assim como concessões de terras para o labor próprio. Aldeias como São
Romão e Rio de Moinhos testemunham esse passado por meio de sua enorme
população de arrozeiros negros. Geneticamente imunes à malária, aqueles negros
substituíam os brancos que morriam ou adquiriam-lhes as terras. Prosperaram
sobremaneira.
Mas isso era exceção. Em 1555, pouco mais de 100 anos após o
início daquele comércio medonho, o padre Fernando Oliveira classificava a
escravatura como uma espécie de tirania. Aproveitou para tirar a culpa
exclusiva dos ombros dos reis africanos, ao culpar também quem comprava aqueles
homens. Era isso que impulsionava a violência e o volume de negros capturados.
Quanto ao argumento da “salvação das almas”, dizia Fernando: “Inventamos um
comércio vil e cruel”.
A escravatura foi extinta em Portugal em 1773, e em todos os
seus domínios em 1836. Mas sobreviveu em alguns lugares como nomes cínicos como
“trabalho de aprendizagem”.
É errôneo limitar o comércio com a África aos escravos. Num
entreposto na Mauritânia, explorado por portugueses, havia comércio intenso de
goma-arábica, algodão, marfim e papagaios, plantas medicinais, cosméticos, temperos
e amaciantes de carnes e muito mais.
Não eram produtos com o mesmo prestígio daqueles importados
do Oriente, mas as pimentas alegravam muitos paladares. Seu baixo custo de
aquisição turbinou o mercado de reexportação para o norte da Europa.
A moeda com a qual essas mercadorias eram pagas alimentou um
intenso comércio em sentido contrário. Os reis africanos desejavam: vestuários,
cobertores, contas de coral vermelho, objetos de prata e, especialmente, trigo.
Portugal – e Algarve - importava toneladas desse produto para reexportar à
África Ocidental. A Ilha da Madeira, descoberta por volta de 1420, assim
batizada pela imensa quantidade de árvores lá existentes, depois de ser
incendiada e arder em chamas por mais de dois anos, tornou-se território
ultra-fértil. A providencial mão de obra africana labutou aquelas terras,
distribuídas entre membros da Ordem de Cristo, lá cultivando trigo largamente.
Tudo se destinava à aquisição de escravos dos reis africanos.
Quanto a D. Henrique, após abrir caminho para imensas
fortunas, recolhe-se a sua vida casta e sem luxos. Legou o monopólio do comércio
a seu sobrinho, D. Fernando, antes de morrer.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “A primeira aldeia global”
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