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quarta-feira, 23 de agosto de 2017

CRESCIMENTO DO COMÉRCIO DE ESCRAVOS AFRICANOS – CAPITALISMO SELVAGEM E IMPIEDOSO


Uma primeira impressão deixada pelos primeiros escravos africanos a chegarem a Portugal foi relativa à religiosidade daquelas pessoas. Uma frase dita por Azurara, cronista da época e próximo a D. Henrique: “Provaram ser muito menos obstinados do que os mouros em relação à religião, tendo de imediato aceitado o cristianismo”. Isto é, ao contrário do apego dos árabes por seus símbolos religiosos, capazes de impeli-los à guerra santa, os africanos recém-chegados se mostravam muito mais permeáveis a uma nova fé, diferente de suas práticas religiosas em solo pátrio.

O sofrimento da divisão das “mercadorias” permanecia: um pai poderia permanecer em Lagos, enquanto a mãe era vendida para Lisboa, ao passo que o outro filho era enviado a outra parte qualquer.

Em África, o impacto dos novos invasores foi grande. Na costa da África ocidental, o medo preexistente da captura e venda no âmbito do comércio de escravos foi somado à crença local de que os europeus eram canibais e queriam aquelas pessoas para um belo banquete... Os portugueses estavam ficando bem famosos e despertavam ódio rapidamente.

Em 1446, apenas dois anos após o primeiro descarregamento de escravos no Algarve, Nuno Tristão alcançou a foz do Rio Gâmbia. Subiu o rio ao lado de um grupo de caçadores, distribuídos em 2 barcos. Subitamente foram atacados por 80 guerreiros, que se moviam em 12 canoas. Atacaram os odiosos lusitanos com flechas envenenadas. Tristão e a maior parte de sua tripulação foram mortos em menos de uma hora. Mesmo os que escaparam do local morreram poucos dias depois. Sobreviveram apenas um marinheiro ferido, dois grumetes e um jovem africano, capturado havia pouco.

Esses sobreviventes navegaram para o norte, numa tortuosa viagem de mais de 60 dias. Foram resgatados por piratas galegos, já na costa de Portugal.

Tristão foi apenas um dos inúmeros europeus vitimados pela nova febre. O comércio lucrativo de pessoas atraía ambiciosos e os vitimava com a mesma facilidade. Um nobre dinamarquês de nome Eberhardt tentou achar outras mercadorias para comercializar com o continente desconhecido. Tendo viajado de Lagos até Cabo Verde, levava consigo uma tenda que ele mesmo criara, capaz de abrigar até 30 pessoas, porém leve a ponto de apenas uma pessoa poder carregá-la. O nobre dinamarquês pretendia trocá-la por um elefante.
A ignorância sobre as novas terras alimentava boatos sobre escravatura branca praticada no interior da África.

Os chefes de tribos costeiras rapidamente perceberam a lucratividade da atividade de capturar negros no interior e sua posterior venda a europeus, no litoral. Por volta de 1447, a abundância de mão de obra escrava era tal que o preço caía rapidamente. Nesse ano pelo menos um capitão, carregando mais escravos do que os mantimentos necessários, decidiu atirar o “excesso de carga” ao mar.

O monopólio papal concedido a Portugal era mantido pelos lusitanos a ferro e fogo. Um espanhol foi flagrado cambiando cavalos andaluzes por escravos (1 cavalo equivalia a 16 escravos). Quebraram-lhe todos os ossos, por ordem de El-Rey. Ainda vivo, foi lançado numa fornalha.

D. Henrique faleceu em 1460. Àquela altura, cerca de 1.000 escravos eram desembarcados anualmente em Lagos. Já compunham a maior parte da população do Algarve e representavam cerca de 10% da população de Lisboa.

Eram adquiridos então pacificamente, por meio de um contrato de fornecimento firmado com o rei Badomel, cujo reinado estava fincado na costa do atual Senegal. O lucro por viagem girava em torno de 600 a 700%, mantido mesmo quando a demanda por escravos em Portugal caía, pois reinos no norte da Espanha e vários países do norte da Europa supriam essa queda de mercado.

A maneira como os escravos eram tratados podia variar bastante. Casamentos entre africanos e portuguesas não eram incomuns no Algarve, assim como concessões de terras para o labor próprio. Aldeias como São Romão e Rio de Moinhos testemunham esse passado por meio de sua enorme população de arrozeiros negros. Geneticamente imunes à malária, aqueles negros substituíam os brancos que morriam ou adquiriam-lhes as terras. Prosperaram sobremaneira.

Mas isso era exceção. Em 1555, pouco mais de 100 anos após o início daquele comércio medonho, o padre Fernando Oliveira classificava a escravatura como uma espécie de tirania. Aproveitou para tirar a culpa exclusiva dos ombros dos reis africanos, ao culpar também quem comprava aqueles homens. Era isso que impulsionava a violência e o volume de negros capturados. Quanto ao argumento da “salvação das almas”, dizia Fernando: “Inventamos um comércio vil e cruel”.

A escravatura foi extinta em Portugal em 1773, e em todos os seus domínios em 1836. Mas sobreviveu em alguns lugares como nomes cínicos como “trabalho de aprendizagem”.

É errôneo limitar o comércio com a África aos escravos. Num entreposto na Mauritânia, explorado por portugueses, havia comércio intenso de goma-arábica, algodão, marfim e papagaios, plantas medicinais, cosméticos, temperos e amaciantes de carnes e muito mais.

Não eram produtos com o mesmo prestígio daqueles importados do Oriente, mas as pimentas alegravam muitos paladares. Seu baixo custo de aquisição turbinou o mercado de reexportação para o norte da Europa.

A moeda com a qual essas mercadorias eram pagas alimentou um intenso comércio em sentido contrário. Os reis africanos desejavam: vestuários, cobertores, contas de coral vermelho, objetos de prata e, especialmente, trigo. Portugal – e Algarve - importava toneladas desse produto para reexportar à África Ocidental. A Ilha da Madeira, descoberta por volta de 1420, assim batizada pela imensa quantidade de árvores lá existentes, depois de ser incendiada e arder em chamas por mais de dois anos, tornou-se território ultra-fértil. A providencial mão de obra africana labutou aquelas terras, distribuídas entre membros da Ordem de Cristo, lá cultivando trigo largamente. Tudo se destinava à aquisição de escravos dos reis africanos.

Quanto a D. Henrique, após abrir caminho para imensas fortunas, recolhe-se a sua vida casta e sem luxos. Legou o monopólio do comércio a seu sobrinho, D. Fernando, antes de morrer.


Rubem L. de F. Auto


Fonte: livro “A primeira aldeia global”        

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