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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

NAZISMO, CENSURA E O MEDO DO KING KONG


Estavam os onze homens numa sala de cinema de Berlim, durante o período governado pelos nazista. Alguns eram membros do partido nazista, outros eram profissionais que de uma maneira ou outra auxiliavam o governo com seus conhecimentos.

Ernst Seeger, chefe da censura, liderava as discussões. Perto dele, um produtor, um filósofo, um arquiteto e um pastor, seus assistentes. Completavam o elenco, um representante de uma companhia alemã de distribuição de filmes e duas testemunhas arroladas.

O filme em tela era King Kong, uma produção norte-americana recentemente aportada na Alemanha. Aquela exibição especial se iniciou por um texto lido pelo representante da companhia de distribuição, que pretendia deixar claro aos oficiais nazistas que se tratava de mera ficção, motivada por puro entretenimento. Passaram ao filme em si, durante o qual se ouviam comparações com A Bela e A Fera; ao cabo, iniciaram-se discussões sobre a adequação ou não de se permitir sua exibição na Alemanha.

Seeger passou a palavra ao professor Zeiss, do Ministério da Saúde, com a indagação acerca do seu potencial prejudicial à saúde dos espectadores. Dr. Zeiss iniciou sua resposta indagando sobre a nacionalidade da companhia distribuidora. Ao saber que era uma empresa alemã, berrou a todos os presentes: “Estou espantado e chocado que uma companhia alemã tenha ousado buscar permissão para um filme que só pode ser prejudicial à saúde de seus espectadores. Ele não só é meramente incompreensível como é, na verdade, uma impertinência exibir um filme desses, pois ele não é nada mais do que um ataque aos nervos do povo alemão!”

Após uns instantes de silencia, dr. Zeiss voltou à carga, mas agora focado em sua área de especialização: “É uma provocação aos nossos instintos raciais mostrar uma mulher loira de tipo germânico na mão de um macaco. Isso ofende os sentimentos raciais saudáveis do povo alemão. A tortura a que essa mulher é exposta, seu medo mortal... e as outras coisas horríveis que alguém só poderia imaginar num frenesi alcoólico são prejudiciais à saúde da Alemanha.”

Completou seu discurso apavorado, assim: “Meu julgamento não tem nada a ver com as façanhas técnicas do filme, que eu reconheço que há. Nem me importo com o que outros países pensem que seja bom para seu povo. Para o povo alemão, esse filme é intolerável.”

Por sua vez, dr. Schultz, médico psiquiatra, defendeu argumentos mais comedidos e equilibrados: “Em cada uma das instâncias em que o filme potencialmente parece perigoso, ele é na verdade meramente ridículo. Não devemos esquecer que estamos lidando com um filme americano produzido para espectadores americanos, e que o público alemão é consideravelmente mais crítico. Mesmo que se admita que o seqüestro de uma mulher loira por uma besta lendária é um assunto delicado, isso ainda não vai além dos limites do permissível.”

E assim arrematou sua exposição:”Psicopatas ou mulheres que poderiam ser lançados ao pânico pelo filme, não devem fornecer os critérios para essa decisão.”

Pouco antes dessa discussão acalorada, todas as instituições culturais alemãs foram postas sob o guarda-chuva do Ministério da Propaganda, área de atuação do todo-poderoso Joseph Goebbels. Ninguém sabia muito bem o que poderia ou não ser feito, mas também sabiam que não poderiam cair em desgraça com o Ministro. Seeger, precavido, pediu então que o próprio Ministério se manifestasse sobre o caso. A resposta seria analisada numa próxima reunião, marcada para a semana seguinte.

Apesar da recomendação do Ministério da Saúde pela não exibição do filme, o Ministério da Propaganda não viu qualquer risco à “raça” alemã, que o filme provocar. Depois, então, a reunião foi remarcada.
Inicialmente decidiu-se pôr um título alemão ao filme, de modo a deixar claro para o público que se tratava de uma obra de ficção. Decidiu-se então pelo seguinte título prolífico: A Fábula de King Kong, um Filme Americano de Truque e Sensação.

Seeger então passou a ler um resumo da obra em apreço: “Numa ilha ainda não descoberta nos Mares do Sul, animais de tempos pré-históricos ainda não conseguem existir: um gorila de 15 metros de altura, serpentes do mar, dinossauros de vários tipos, um pássaro gigante e outros. Fora desse império pré-histórico, separados por um muro, vivem negros que oferecem sacrifícios humanos ao gorila, King Kong. Os negros raptam a estrela loira de uma expedição de filmagem na ilha e a dão de presente a King Kong no lugar de uma mulher de sua própria raça. A tripulação do navio invade o império do gorila e trava terríveis batalhas com as bestas pré-históricas, a fim de sobreviver. Eles capturam o gorila depois de deixá-lo inconsciente com uma bomba de gás e o levam para Nova York. O gorila foge durante uma exibição, todos correm em pânico e um trem que passa por um elevado é descarrilado. O gorila então escala um arranha-céu com sua garota-boneca na mão, e alguns aviões conseguem derrubá-lo de lá.”

Lido o minucioso resumo, Seeger informou a todos que o Ministério da Propaganda não vira qualquer empecilho à exibição por motivos relacionados à “raça” alemã. Restava então analisar seu impacto sobre a saúde do povo.

Seeger manteve suas considerações a respeito da pureza racial. Dizia que o próprio excerto do discurso que fizera ainda há pouco, “no lugar de uma mulher da sua própria raça”, remetia ao famoso discurso de Thomas Jefferson, de 150 anos antes, quando este entendia que a preferência dos homens negros por mulheres brancas era tão uniforme “como a preferência do Orangotango pelas mulheres negras em detrimento daquelas de sua própria espécie.”

Interessante notar que esse argumento exposto por oficiais alemães era semelhante à propaganda de americanos e ingleses durante a I Guerra Mundial, quando soldados alemães eram retratados como gorilas selvagens que ameaçavam as puras e inocentes mulheres brancas. O ódio contra propagandas como essa ajudaram a engrossar as fileiras nazistas durante a II Guerra.

Embora o dr. Zeiss continuasse crítico, vendo  eventual insalubridade trazida pelo filme, a comissão rejeitou seus argumentos, por achar que “o efeito geral desse típico filme americano de aventura no espectador alemão é meramente prover entretenimento kitsch, de modo que não se deve esperar nenhum efeito incurável ou persistente na saúde do espectador normal.” O filme foi aprovado, mas com cortes de alguns trechos, como os close-ups do gorila segurando a mocinha aos berros na sua mão – Zeiss via aí eventual efeito danoso à saúde do povo. A cena do trem descarrilando também foi cortada, por “abalar a confiança das pessoas nesse importante meio de transporte público.”

O filme estreou nas salas alemãs em 10 de dezembro de 1933, recebendo imediatas resenhas nos principais jornais. O jornal nazista Volkischer Boebachter criticou o uso da expressão Fábula: “Tudo o que sabemos é que quando nós, alemães, ouvimos a bela palavra “fábula”, imaginamos algo bem diferente desse filme.”

Ao fim, soube-se que o próprio Hitler tinha King Kong como um dos seus filmes preferidos. Talvez fosse a imagem do ser poderoso que tinha sua amada indefesa na palma de suas mãos...   


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “A colaboração: o pacto entre Hollywood e o nazismo”


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