Orador brilhante, Demóstenes fez carreira vitoriosa na
Atenas de meados de 350 a.C., aproveitando-se do pleno funcionamento do
tribunal de justiça, cujas sentenças eram emitidas por júri popular. Foi
convencendo o júri de suas razões que Demóstenes conseguiu uma proeminência
quase única naqueles dias.
Mas ele precisava de mais para alcançar a importância que
perseguia. Ele precisava de um alvo, de um inimigo, de uma política que o
fizesse figurar no lado oposto de um embate. E a conturbada Grécia de então
logo lhe forneceria esse alvo: o rei Filipe da Macedônia.
Logo após sua incursão na parte central da Grécia, tornou-se
claro a Demóstenes que aquele homem era uma ameaça bastante real à Atenas de
Demóstenes. Já a partir de 351 a.C., o orador popular passou a acusar sua amada
cidade, com cada vez mais afinco, de imprudência e miopia, ao não se opor
aquele voraz invasor.
Orgulhoso cidadão de Atenas, Demóstenes trazia ainda o
cacoete típico de quem sentia saudades dos gloriosos tempos do império de
Atenas: nutria antipatia por quaisquer forasteiros e via sua cidade como o topo
da civilização. Considerando-se os tempos atribulados de então, quando as conjunções
dos astros cambiava segundo a segundo, Demóstenes deva sinais claros de um
certo anacronismo, incompatível com a globalização que vinha a galope,
aproximando cidades e civilizações distantes e distintas.
Mas todo confronto traz adversários, e Demóstenes logo
encontraria um, que deveria enfrentar no seu próprio campo de batalha: era
Ésquino, igualmente brilhante na oratória, mas afiliado à facção pró-Filipe,
que começava a ganhar corpo.
Nascido pobre, inicialmente dedicado ao ofício de ator,
Ésquino se tornou soldado ao combater na importante Batalha de Mantineia, em
362 a.C. Passo seguinte, tornou-se orador perante o tribunal de justiça e embaixador,
enviado por Atenas em diversas missões. Desde que se encontrara com Filipe pela
primeira vez, em missão oficial, demonstrou grande simpatia pelo rei macedônio,
tendo se tornado seu homem em Atenas, fato que despertou profunda ira em
Demóstenes.
O embate entre os dois oradores logo descambou para ataques
por meio de ações judiciais caluniosas. Demostenes inicialmente acusou Ésquilo
de ser filho de prostituta. Ésquilo contra-atacava dizendo ser Demóstenes, de
fato, filho de uma bárbara, oriunda de uma cidade remota no Mar Negro.
Demóstenes então acusou Ésquilo de ter sido subornado por Filipe. Então Ésquilo
acusou Demóstenes de ter recebido dinheiro dos persas. Demóstenes passar então
a perseguir os aliados de Ésquilo com múltiplos processos judiciais, ao passo
que este último processava Demóstenes por impureza religiosa, abusos sexuais e comportamento
político tirano.
O objetivo de ambos era macular sua reputação, de forma a
enfraquecer seus discursos na Assembléia. Sem falar na perda da credibilidade
de sua lealdade à cidade.
De fato, esse embate dividiu a população ateniense em dois
campos opostos: os prós e os contra-Filipe.
O campo contra-Filipe trazia outro orador respeitado,
Hipereides, servidor público bastante elogiado, embora frequentemente censurado
por seu comportamento na vida privada. O lado que apoiava Ésquilo compreendia
um homem chamado Dêmades, autor de uma pérola de sinceridade ao comentar sobre
um poeta que recebia dinheiro por cada poema que recitava: “Se acham
impressionante que esse homem receba um talento para recitar, fiquem sabendo
que recebo dez vezes mais do rei da Macedônia só para ficar calado.”
Àquela altura, Isócrates, o mais famoso comentarista
político de Atenas, ao analisar o complicado contexto político vigente,
verificou que a Grécia precisava de um líder forte, algo que Atenas, a seu ver,
não seria capaz de fornecer. Escreveu então uma carta aberta intitulada: A
Filipe. À beira dos cem anos – contava 98 quando morreu -, Isócrates via Filipe
como o salvador da civilização grega, o homem capaz de conter os bárbaros,
fixar as fronteiras e organizar as cidades. E assim procedeu o rei macedônio.
Por volta de 352 a.C, Filipe já havia conquistado o
santuário internacional de Delfos. Aproveitou para dar provas de sua exigência
moral ao punir severamente os generais que havia permitido a dilapidação dos
seus tesouros. Filipe agora governava a Macedônia e a Tessália. Porém seu
avanço mais ao sul foi bloqueado por uma conjugação dos exércitos de Atenas e
de Esparta, que defenderam o crucial estreito das Termópilas.
Estrategista militar habilidoso, Filipe procurou contornar
tal estreito por meio da invasão da ilha de Eubeia, há muito território de
Atenas e que se aproximava do continente, no seu ponto mais ocidental, até
cerca de 40 metros das praias atenienses. Foi então que o macedônio passou a
fomentar rebeliões internas na ilha. Simultaneamente, Filipe procurou cortar a
rota de suprimentos de grãos que abasteciam Atenas.
Percebendo a os percalços que já vinha causando à cidade que
almejava, Filipe passou então a propor um tratado de paz. Foi um golpe em
Demóstenes, já que dividia ainda mais a cidade em grupos opostos. Se Demóstenes
preconizava a guerra, Filipe agora demonstrava querer a paz. Os planos do
primeiro, de realizar uma ampla aliança entre cidades para fazer frente a
Filipe, deparavam-se agora com uma proposta que amornava completamente os
ânimos.
Em 346 a.C., Demóstenes e Ésquino foram enviados em missão À
Macedônia, para tratar diretamente com Filipe. A previsão de que as desavenças
entre os dois poria água abaixo os termos do acordo se concretizou: os dois se
engalfinharam nos tribunais, cada qual acusando o outro de traição.
Filipe era estrategista: percebendo a demora nas
negociações, subornou mercenários, afastou potenciais aliados de Atenas e
garantiu sua passagem pelas Termópilas, sem grandes percalços.
O passo seguinte foi assegurar-se da conquista de Delfos,
logo promoveu os jogos sagrados, para celebrar sua vitória, viu a Atenas
ajoelhada assinar um tratado de paz com o agora Senhor da Grécia Central, e
organizou um belo banquete, para o qual convidou seu homem-em-Atenas, Ésquino.
Mas Demóstenes não se deu por vencido e passou a atacar de
todas as formas o recentemente assinado Tratado de Paz.
Filipe agora apontava suas armas em direção ao Peloponeso,
sul da Grécia. Demóstenes então passou a contatar cada uma delas para que não
se bandeassem para o lado mecedônio. Mas era difícil: já então Filipe era visto
como o garantidor da paz, pois equilibrava a balança que antes pendia para
Atenas e Esparta.
Ainda não se dando por vencido, Demóstenes retornou À
Assembléia e exortou os concidadãos a, pelo menos, renegociarem os termos do
tratado de paz. Naqueles dias, Filipe levava seu poderio militar à Trácia,
trazendo para o interior das fronteiras da Macedônia o alto mar Egeu, a Ásia
Menor e parte do império persa.
Ao mesmo tempo em que Demóstenes levava o embate entre as
cidades à beira da guerra, muitos se indagavam: teria Atenas alguma chance
contra a maior potência grega do momento? Poucos acreditavam nisso, e o maior
temor no momento era um ataque mortal contra o maior patrimônio ateniense: sua
democracia.
O medo era tamanho que logo lançaram um censo para saber exatamente
quem tinha direito à cidadania: era resultado do medo de que sua democracia
fosse usada contra seu próprio interesse. Também aproveitaram para aumentar as
penas para quem fosse condenado por agir contra a democracia.
Nesse mesmo compasso, Demóstenes foi enviado a Bizâncio para
reafirmar a aliança entre Atenas e aquela cidade: Bizâncio havia saído da liga
ateniense em 350 a.C., mas Demóstenes pretendia reaproximar as duas cidades,
garantindo assim o abastecimento de Atenas com cereais. Demóstenes foi bem
sucedido em seu intento.
Quando de seu retorno, Demóstenes passou por Eubeia e
conseguiu conter as rebeliões locais. Chegando a Atenas, embora ainda sem
conseguir frear o lado pró-Filipe, Demóstenes foi efusivamente homenageado. Era
agora a maior autoridade ateniense.
Percebendo as manobras perspicazes de Atenas, Filipe lançou
um cerco contra Bizâncio. Agora era oficial: Atenas e Macedônia estavam em
guerra. Contudo, o resultado foi surpreendente: as defesas de Bizâncio, somadas
à esquadra ateniense, forma suficientes para refutar o ataque macedônio. Um
suspiro aliviado foi seguido por reflexões: seria realmente possível a Atenas
vencer a Macedônia?
Pouco após, um terremoto pôs o santuário de Delfos abaixo. Sua
reconstrução o pôs novamente sob o governo de Atenas. Anfissa, cidade mais
próxima do templo, discordando profundamente da atitude de Atenas, levou o
litígio ao conselho de cidades que governavam Delfos. O representante de Atenas
foi Ésquino, que aproveitou o momento culpar Anfissa, acusando-a de sacrilégio.
O fato e que Filipe aproveitou a acusação de Ésquilo e pôs-se
a invadir todas duas cidades ao sul: Anfissa e Elateia. Agora Filipe estava a
apenas dois dias de caminhada de Atenas. Aproveitou para enviar um ultimato a
Tebas e à Beócia. Filipe punha Atenas, definitivamente, no Eixo do Mal, ao lado
de quem a apoiasse. Atenas emudeceu de medo. Parecia que o fantasma persa de
século e meio antes ressurgira, mas agora poucos criam na vitória.
Demóstenes foi quem rompeu o silêncio e propôs algo de
acordo com o que vinha pregando até então: apoio a Tebas e oposição a Filipe. Nesse
sentido, foi enviado a Tebas para comunicar que não lutavam sozinhos, pois
Atenas estaria ali, lutando lado a lado.
Tarefa inglória: não foram poucos os momentos em que Atenas
deixou os tebanos sozinhos, no relento, contra adversários mais fortes, como
Esparta. Por que agora fariam frente a Filipe se o alvo era Atenas? Seja como
for, Demóstenes deu um dos seus shows de oratória e conseguiu convencer os
tebanos a fazerem barreira contra a investida macedônia.
Os ânimos gregos foram tão insulflados por Demóstenes em
direção a uma batalha contra a Macedônia, que todo aquele que se opusesse,
agora, ao iminente conflito era logo taxado de traidor de Atenas. Mesmo Fócion,
heróico general que evitou a vitória de Filipe em Bizâncio, passou a ser alvo
de ataques, pois se opunha claramente à necessidade daquele conflito. Demóstenes
chefou a alertá-lo: “Os atenienses o matarão, Fócion, se ficarem ainda mais
indignados.” Ao que Fócion logo respondeu: “Sim, mas haverão de matá-lo se
caírem em si.”
Procurando fortalecer seu contingente armado, propuseram em
Assembléia a libertação dos escravos e seu armamento, para lutarem nos campos
de batalha.
A batalha teve início, finalmente, em 338 a.C., em
Queroneia, centro da Grécia. Exércitos perfilados, Filipe assumiu o comando da
infantaria, enquanto seu filho, Alexandre, liderou a cavalaria. Os primeiros
adversários de Filipe foram os famosos 300 amante masculinos do Bando Sagrado
de Tebas, até então inéditos em batalha. Completavam o quadro o resto do
exército de Tebas e as tropas atenienses.
Demóstenes estava lá, em meio aos soldados. Quanto a Ésquino,
ninguém soube informar seu paradeiro. Estava ali armado o circo que vinha sendo
formado nos últimos quinze anos.
O local de batalha até hoje é adornado com dois monumentos,
um tebano e outro macedônio. Nesse local jazem quase todos os membros do Bando
Sagrado. Foram todos enterrados em valas comuns, que ainda hoje exibem a
crueldade do embate ali encenado.
Quanto aos atenienses, calcula-se me mais de dez mil os
mortos, sendo mais de dois mil capturados. As pilhas de corpos em decomposição
deram origem a uma praga que dizimou Atenas no inverno seguinte.
Do lado macedônio, no local do monumento foi erguida uma pira
fúnebre, em que se incineraram os mortos. Os ossos foram cobertos por terra,
resultando num monte de sete metros de altura e 70 de largura.
Mirando para a pira fúnebre, foi erguido o Leão de
Queroneia, gigantesca escultura feita com pedras locais: representa Filipe, o
Leão da Grécia, dando suas boas vindas...
Voltando a Demóstenes, responsável direto pelo massacre ora
encenado, fugiu do campo de batalha de maneira desonrosa e covarde. O príncipe
das trevas de Atenas deu mostras de uma covardia inominável.
Terminada a carnificina, Dêmades, Ésquino e Fócion forma
enviados para firmar um tratado de paz. Filipe, apesar da acachapante vitória,
comportou-se de maneira digna e altiva, pois libertou todos os soldados
capturados e não exigiu resgate. Demonstrando certa falta de noção da amplitude
do que ocorrera, os emissários pediram a devolução também dos trajes e das
roupas de cama. Filipe não se conteve frente a seus funcionários: “Não lhes parece
que os atenienses acham que foram apenas derrotados num jogo de tabuleiro?”
Mas Filipe ainda trazia rancores contra Demóstenes, quem o
forçara a entrar numa batalha de vida ou morte contra um adversário respeitável.
O rei Macedônio queria sua cabeça a qualquer custo. Seria compreensível se os
atenienses a entregassem de bom grado.
Mas não foi exatamente isso que se desenrolou. Demóstenes
foi protegido pelos atenienses e ainda foi convidado para realizar o elogio fúnebre
dos atenienses mortos. Nele, o famoso orador mistura partes em que culpa a
cidade e suas imprecauções: “Havia insensatez e também negligência entre os
gregos, que não entenderam os riscos nem fizeram algo a respeito num momento em
que ainda era possível ter evitado o desastre ... mas agora, como no momento em
que a luz do dia é retirada deste mundo e tudo se torna árduo e difícil, agora,
portanto, mortos esses bravos homens, toda a beleza e o esplendor da Grécia
estão mergulhados em trevas e na mais profunda escuridão.”
Quanto a Isócrates, o importante analista político ateniense,
no último dos seus 98 anos de existência debandou para o lado pró-Filipe.
Percebera que somente aquele homem poderia levar a civilização grega,
novamente, a seus dias mais gloriosos. Foi o que expôs em carta enviada a
Filipe.
Após, passou seus últimos quatro dias recusando qualquer
alimento, até seu desfalecimento final. Foi seu último protesto contra a
decadência de sua amada cidade.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro: Dos democratas aos reis ....”
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