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quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

COMING FROM THE DIRTY: COMO SURGIRAM OS HERÓIS DA RESISTÊNCIA CONTRA PESTES


Segundo alguns historiadores, é possível identificar no período que se estende do século XI ao XV, uma revolução agrícola que permitiu uma melhor alimentação e propiciou o aumento populacional do continente de 25 milhões de pessoas em 950 para 75 milhões em 1250.

As pessoas viviam geralmente em aldeias ou povoados minúsculos, separados uns dos outros por enormes distâncias. Em meados do século XIV, por exemplo, a França era o pais mais populoso do continente, contando com cerca de 20 milhões de pessoas. A Inglaterra, no mesmo período tinha 6 milhões.

Ainda eram tempos de sistema feudal, portanto todas as terras pertenciam ao rei. Incapaz de aproveitá-las por si só, concedia enormes domínios a nobres, que se comprometiam a trabalhá-la e defendê-la contra ataques externos. Os nobres, no entanto, concediam partes do que receberam a cavaleiros, estes sim obrigados a ir ao conflito caso houvesse. Por fim, as subdelegação alcançavam o homem simples, do povo, que ficava obrigado a trabalhar alguns dias da semana para seus suseranos, em troca da concessão de um lugar para morar e trabalhar.

A maior parte absoluta das pessoas eram camponeses, que laboravam usando ferramentas bastante primitivas e estavam sujeitos a todo tipo de intempérie. Começavam o plantio pela semeadura, aproveitando os dias curtos e frios do inverno, esperando colher os alimentos no verão, quando ocorriam festas que reuniam todos os moradores das aldeias.

As pessoas eram divididas em classes sociais, cujo pertencimento era desígnio divino, e raramente se ascendia para outra classe. Questionar essa ordem das coisas era impensável, e mesmo que se se pensasse corria-se o risco de sofrer punições terríveis. Até mesmo se mudar de cidade, vila ou aldeia era raro.

Ainda que a produção agrícola da Baixa Idade Média tivesse aumentado, o incremento populacional foi tal que a fome continuava a ser uma sombra que volta e meio se projetava sobre as pessoas. Quando tal desgraça ocorria, a solidariedade entre vizinhos e parentes aplacava seus efeitos. Os mais pobres eram esquálidos e pálidos normalmente, podendo passar períodos de fome. Comia-se a mesma coisa todos os dias: sopa de ervilha, vagens, legumes, um pão duro e escuro, por ser produzido a partir de cereais inferiores, que traziam ainda o risco de se morder terra ou pedra dos locais onde se moíam os cereais. Cultivavam-se trigo, aveia, cevada, centeio, criavam-se galinhas, porcos e abelhas nos quintais. Queijos e ovos também estavam disponíveis aos mais pobres. O tipo de carne mais consumida entre os pobres eram resultado de caças: coelhos eram bem comuns. Em dias de festas era possível comer carne de carneiro, veado. As panelas dos pobres eram feitas de barro ou de ferro, e o fogão era a lareira. Bebiam um tipo de cerveja com pouca concentração de álcool, ou o famoso aguapé, um vinho misturado com água.

Bem diferente viviam os ricos. Comiam em torno de mesas grandes, os pratos eram servidos por pajens. Contavam sobre a mesa com: cozidos, assados, doces como o pudim. A carne também vinha de caçadas, porém eram bem mais gordurosas e freqüentes. Comer carne era sinal de prestígio. Bebiam vinho, sidra ou um suco de pera fermentado.

Ser comilão era de tal maneira prestigioso que reis que não se empanturravam eram mal vistos pelos súditos, como ocorrera com o Duque de Espoleto, a quem fora recusada a coroa francesa por seus hábitos alimentares contidos. Isso, apesar do pecado da gula...

Uma carne bastante consumida era a de porcos, que viviam nos bosques nos arredores das cidades. O fruto do carvalho também era apreciado. Comiam-se peixes em profusão. Costumavam-se criar pomares ao redor das casas, o que propiciava o consumo de frutas. Para adocicar o paladar, mel era mais comum do que açúcar.

Nas cidades, adquiriam-se os alimentos em mercados, ao contrário dos camponeses, que contavam basicamente com sua produção. Também nas cidades se dava o consumo mais freqüente de carne, muitas vezes de boi, embora fosse mais comum seu uso como ferramenta de trabalho. Nas cidades também era mais comum o consumo de pão de trigo, ao contrário do pão preto do campo.

Talheres eram em geral desconhecidos, usando-se apenas uma faca para cortar alimentos, unha, tirar verrugas... Como não era incomum consumir alimentos podres, ou quase podres, era aconselhável fazer largo uso de especiarias e condimento: pimentas, canelas, gengibre, cravo-da-índia. No entanto, especiarias ainda eram muito caras, quase exclusivas dos ricos.

O dia a dia de um comerciante abastado morar de uma cidade se iniciava com a oração diária, após acordar. Em seguida passava ao café da manhã, quando comia um pedaço de pão, bebia vinho e ia trabalhar. De negociação em negociação, chegava ao mercado, onde adquiria mercadorias para sua loja. Por volta das 10 horas da manhã, retornava à casa, onde almoçava. A depender de suas capacidades financeiras, poderia se empanturrar: assados, pastéis, tortas, caldos, legumes. Já o jantar corria pelas 6 horas da tarde. A hora de dormir girava em torno das 9 horas.

As leis eram bastante rigorosas com relação a pesos e medidas. O padeiro que fraudasse no peso ou na qualidade dos pães que vendia estava sujeito a punições como ser arrastado pelas ruas em estrato puxado por um cavalo, ouvindo a população zombar dele a plenos pulmões.

O destino manifesto pregava o casamento, quase incondicionalmente. Aos doze anos as meninas alcançavam a idade para o matrimônio; para os meninos, a idade era de 14 anos, quando se dava sua entrada na vida adulta. Aos sete anos apenas, uma menina já poderia estar comprometida a um homem.

Nas famílias nobres, os pais contavam com a ama de leite, quem alimentava os bebês, além das empregadas que tomavam conta das crianças. As famílias pobres evidentemente só contavam com si mesmas.

A infância dos nobres era curtida até os sete anos, mais ou menos. Após, se menino, era enviado a um mestre, quem lhe ensinava a caçar, manejar armas e montar cavalos. Caso não fosse primogênito, provavelmente seria enviado a um mosteiro. As primeiras letras eram ensinadas por professores particulares.
Já os filhos dos pobres camponeses se iniciavam na vida adulta acompanhando os pais na lavoura. Se fosse filho de artífice, frequentaria a oficina do pai. Mais tarde, seria enviado a um mestre para trabalhar como aprendiz.  

O capítulo reservado à higiene pessoal daquela época chega a ser assombroso. Eduardo III, rei inglês, deixou seus súditos escandalizados quando tomou três banhos no curto intervalo de três meses. Tanto a medicina quanto a Igreja criam que tomar banho com freqüência aumentava as chances de contrair doenças – além daqueles que viam algo pecaminoso em se tocar durante uma bela ducha. Santa Inês ficou famosa por passar a vida inteira sem se banhar. São Francisco de Assis nem se banhava nem trocava de roupas. A regra eram roupas encardidas de lã ou linho grosso.

As roupas também indicavam o pertencimento social: os homens comuns vestiam túnica, culote, capuz e manto. As damas nobres vestiam chapéus enormes. Meias e calções serviam a ambos. Já na hora de dormir despiam-se completamente.

Pelo dito, as pulgas fizeram uma enorme festa naquele ambiente imundo, amplamente propício ao aparecimento de pragas. Tanto a pulga do rato-preto quanto a pulga do homem transmitiam a peste negra.
Nas cidades grandes, o problema dos banhos raros era bastante amenizado. Muitas delas contavam com banhos públicos a la Roma antiga, chamados de “estufas” e que disponibilizavam banhos quentes e frios, além de uma piscina. Algumas casas contavam com tinas. Em Bruges foram encontrados mais de 40 banhos públicos, funcionando diariamente.

A casa tradicional dos camponeses era construída com madeira, os telhados eram de palha e o chão, de terra batida. Portanto os incêndios eram um problema comum naquela época. Havia também as residências de sapé, simples e de um cômodo apenas, com paredes de treliça de junco ou ramos secos, preenchidas com barro socado. As paredes eram tão frágeis que não eram incomuns mortes por lança perdida, que atravessava a parede e atingia o morador em seu interior.

No centro da residência, havia a lareira, normalmente um amontoado de pedras, sobre as quais punham as panelas. A fumaça, como não possuía um escape apropriado, impregnava a casa. Sua função também era esquentar o interior das casas, também.

Desde o século XIII, passaram-se a construir muitas casas de pedras, com telhado de telhas de barro. A dificuldade maior desse tipo de construção era o transporte das pedras, desde a pedreira até o local da construção: apenas nobres, grandes comerciantes e senhores feudais possuíam uma desse tipo. Não eram incomuns nessas residências paredes rebocadas com cimento feito de água, areia e cal. Paredes pintadas e vidros nas janelas eram um luxo, mas existiam.

Em suma, a residência medieval típica era gelada, úmida, escura, fumacenta, fedorenta, cheia de insetos, os caibros do telhado aparentes eram criadouros de ratos e morcegos. Banheiros inexistiam: usavam-se o mato ou baldes. Os nobres contavam com latrinas, a que chamavam de “guarda-roupa”, pois o fedor era tamanho que as traças das roupas fugiam do fedor quando alguém se aproximava desta. Era si9mplesmente um assento sobreposto a um buraco, com uma fossa debaixo.

O mobiliário da época, mesmo nas casas mais abastadas, incluía mesas, cadeiras, banquinhos, arcas, estantes, armários e pouco mais. A cama era o móvel mais caro, embora fosse pouco mais do que uma tábua com um colchão de palha sobreposto. Os nobres, por sua vez, poderiam adquiri colchões de penas, que pinicavam menos. Mas os dois eram colônias de pulgas.

Os mais ricos gostavam de adornar suas residências com objetos de luxo importados do Oriente: vasos, tapetes etc. Já os pobres deveriam se contentar com tapetes de palha, que cobriam o chão de terra batida. Utensílios de ferro eram um luxo, pois eram normalmente de madeira.

A iluminação interna poderia ser à base de vela de cera de abelha, mas essas eram caras. O homem do povo usava lamparinas a óleo ou velas de gordura animal. As velas de cera eram mais comuns em igrejas e castelos.

Até o ano 1000 d.C., as pessoas viviam, em regra, no campo. Dali em diante, com o aumento populacional e com o ressurgimento do comércio, após o interlúdio da fase mais obscura da Era Medieval, as cidades voltaram a florescer: a reurbanização estava em curso.

O processo é bem conhecido. Em geral, as pessoas se agrupavam em torno de uma igreja, com campos abundantes ao redor: nascia assim uma aldeia. Por volta do século XIV, início da peste negra, as cidades eram, geralmente, aldeias com menos de mil habitantes. Quando o total de residentes superava 20 mil, era considerada cidade importante. Gênova, Florença, Veneza, Paris e Londres conseguiram superar os 50 mil moradores.

Nas cidades, havia um ambiente de produção artesanal e de trocas comerciais. Os negócios funcionavam normalmente no andar de baixo da residência do comerciante. Os estabelecimentos se concentravam nas ruas principais, que reuniam comerciantes, mascates, mendigos, vendedores ambulantes etc. Além de mendigos, os marginais incluíam vagabundos, prostitutas, sem-tetos etc.

Como não havia iluminação pública, deveria-se evitar ao máximo sair de casa após o sol se pôr: era a hora dos bandidos. Se fosse inevitável sair à noite, que se fizesse armado, portanto tochas e acompanhado de criados.

Com o tempo, diversas cidades passaram a contar com bairros mais caros, onde residiam os abastados; havia também o bairro dos judeus, o bairro dos estrangeiros, o bairro dos pobres, a depender do poder aquisitivo e do estrato social de seus residentes.

A segurança das cidades contra invasões era provida por muralhas, em geral com fossos ao redor. Essas muralhas terminavam por delimitar até onde as cidades poderiam se expandir. Quando a densidade populacional alcançava certo ponto, o crescimento ficava desordenado. Os prédios ficavam mais altos, contando com três, quatro ou cinco andares. Isso gerava problemas de iluminação, pois o sol já iluminava o solo, estreitava sobremaneira as ruas. No limite, derrubavam-se as muralhas, abriam-se novas ruas e avenidas e se reconstruíam as muralhas em local mais afastado. Isso tudo gerava gastos públicos elevados, que geravam tributos onerosos para a população.            

As ruas medievais eram estreitas e sinuosas. Geralmente eram feitas com a medida necessária para passar um cavaleiro com sua lança atravessada na diagonal. No meio das ruas geralmente passava uma vala para escoar água da chuva e esgoto. Com isso, as cidades viraram criadouros de doenças como tifo, febre tifóide e gripes diversas.

Lixo e detritos fecais se acumulavam e seu odor fétido era algo comum ao homem daquela época. Cães, gatos e porcos se divertiam naquela imundície. A limpeza ficava a cargo da natureza, quando mandasse uma chuva mais forte. As ruas em cidades francesas ganharam nomes em função da quantidade de excrementos nas cercanias: Rue Merdeux, Rue Merdelet, Rue Merdusson, Rue dês Merdons e Rue Merdiére eram algumas.

Aos excrementos se somavam sangue e restos de animais destrinchados por açougueiros no meio das ruas, trazendo consigo moscas diversas. Além do risco de pisar em fezes, corria-se o risco de tomar um banho de merda ao andar pelas ruas, pois o hábito de lançar água servidas pelas janelas era bem difundido. No máximo, gritava-se “Cuidado aí embaixo”.

Caso uma mulher saísse às ruas desacompanhada, ou era louca ou era prostituta. Se solteira, ela deveria ficar dentro de casa – embora às vezes escapasse das regras estreitas ao se dependurar na janela, observando os rapazes à distância. A mulher casada poderia sair de casa, mas acompanhada.

As mulheres deveriam ser obedientes. Melhor ainda se fosse analfabeta, pois se evitariam trocas de cartinhas com outros homens. Desejava-se que fosse pouco faladeira e não tivesse ambições. Fora isso: recatadas, educadas e comportadas. Rir pouco e de modo discreto era elogiável. Vestir-se modo respeitoso, então, nem se fala.

As meninas aprendiam a fiar, bordar, tecer, cozinhar. Se nobres, aprendiam a fazer contas. As pobres, permaneciam ignorantes. As meninas mais ricas, mandadas para conventos, aprendiam canto e música.
O poder do marido sobre a mulher alcançava o direito de espancá-la, caso houvesse motivo. Santo Tomás de Aquino pregava que os filhos deveriam amar mais os pais do que as mães.

A mulher deveria cuidar da horta e tratar os animais, prover a alimentação da família, ir ao bosque catar lenha, ir ao poço e encher os baldes de água. De manhã cedo, ela acendia o fogo para assar o pão, cozinhava a sopa. Depois enrolava o colchão de palha, varria o chão da choupana. Nos dias dedicados ao suserano, à mulher cabia cuidar da horta do senhor das terras onde habitavam. Ordenhar vaca e recolher ovos também deveriam estar na lista de coisas a fazer. Fora isso, cuidar dos filhos e dos idosos.

Aos domingos, ir à missa. Acompanhar procissões. Também era hábito ir ao mercado vender os produtos que cultivavam, mas não consumiram: leite, ovos, frutas, verduras. Caso viúva, a mulher poderia dar andamento aos negócios do marido. Tendo se desincumbido dessas tarefas, ela poderia ficar um pouco lã aos pés da roca.

Já a mulher nobre deveria dar um filho homem: o herdeiro.

O modelo de beleza era: branca, loira e testuda. Pele rosada, mãos pequenas, olhos negros completavam o visual idealizado.

Os altos índices de mortalidade pós-peste negra propiciaram a entrada das mulheres no mercado de trabalho, tendo-se criado até mesmo guildas de mulheres, apenas.

Um dos grandes fatores que contribuíram para a expansão da peste foi o estágio em que se encontrava a medicina pratica na época, cujos procedimentos datavam de mais de mil e setecentos anos antes, quando Hipócrates poderia ser encontrado para clinicar.

Dissecações de cadáveres humanos era vedado pela Igreja, o que obrigava o estudo de fisiologia com porcos. Muitos professores de medicina ensinavam inclusive a relação entre doenças e alinhamento de planetas.

Toda a medicina conhecida era aquela de Galeno, Avicena, Hipócrates e dos seus seguidores árabes.  
Mais da metade das crianças morriam ainda na tenra infância. Somando-se a esse cenário desolador, não existiam hospitais públicos. Os pacientes ou se dirigiam a edifícios monásticos, onde seria atendido por uma freira piedosa. Portanto a regra era: se cair doente, faça imediatamente seu testamento.

Capítulo à parte era a capacidade incrível que os médicos desenvovleram de analisar a urina dos pacientes: conta-se sobre médicos que descobriam se uma mulher estava grávida apenas examinando sua urina – e ainda revelavam o sexo do bebê.    

Os tratamentos, em geral, recorriam a plantas e ervas, baratos e relativamente eficientes.

Portanto o ano de 1347, quando a peste negra alcançou a Europa, o cenários era o de uma tempestade perfeita. Nada menos do que uma tragédia ocorreria.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “1348 – A peste negra”  

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