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sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

LAMBENDO AS FERIDAS: UM HUMILDE RECOMEÇO


Assumidamente anti-macedônio, o orador Demóstenes reagiu à tomada do controle de toda a Grécia pela Macedônia de Alexandre da mesma maneira como vinha agindo até então: a Macedônia representava a perda da autonomia de Atenas e o fim de sua democracia. Segundo Demóstenes, Alexandre, como seu pai, era a encarnação da barbárie e da selvageria. E assim oscilamos ainda hoje, embasbacados pelos feitos militares ao passo que temos a sensação de que a outra face é a tirania política.

Os feitos incríveis de Alexandre e seu exército forma coroados pela dupla derrota de Dario III, assassinado por seus homens após sua fuga desonrosa do campo de batalha, e pela incineração do grande palácio de Persépolis, sede do poder persa. O ano em que ocorreram esses fatos, 330 a.C., marca um ponto de inflexão, pois desse momento em diante o grande general grego dava vez ao líder tirano intolerante a qualquer crítica e sem o menor pudor em desrespeitar tradições gregas há muito arraigadas.

Mas a verdade é que essa impressão do desenrolar da história é apenas a versão que se firmou, aquela contada por Demóstenes. Mas, como dito, trata-se apenas de uma versão. Alguns fatos depõem claramente contra o que apregoara Demóstenes.

Ainda nos tempos de Filipe, foi firmada a Liga de Corinto, pacto de paz envolvendo as cidades gregas, exceto Esparta. Esta Liga pôs fim a séculos de guerras incessantes, causadas pela eventual supremacia de uma cidade em relação às demais. Tal estabilidade afastou de uma vez por todas a ingerência do rei da Pérsia sobre assuntos gregos, pois esta era freqüentemente chamada para acudir uma cidade grega que se via sem forças para lutar contra sua adversária local. Se houvesse ingerência agora seria de uma cidade grega, a própria Macedônia.

Outro avanço notado no período foi a melhoria substancial da infraestrutura dos templos e santuários sagrados. A cidade de Corinto, central nos acordos pactuados, era próxima dos santuários de Nemeia e Istmo; ambos receberam investimentos substanciais capitaneados por Filipe. Nemeia converteu-se no principal centro de jogos atléticos e internacionais, exibindo um novo templo, um albergue, um ginásio e um estádio.

Importante notar que os templos e santuários eram locais de reunião pública, portanto permitiam reverberavam para toda a Grécia as decisões tomadas no âmbito da Liga. Todas as vitórias da expedição de Alexandre até os confins do mundo conhecido (chegou até a Índia e o Paquistão) foram anunciadas em Olímpia, em todos os eventos Olímpicos.

Sob Filipe a Alexandre, aquele território ocupado por cidades díspares e constantemente em guerra ganhou uma unidade única, permitindo finalmente ser chamado de Grécia antiga.   

Atenas progrediu também nesse período. Desde 350 a.C., aquela cidade vivia uma crise financeira, que seria finalmente domada pelas políticas financeiras implantadas por Eubulo. Contudo, a guerra contra Filipe em Queroneia custou todos os recursos acumulados até então. Novamente em crise, Atenas agora via um outro administrador, Licurgo, pôr as contas em dia. Este último garantiu o maior período de prosperidade grega no século IV a.C. O PIB de Atenas duplicou, tendo superado os números da época do império ateniense, de cem anos antes. E a economia era crescia agora em razão de desenvolvimentos internos, não mais por impostos recolhidos de territórios sob seu domínio. O sistema bancário, falido por não mais poder contar com os recursos antes disponíveis nos cofres dos santuários, esvaziados pelas desavenças bélicas, voltaram a se encher e os banqueiros voltaram à proeminência de outros tempos. O salário diário médio cresceu entre 50 e 100%.

Enfiam, poucos atenienses poderiam reclamar do padrão de vida que desfrutavam sob os “tiranos” da Macedônia.

A arquitetura ateniense também evoluiu. Embora concentrado nas instalações militares e de defesa, muitos empregos foram gerados, como na reconstrução da muralha da cidade e na expansão posterior de sua marinha. Também foram construídos teatros e templos, como o teatro ao deus Dionísio, o primeiro todo em pedra, para 17.000 pessoas e existente ainda hoje.

Uma das políticas de Licurgo foi atrair a Atenas estrangeiros ricos, mediante incentivos financeiros e até fornecendo-lhes terras para a construção de templos a seus deuses de preferência. Ordenou também a construção de um novo estádio para as competições esportivas durante o Panatheia. Sob Licurgo também foi erguida a segunda academia de Aristóteles, o Liceu, além da expansão da primeira. OS santuários de Asclépio e de Elêusis viram progressos significantes também.

Sem dúvidas tantos anos de paz abriram espaço para progressos inesperados.

Bom, mas e a tão cara democracia? Esta também ganhou, pois a colina de Pnix, local de instalação da assembléia, foi modernizada, recebendo uma tribuna para oradores, ainda hoje de pé.

A Ágora, principal local de convívio urbano, recebeu prédios modernos e um sistema de comunicação pública, segundo o qual um painel de notícias continha os deveres dos cidadãos, que era renovado mensalmente e ficava no foco do olhar vigilante de estátuas representando os pais fundadores tribais da cidade.

Alexandre ainda pôde presentear Atenas com alguns dos seus bens mais caros: as estátuas dos pais fundadores democráticos de Atenas, aqueles que mataram os antigos tiranos e fundaram a democracia ateniense – daí serem batizados de Tiranicidas. Essas estátuas haviam sido roubadas pelos persas 150 anos antes e levadas para Persépolis. Após sua vitória acachapante e pouco antes de pôr fogo no palácio, Alexandre tratou de recuperá-las e devolvê-las e seus donos de direito.

Como se não bastasse, um evento poria fim à reputação de Demóstenes. Hárpalo, ministro das finanças de Alexandre, passou a mão nos recursos persas, gastou boa parte com uma prostituta e fugiu para Atenas, implorando proteção da cidade. No entanto não encontrou pessoas muito dispostas a ajudá-lo, tendo até Demóstenes exigido que se entregasse a seu antigo rei. Sabedor do poder que o dinheiro exerce sobre algumas pessoas, Hárpalo presenteou Demóstenes com uma taça de ouro, cujo reluzir hipnotizara o velho orador. Imediatamente Demóstenes passou a apoiar Hárpalo e a pedir que a cidade o protegesse.
Quando Alexandre retornou de suas campanhas, entrou em cena e exigiu o retorno de Hárpalo, para que fosse julgado e sentenciado. Este fugiu para a ilha de Creta, achando-se lá seguro, sendo, no entanto, lá mesmo assassinado.

Pouco após, resultado das investigações sobre o fato, foi tornado público o  tal “presente” a Demóstenes, a tal taça de ouro que o subornou. A ira dos atenienses foi implacável contra o corrupto orador, como na frase contra si bradada em claro sinal de deboche: “Homes de Atenas, não devemos ouvir aquele que detém a taça?” Aceitar suborno para agir contra Atenas era o cume dos absurdos absolutamente inaceitáveis.  
Mais do que isso. Com o avanço das investigações, constatou-se que havia uma diferença significativa entre a quantidade de ouro que Hárpalo confessara ter roubado e o montante depositado na Acrópole. Demóstenes nunca havia falado nessa diferença. Resultado: o tribunal do Areópago decidiu por processar todos os que teriam se beneficiado da fortuna, estando Demóstenes e Dêmades entre os condenados. Dez promotores e um júri composto por 1.500 cidadãos tomaram parte no julgamento.

Demóstenes terminou exilado – sentença positiva, pois escapara da execução – em Egira, ilha localizada no litoral de Atenas. De lá, chorava ao contemplar sai Atenas ao longe e aconselhava a todos se manterem longe da vida pública e da besta fera representado pelo demos, o povo.

Também foi sob Alexandre que Aristóteles, antigo tutor do rei macedônio e agora residente em Atenas, escreveu sua obra “A Constituição dos Atenienses”, no ano de 320 a.C., de onde se extrai quase tudo o que se sabe sobre a cidade e seu sistema de governo.

Mas apenas um ano após o exílio de Demóstenes, Alexandre aparecia morto, provavelmente envenenado por seus próprios homens.

Mas aí é outra história...


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Dos democratas aos reis....”   

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