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quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

O FILÓSOFO MARQUETEIRO E O DÉSPOTA BEBERRÃO NO EMBATE ENTRE CÉREBRO E PODER


Por volta de 371 a.C., Atenas se encontrava em meio a um turbilhão político-diplomático. O grande governante de todo o mundo grego, que conseguira submeter todos as outras cidades-estado a seu mando, chamava-se Dionísio I, strategos autokrator, ou comandante-supremo, de Siracusa e arredores, na região da Sicília. Por mais de 30 anos, desde sua vitória espetacular na batalha de Leuctra.

Fato é que Atenas era consciente do fato de que não teria, ao menos naqueles dias, exército suficiente para derrotar o tirano de Siracusa. Os atenienses então fizeram tudo o que puderam para manter o ditador longe de suas fronteiras. Certa feita chegaram a oferecer-lhe o disputado título de cidadão ateniense.

Alguns anos antes, por volta de 388 a.C., quando da realização dos Jogos Olímpicos, Dionísio fora atacado verbalmente pelo respeitado orador ateniense Lísias, que incendiou a multidão contra o detestado tirano.

De índole bem mais diplomática, o mais famoso discípulo de Sócrates, o filósofo Platão, tomou uma iniciativa bastante arriscada: realizar um debate intenso com Dionísio, influenciá-lo politicamente e, assim, torná-lo um governante mais justo e um líder mais forte. Ao menos era o que Platão esperava ao desembarcar no porto de Siracusa.

O promotor do encontro fera Díon, assessor mais destacado de Dionísio e grande admirador do filósofo ateniense.

Iniciado o debate, Platão encaminhou dois temas que pareciam afeito a Dionísio: virtude humana e masculinidade – Dionísio julgava ser detentor de ambas em abundância. Platão, evidentemente, não era um assessor bajulador pronto a dizer qualquer bobagem que seu soberano quisesse ouvir. Após expor seus argumentos com singular sinceridade, o debate descambou em discussão agressiva, em que Dionísio mostrou toda sua fúria contra que discordasse de si.

Explodindo de raiva, Dionísio expulsou Platão da ilha. Mas um homem com a índole de Dionísio não iria simplesmente mandar o desafeto de volta para casa: este ato deveria ser adornado com muita tortura e sofrimento. Esparta e Atenas estavam em guerra, logo Dionísio exigiu que Platão retornasse num navio cuja tripulação era inteiramente Esparta – a despeito de ter o filósofo viajado em embarcação ateniense. Por fim, Dionísio pagou para que o capitão espartano pusesse fim à vida do filósofo ainda em mar.

Mas o referido capitão não matou Platão; antes, o vendeu como escravo na ilha de Egina. Ao contrário do seu mestre, Sócrates, que irritava os atenienses com seus questionamentos desconcertantes, Platão era um eminente filósofo, lecionara para alguns dos maiores governantes de Atenas, era respeitado e protegido.
Conseguindo escapar da escravidão em Egira, Platão retornou a Atenas, fundou sua Academia, atraiu para ela alguns dos maiores oradores de todo o mundo grego. Sua Academia se tornou central nos embates políticos de Atenas e logo Dionísio perceberia que o embate entre o filósofo destemido e o tirano embrutecido apenas se iniciara.

Usando a arma que melhor manipulava, as palavras, Platão e sua Academia foram responsáveis por uma campanha de deturpação que vitimou completamente a reputação de Dionísio I. Os apaixonados defensores da democracia ateniense se lançaram à difamação do tirano, de modo a fazer sua boa fama de forte, viril e virtuoso transmutada para a de um homem numa corrida ensandecida pelo poder, arquétipo ideal de um tirano que sofre de fraqueza moral. Espalharam que aquele tirano, como era de se esperar, sofria de medo constante e desconfiança de todo mundo. Diziam que a esposa de Dionísio deveria dormir nua todas as noites, pois o marido desconfiava de que pudesse trazer uma faca por debaixo das vestimentas; sua cama era cercada por um canal, com uma ponte de acesso normalmente erguida, para evitar a aproximação de assassinos; todos os que desejassem uma audiência com o autocrata deveriam sofrer uma revista completa e despir-se. Essas características inclusive foram usadas em diversas comédias escritas no período.

Toda essa má-fama era desconfiável. Dionísio vencera um concurso literário promovido em Atenas. Inclusive era o proprietário da histórica escrivaninha utilizada pelo imortal Ésquilo. Foi autor de diversas poesias. Foi o especialista em mitologia grega que escolheu as esculturas que adornariam os santuários de Asclépio e Epidauro. Mas o contra-ataque da Academia foi mortal para a reputação de Dionísio: nunca mais seria aceito no cenário político ateniense. Seria apenas um mau caráter, para todo o sempre.
Dionísio I seria sucedido por Dionísio II, até então notável por sua vitória “magnífica” numa competição de bebidas, por ter sobrevivido a 90 dias consecutivos de bebedeira.

Evidentemente alguém com esse currículo necessitava de uma assessoria competente e, neste caso, o nome do homem que exercia o poder real era Díon, o mesmo assessor de seu pai, aquele que marcou o infeliz debate entre Dionísio pai e Platão.

Embora competente, brilhante até, Díon era o típico sujeito maçante: exibia e exigia altíssimos padrões morais, era circunspecto, não se acanhava em apontar falhas morais em terceiros e e ainda era detestado pelos demais assessores e conselheiros.

Em 366 a.C., Díon refez o convite a Platão, para que retornasse a Siracusa e, agora, tentasse implantar um pouco de virtude na cabeça do limitado governante local.

A recepção foi surpreendente. Acolhido regiamente, ao contrário da experiência traumática de 22 anos antes, foi conduzido em carruagem real. De fato, o ambiente receptivo à filosofia, à ciência, às artes estava em toda parte. Academias e festivais literários tomavam o lugar das orgias e bacanais até pouco antes mais comuns. Mas os adversários eram muitos, especialmente entre os demais assessores do ditador beberrão.
Pois bem, os assessores adversários de Díon venceram e este foi obrigado a procurar exílio, ao passo que Platão foi preso. Dionísio exigiu de Platão que declarasse ódio a Díon e que sua admiração único estava voltada para o tirano de Siracusa. Mas antes que Platão decidisse se diria aquela mentira ou não, Siracusa entrou em guerra e o filósofo ateniense teve de ser libertado. Não sem que antes Dionísio II implorasse que o filósofo não fizesse com sua reputação o mesmo que fizera com seu pai.

Desta vez a bordo de seu próprio barco, Platão desembarcou em sua Academia, encontrou o recém chegado Díon e impôs-se um desafio de tirar o fôlego: apesar da idade avançada, Platão transformaria o chatíssimo e brilhante Díon num governante e líder que transportaria Siracusa para fora da órbita sufocante da dinastia dos Dionísio. Para tanto, nada como um bom trabalho de marketing político.

O primeiro desafio de Platão foi “humanizar” Dionísio: ele era muito irritante, excessivamente crítico e exageradamente altivo intelectualmente; dificilmente alguém se disporia a votar nele, a não ser que pudesse exibir uma nova imagem. Platão levou-o a conviver com pessoas de cidades da parte central da Grécia, tidas como pessoas com melhor temperança, mais brandas. Assim, deu-se-lhe um toque de “simplicidade”, Díon virou “gente como a gente”.

Já seu desafeto, Dionísio II, despencava ladeira abaixo. Embora tivesse dito aos cidadãos de Siracusa que Díon havia sido exilado temporariamente, a população começava a crer que era um exílio definitivo. Dessa forma, o próprio Dionísio emprestava a áurea de herói banido a seu opositor. Assim, a popularidade de Dionísio despencava, enquanto que Díon deixava a fama de intelectual maçante e se tornava um herói de capa e espada, bastante admirado e flertado pelo sexo oposto. Plutarco conta que asmulheres passaram a andar de roupas escuras, em luto pela ausência de Díon. Cartas de admiradores lotavam a caixa de correspondências da Academia. Díon era agora adorado em toda a Grécia, sendo um sucesso popular até em Esparta (a cidade chegou a oferecer-lhe a cidadania).

Ao passo em que a reputação de Díon crescia, o ódio de Dionísio por Díon aumentava proporcionalmente. Suas propriedades em Siracusa foram confiscadas pelo governo, mas as notícias positivas sobre a temporada de Díon na Grécia central não faziam o ânimo do autocrata melhorar.

Desesperado, Dionísio fundou uma Academia em Siracusa e se propôs fazê-la superior à de Platão, mas não conseguia nem decorar alguns versos, tendo sido motivo de chacota após recitar alguns deles de maneira incorreta. Após desistir da fantasia de filósofo em pele de pateta, Dionísio decide convocar Platão novamente.

Escreve ao filósofo prometendo readmitir Díon caso Platão, agora bastante idoso, viesse visitá-lo. Procurando agradar o velho filósofo, Dionísio permite que este se aproxime sem ser revistado – acredite, esta era uma grande honra. Mas, como se poderia supor, tratave-se de mais uma emboscada. Platão teve sua vida ameaçada, mas foi salvo pela cidade vizinha de Tarento, que enviou uma guarnição em socorro de Platão, que o tirou de lá com vida.

O diálogo final, entre Dionísio e Platão é bem emblemático das diferentes personalidades dos envolvidos. Após ouvir de Platão: “Suponho que vai contar a todos a meu respeito”, Platão retrucou: “Espero sinceramente que eu e a Academia tenhamos coisas melhores AM comentar que do que o senhor”. Difícil não imaginar um sorrisinho no canto da boca do velho e sarcástico filósofo.

Passo sucessivo, Díon iniciou sua jornada rumo à deposição do odioso tirano. Arregimentando tropas por todas as cidades que cruzava, usando da boa imagem criada por Platão, Díon adentrou Siracusa quase sem resistência, pois Dionísio se encontrava em campanha, noutra disputa. Desviando-se de ataques histéricos vindos de suas admiradoras, Díon declarou a cidade liberta de seu tirano. Mas a história não acabaria ali.

Como já se sabe há tempos, nenhuma campanha de marketing resiste ao tempo. A imagem de homem cordial e acessível começou a dar lugar àquele velho Díon, chato e moralista ao extremo, crítico e distante das pessoas comuns.

O povo logo questionava se substituir o bêbado estúpido pelo senhor atento e sóbrio foi mesmo uma boa opção.

Pois bem. Ao cabo, Díon e seus mercenários foram expulsos, Dionísio, que já havia aceitado seu triste destino, tendo de viver uma vida de luxo e conforto distante de sua terra natal, viu-se agora compelido a retomar seu reino.

Diante das más novas, Díon deu seu derradeiro suspiro de herói: “Estúpidos siracusanos, o mais tolo e malfadado dos povos... Eles não merecem a ajuda de vocês, mas se realmente quiserem lutar por eles, vamos então fazê-lo de novo.” Finalmente o lado heróico de Díon foi trazido à luz, agora sem um marketeiro por traz. Até as mulheres caíram de amores por ele novamente.

Díon venceu, mas seu fim também foi trágico. Calipo, companheiro dos tempos da Academia de Platão, traiu-o e contratou assassinos de aluguel que apunhalaram o filósofo-governante na sua sala de jantar.


Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Dos democratas aos reis....”

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