· * “Savage Continent: Europe in the Aftermath of
World War II” by Keith Lowe
Não há nada de hiperbólico no título deste livro
extraordinário. Segundo a descrição dolorosa feita por Keith Lowe, a Europa,
nos anos após o fim da II Grande Guerra, era um caldeirão de ódio, assassínio e
desespero, como havia sido nos anos de reinado nazista na Alemanha. “A partir
do distanciamento do século XXI”, escreve, “tendemos a olhar para trás, para o
fim da guerra, como algo a se celebrar. Vimos imagens de marinheiros beijando
meninas na Times Square, em NY, e tropas sorridentes de todas as nações
enfileirando armas ao longo do Champs Elysée, em Paris. No entanto, apesar de
toda a celebração ocorrida ao fim da guerra, a Europa era na verdade um lugar
de dores. O senso de perda era tanto pessoal como comunal. Logo que as cidades
do continente foram substituídas por uma paisagem de prédios em ruínas, também
as famílias e comunidades foram substituídas por um imenso vazio.”
O fim da guerra não foi exatamente um fim em si, argúi Lowe,
não apenas porque a violência continuou por muito tempo após a declaração de
paz, mas porque escondidos atrás do conflito entre Aliados e Eixo estavam
“dezenas de outros, guerras mais locais, as quais tinham aromas e motivações
diversos em cada país e região. Em alguns casos eram conflitos causados por
diferenças políticas e de classes. Em outros casos... eram conflitos causados
por raça ou nacionalismo.” Certamente a derrota da Alemanha nazista foi e ainda
é motivo para alívio e exaltações, mas alcançar aquela derrota deixou a Europa
inteira virtualmente tão devastada que “é difícil expressar em termos claros a
escala da destruição a cargo da II Guerra Mundial”, destruição não apenas
física, mas psicológica e moral também. O grande jornalista Alan Moorehead, em
Nápoles, imediatamente após sua libertação, testemunhou “a lista inteira de
sórdidos vícios humanos” e escreveu, “o que estamos testemunhando de fato é o
colapso moral de um povo.”
O que é quase tão extraordinário quanto a história em si
mesma é o fato de terem sido necessárias quase sete décadas para que fosse
adequadamente contada. O porquê ainda é um mistério, embora Lowe suspeite de que
esteja conectada à “tendência, por alguns historiadores e políticos ocidentais,
de olharem apenas para passagens idílicas do pós Guerra”, focando
particularmente no Plano Marshall como evidência do rápido renascimento da
Europa. Lowe – um escritor britânico que publicou dois romances e o muito bem
comentado “Inferno: A destruição furiosa de Hamburgo em 1943” (tradução livre) -
não comete esses erros e seu livro “Savage Continent” mostra que está certo:
O período imediato do pós-guerra é um dos mais importantes
em nossa história recente. Se a II Guerra destruiu o velho continente, então o
seu imediato dia seguinte era um caos em constante mutação, que conformaria uma
nova Europa. Isso ocorreu durante essa era violenta, revanchista que originou muitas
das nossas esperanças, aspirações, preconceitos e ressentimentos. Qualquer um
que deseje entender realmente a Europa como é hoje deve primeiramente ter em
mente o que ocorreu neste período crucial originário. Não há mérito em esquivar-se
de temas sensíveis ou difíceis, quanto mais sabendo-se serem estes os alicerces
sobre os quais a Europa moderna foi construída.”
Lowe divide seus estudos em três áreas de interesse:
vingança; limpeza racial e étnica; e guerras civis. Destes, vingança “talvez
seja o mais universal”, emergindo como “uma ameaça em quase todos os eventos
ocorridos, desde a prisão dos nazistas e seus colaboradores até o palavreado
dos tratados pós-guerra, que conformaram a Europa pelas décadas seguintes”; e “líderes,
de Roosevelt a Tito, perdoaram festivamente as fantasias de vendeta de seus
subordinados, e procuraram proteger o desejo popular de vingança para fomentarem
suas próprias aspirações políticas. Comandantes de todos os exércitos Aliados
fecharam os olhos para os excessos de seus homens; e civis se aproveitaram do
caos para reparar anos de impotência e violência praticadas por ditadores e
tiranos medíocres, dentre outros”.
É importante enfatizar que muito daquela vingança estava
enraizada em queixas legítimas e que “serviram a diversos propósitos, nenhum
deles era inteiramente negativo, “inclusive restaurar “um senso de equilíbrio
moral, mesmo que custasse renunciar a algumas das bases morais mais elevadas.” Apesar
disso, a violência cometida em nome da vingança era trágica e generalizada. Mulheres
e crianças eram vítimas de novo e de novo; os casos mais famosos envolveram
mulheres francesas cujos cabelos foram raspados por uma multidão enfurecida,
porque haviam dormido com alemães ou colaboradores de outras partes; mas
milhares de mulheres e crianças foram mutilados ou assassinados porque alguém
tinha o desejo, por alguma razão, de fazer isso.”
Lowe não diz isso com todas as palavras, mas em pelo menos
um ponto importante os nazistas venceram: noções de identidade e de
superioridade racial se tornaram lugares-comuns entre grupos diversos que
coexistiam antes da Guerra, embora com desconforto, e agora eram motivados a
expulsar outros de seus países e territórios “puramente com base em suas
carteiras de identidade dos anos de guerra”. O anti-semitismo “cresceria após a
Guerra”, e “por volta de 1948, a maior parte da Europa Oriental tinha se
tornado, ainda mais do que nos tempos de Hitler, um Judenfrei (local livre de
judeus).” Embora os judeus fossem, talvez, os mais impiedosamente perseguidos, dificilmente
estavam sozinhos. A Polônia “certamente o lugar mais perigoso para os judeus no
pós-guerra”, era também perigoso para alemães e ucranianos étnicos. Adicionalmente,
as “estatísticas associadas com expulsões de alemães entre 1945 e 1949 desafiam
a imaginação.” Muitos destes, cerca de 7 milhões, ocorreram em “terras a Oeste
de Oder e Neisse, que foram incorporadas à Polônia,” mas muitos outros países se
afundaram na orgia das expulsões, deixando “uma paisagem limpa”, segundo a qual
“a Europa oriental se tornou muito menos multicultural do que havia sido em
qualquer momento da história moderna”. Esse processo se manteve até os tempos
atuais, como a terrível guerra da Bósnia, durante a década de 1990, deixou
patente.
“Não surpreende”, Lowe observa, que no despertar da II
Guerra muitos cressem que “o sistema político como um todo não funcionava” e um
“vento radical começava a soprar, e traria consigo alguns dos mais violentos e
trágicos episódios do período pós-guerra.” Ele descreve violento conflito entre
esquerda e direita na França e na Itália, mas foca particularmente na Grécia,
onde uma guerra sangrenta intestina “era o primeiro e mais sangrento embate,
que logo descambaria num novo conflito, a Guerra Fria entre Ocidente e Oriente,
esquerda e direita, comunismo e capitalismo.” O que ocorreu na Grécia, Lowe
argumenta, “desenhou a fronteira sul da Cortina de Ferro,” “desenhou o retorno
da América à Europa, ao forçá-los a entender que aquele isolacionismo não era
mais uma opção viável,” e provocou os soviéticos “a formalizarem seus controles
sobre os demais partidos comunistas europeus.” A “guerra civil da Grécia era,
por conseguinte, não mais apenas uma tragédia local, mas um evento de
verdadeiro significado internacional,” a repercussão daquilo que se vê até
hoje.
Foi um período em que ninguém venceu: “Era virtualmente
impossível emergir da II Guerra sem inimigos. Dificilmente haveria melhor
demonstração do legado moral e humano deixado pela Guerra, do que esse. Após a devastação
de regiões inteiras; após a matança de mais de 35 milhões de pessoas; após
incontáveis massacres em nome de nacionalidade, raça, religião, preconceitos de
classe e contra indivíduos, virtualmente qualquer pessoa do continente havia
sofrido algum tipo de preconceito ou injustiça... de fato, a visão tradicional de
que a guerra acabou quando a Alemanha finalmente se rendeu, em maio de 1945, é
inteiramente falsa: na realidade, sua derrota pôs fim a apenas um aspecto do
conflito.” Isso se intensificou, em diferentes lugares, por modos e motivos diversos,
ao longo de meses e anos vindouros, e a recuperação espetacular que a Europa
eventualmente protagonizou não pode nos tornar cegos para uma realidade
inescapável.
“Continente Selvagem”, um livro soberbo e imensamente
importante, não deixa absolutamente dúvidas disso.
Rubem L. de F. Auto
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