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terça-feira, 19 de dezembro de 2017

EUROPA SELVAGEM: A ORIGEM DO QUE NOS ENCANTA E DO QUE NOS REVOLTA


·        *  “Savage Continent: Europe in the Aftermath of World War II” by Keith Lowe


Não há nada de hiperbólico no título deste livro extraordinário. Segundo a descrição dolorosa feita por Keith Lowe, a Europa, nos anos após o fim da II Grande Guerra, era um caldeirão de ódio, assassínio e desespero, como havia sido nos anos de reinado nazista na Alemanha. “A partir do distanciamento do século XXI”, escreve, “tendemos a olhar para trás, para o fim da guerra, como algo a se celebrar. Vimos imagens de marinheiros beijando meninas na Times Square, em NY, e tropas sorridentes de todas as nações enfileirando armas ao longo do Champs Elysée, em Paris. No entanto, apesar de toda a celebração ocorrida ao fim da guerra, a Europa era na verdade um lugar de dores. O senso de perda era tanto pessoal como comunal. Logo que as cidades do continente foram substituídas por uma paisagem de prédios em ruínas, também as famílias e comunidades foram substituídas por um imenso vazio.”    

O fim da guerra não foi exatamente um fim em si, argúi Lowe, não apenas porque a violência continuou por muito tempo após a declaração de paz, mas porque escondidos atrás do conflito entre Aliados e Eixo estavam “dezenas de outros, guerras mais locais, as quais tinham aromas e motivações diversos em cada país e região. Em alguns casos eram conflitos causados por diferenças políticas e de classes. Em outros casos... eram conflitos causados por raça ou nacionalismo.” Certamente a derrota da Alemanha nazista foi e ainda é motivo para alívio e exaltações, mas alcançar aquela derrota deixou a Europa inteira virtualmente tão devastada que “é difícil expressar em termos claros a escala da destruição a cargo da II Guerra Mundial”, destruição não apenas física, mas psicológica e moral também. O grande jornalista Alan Moorehead, em Nápoles, imediatamente após sua libertação, testemunhou “a lista inteira de sórdidos vícios humanos” e escreveu, “o que estamos testemunhando de fato é o colapso moral de um povo.”   

O que é quase tão extraordinário quanto a história em si mesma é o fato de terem sido necessárias quase sete décadas para que fosse adequadamente contada. O porquê ainda é um mistério, embora Lowe suspeite de que esteja conectada à “tendência, por alguns historiadores e políticos ocidentais, de olharem apenas para passagens idílicas do pós Guerra”, focando particularmente no Plano Marshall como evidência do rápido renascimento da Europa. Lowe – um escritor britânico que publicou dois romances e o muito bem comentado “Inferno: A destruição furiosa de Hamburgo em 1943” (tradução livre) - não comete esses erros e seu livro “Savage Continent” mostra que está certo:

O período imediato do pós-guerra é um dos mais importantes em nossa história recente. Se a II Guerra destruiu o velho continente, então o seu imediato dia seguinte era um caos em constante mutação, que conformaria uma nova Europa. Isso ocorreu durante essa era violenta, revanchista que originou muitas das nossas esperanças, aspirações, preconceitos e ressentimentos. Qualquer um que deseje entender realmente a Europa como é hoje deve primeiramente ter em mente o que ocorreu neste período crucial originário. Não há mérito em esquivar-se de temas sensíveis ou difíceis, quanto mais sabendo-se serem estes os alicerces sobre os quais a Europa moderna foi construída.”  

Lowe divide seus estudos em três áreas de interesse: vingança; limpeza racial e étnica; e guerras civis. Destes, vingança “talvez seja o mais universal”, emergindo como “uma ameaça em quase todos os eventos ocorridos, desde a prisão dos nazistas e seus colaboradores até o palavreado dos tratados pós-guerra, que conformaram a Europa pelas décadas seguintes”; e “líderes, de Roosevelt a Tito, perdoaram festivamente as fantasias de vendeta de seus subordinados, e procuraram proteger o desejo popular de vingança para fomentarem suas próprias aspirações políticas. Comandantes de todos os exércitos Aliados fecharam os olhos para os excessos de seus homens; e civis se aproveitaram do caos para reparar anos de impotência e violência praticadas por ditadores e tiranos medíocres, dentre outros”.   

É importante enfatizar que muito daquela vingança estava enraizada em queixas legítimas e que “serviram a diversos propósitos, nenhum deles era inteiramente negativo, “inclusive restaurar “um senso de equilíbrio moral, mesmo que custasse renunciar a algumas das bases morais mais elevadas.” Apesar disso, a violência cometida em nome da vingança era trágica e generalizada. Mulheres e crianças eram vítimas de novo e de novo; os casos mais famosos envolveram mulheres francesas cujos cabelos foram raspados por uma multidão enfurecida, porque haviam dormido com alemães ou colaboradores de outras partes; mas milhares de mulheres e crianças foram mutilados ou assassinados porque alguém tinha o desejo, por alguma razão, de fazer isso.”   

Lowe não diz isso com todas as palavras, mas em pelo menos um ponto importante os nazistas venceram: noções de identidade e de superioridade racial se tornaram lugares-comuns entre grupos diversos que coexistiam antes da Guerra, embora com desconforto, e agora eram motivados a expulsar outros de seus países e territórios “puramente com base em suas carteiras de identidade dos anos de guerra”. O anti-semitismo “cresceria após a Guerra”, e “por volta de 1948, a maior parte da Europa Oriental tinha se tornado, ainda mais do que nos tempos de Hitler, um Judenfrei (local livre de judeus).” Embora os judeus fossem, talvez, os mais impiedosamente perseguidos, dificilmente estavam sozinhos. A Polônia “certamente o lugar mais perigoso para os judeus no pós-guerra”, era também perigoso para alemães e ucranianos étnicos. Adicionalmente, as “estatísticas associadas com expulsões de alemães entre 1945 e 1949 desafiam a imaginação.” Muitos destes, cerca de 7 milhões, ocorreram em “terras a Oeste de Oder e Neisse, que foram incorporadas à Polônia,” mas muitos outros países se afundaram na orgia das expulsões, deixando “uma paisagem limpa”, segundo a qual “a Europa oriental se tornou muito menos multicultural do que havia sido em qualquer momento da história moderna”. Esse processo se manteve até os tempos atuais, como a terrível guerra da Bósnia, durante a década de 1990, deixou patente.  

“Não surpreende”, Lowe observa, que no despertar da II Guerra muitos cressem que “o sistema político como um todo não funcionava” e um “vento radical começava a soprar, e traria consigo alguns dos mais violentos e trágicos episódios do período pós-guerra.” Ele descreve violento conflito entre esquerda e direita na França e na Itália, mas foca particularmente na Grécia, onde uma guerra sangrenta intestina “era o primeiro e mais sangrento embate, que logo descambaria num novo conflito, a Guerra Fria entre Ocidente e Oriente, esquerda e direita, comunismo e capitalismo.” O que ocorreu na Grécia, Lowe argumenta, “desenhou a fronteira sul da Cortina de Ferro,” “desenhou o retorno da América à Europa, ao forçá-los a entender que aquele isolacionismo não era mais uma opção viável,” e provocou os soviéticos “a formalizarem seus controles sobre os demais partidos comunistas europeus.” A “guerra civil da Grécia era, por conseguinte, não mais apenas uma tragédia local, mas um evento de verdadeiro significado internacional,” a repercussão daquilo que se vê até hoje.         

Foi um período em que ninguém venceu: “Era virtualmente impossível emergir da II Guerra sem inimigos. Dificilmente haveria melhor demonstração do legado moral e humano deixado pela Guerra, do que esse. Após a devastação de regiões inteiras; após a matança de mais de 35 milhões de pessoas; após incontáveis massacres em nome de nacionalidade, raça, religião, preconceitos de classe e contra indivíduos, virtualmente qualquer pessoa do continente havia sofrido algum tipo de preconceito ou injustiça... de fato, a visão tradicional de que a guerra acabou quando a Alemanha finalmente se rendeu, em maio de 1945, é inteiramente falsa: na realidade, sua derrota pôs fim a apenas um aspecto do conflito.” Isso se intensificou, em diferentes lugares, por modos e motivos diversos, ao longo de meses e anos vindouros, e a recuperação espetacular que a Europa eventualmente protagonizou não pode nos tornar cegos para uma realidade inescapável.  

“Continente Selvagem”, um livro soberbo e imensamente importante, não deixa absolutamente dúvidas disso.


Rubem L. de F. Auto



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