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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

VOCÊ SABIA QUE A LEGISLAÇÃO ANTIDROGAS DO BRASIL DEVERIA SER DECLARADA INCONSTITUCIONAL ?


Desde o fim do século XX, mas com muito mais ânimo e impulsionada pelas atitudes do país mais rico do mundo a partir dos anos 1970, iniciou-se aquela que ficou conhecida como Guerra às Drogas.
O relacionamento dos seres humanos com substâncias que alteram o estado da mente é milenar. Contudo, no séc. XIX, com o desenvolvimento das ciências, diversos princípios ativos foram isolados, estudados e transformados em medicamentos.

Se na Idade Média a química era feita por alquimistas; se no séc. XVIII estes deram espaço aos boticários; no séc. XIX surgiram as indústrias farmacêuticas. Cientistas geniais transformavam conhecimentos milenares acerca dos efeitos de certas plantas sobre o corpo humano em pílulas e xaropes. O contato do ser humano com os medicamentos na sua forma natural foram sendo substituídos por produtos comprados em farmácias, cujos efeitos foram estudados, isolados e eventuais efeitos colaterais ... e não mais receitado por um xamã, mas por um profissional médico (vou me abster de comentar sobre as histórias que ouvimos de alguns médicos e certos laboratórios ...).

Nesse contexto teve nascimento a Lei do Ópio e a tentativa de manter o consumo dessa substância apenas para fins terapêuticos – o ópio é a matéria prima de diversos analgésicos, da morfina, da heroína etc.
O movimento que visa ao banimento de todas as substâncias tóxicas teve início bastante tímido. Ficou marcante, nos EUA, com a Lei Seca, na década de 1920. Nessa época a maconha era descriminalizada, enquanto a guerra ao álcool deu origem a Al Capone e que tais (como o Joe Kennedy, pai de John Kennedy e ídolo de Pablo Escobar ...).

A década de 1960 viu protestos  e seu símbolo maior, a maconha, sendo consumida na esquina da Ashbury com a Height, em São Francisco. Também viu diversos “Jotas”, ídolos do rock, morrendo de overdose. O posicionamento político era bastante diverso daquele propagado prelos Falcões bebedores de whiskie.

Enquanto os falcões desejavam manter a hegemonia americana, somente conquistada após a II GM porque a Europa (e a Ásia) estava totalmente destruída, movimentos da sociedade se posicionavam cada vez mais contra. A convocação de jovens universitários para o Vietnã pôs a classe média contra o governo. Os negros queriam seus direitos civis. O establishment queria acabar com a URSS. A China estourava sua bomba atômica. A economia americana entrava na estagflação. Enfim, criou-se o cenário da tempestade perfeita: todos estavam com medo !

O medo serve para criar leis que façam as pessoas se sentirem mais seguras. Pode ser uma lei anti-imigração. Pode ser uma lei que tire direitos, ainda que temporariamente.
Nesse caso, quem foi considerado o grande inimigo pelo Presidente Nixon ? As drogas recreativas !
Parecia que a culpa por todos os percalços por que passavam os EUA e, em última instância, o mundo ocidental, era culpa de umas substâncias que causam relaxamento o que ativam o sistema de recompensa do cérebro.
A listagem das drogas proibidas foi feita rapidamente e, polemicamente, sem bases científicas sólidas. A inclusão da maconha é considerada uma insanidade em todos os meios científicos até hoje e não foram poucos os que anteciparam as tragédias que viriam. O Relatório Cohen, da Holanda, teve a coragem de dizer o que ninguém mais dizia.

 No campo da economia, a década de 1970 viu o início dos programas de liberalização da economia, inspirados nas idéias propagandeadas por Milton Friedman, já em implantação no Chile de Pinochet.
A recessão econômica dos EUA e do RU atravessou a década de 1970, levando a inflação e o desemprego a níveis inéditos desde o fim da II GM. Comunidades que evoluíam bastante, especialmente de negros e latinos, ensaiando seus primeiros passos nos direitos à educação superior e a poder circular por suas cidades despreocupadamente, viram-se engolfadas em desemprego, pobreza e violência.

Nesse cenário tomou corpo uma atividade consideravelmente nova e bastante lucrativa. Como a criminalização das drogas era bem recente, as pessoas que adquiriam essas substâncias por outros meios, passaram a recorrer a pessoas específicas, que tinham acesso a elas: os traficantes. Nos EUA, por percorrerem o mesmo caminho das drogas, os latinos passaram a executar esse trabalho. Apenas uma pequena quantidade consigo poderia garantir-lhes o dinheiro necessário para iniciar sua vida em terras Yankees.

Explorando o trabalho dessas pessoas (as mulas e os pequenos traficantes de rua) e a produção de tais drogas, ganharam espaço os Pablo Escobar da vida.

A partir daí o trabalho de análise é aconselhável a psicólogos: muito dinheiro leva a muito poder ... que vicia e ninguém quer perdê-lo, ainda que seja necessário mover uma guerra contra nações.
As drogas que viciam mais rapidamente passam a ser o foco do comércio de drogas pela sua lucratividade. A maconha e o LSD dos anos 1960 eram muito leves. A cocaína, a heroína e mais tarde o crack passaram a ser as estrelas dos traficantes e o pesadelo de sociedades dispostas a mover guerras sanguinárias contra substâncias químicas. Corpos de pessoas mortas e cadeias superlotadas tornaram-se o triste epíteto dessa insanidade coletiva.

A divisão internacional da riqueza era a mesma: países ricos eram consumidores – EUA e Europa; países pobres eram produtores (Colômbia, Peru, Bolívia ...). No caso da heroína, substitua-se a América Latina pela Ásia.

Esse cenário pode sofrer mudanças, em um processo que se assemelha ao que ocorre com os países produtores de petróleo do Oriente Médio: conforme as pessoas forem enriquecendo, ao papel de produtor soma-se o papel de consumidor importante. Foi o que ocorreu com o Brasil em fins da década dos anos 2000.


Pois bem. Passemos agora à questão legal.

O marco legal do Brasil é a CF/88. Esta tem uma base bastante moderna pois busca garantir a liberdade, o poder de escolha, exige que eventuais proibições legais tenham uma justificativa relevante.

Por exemplo: inc. X do art. 5.º da CF diz que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Segundo essa norma constitucional, tem o “cidadão o direito de impedir que intrusos venham intrometer-se na sua esfera particular”. O que é esfera particular ? É o “ conjunto de modo de ser e viver, o direito de o indivíduo viver sua própria vida”; legitima “a pretensão de estar separado de grupos, mantendo-se o indivíduo livre da observação de outras pessoas”, reconhecendo-se o “direito à liberdade de que cada ser humano é titular para escolher o seu modo de vida”. (http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/4740-A-inconstitucionalidade-do-art.-28-da-Lei-de-Drogas)

Tal posicionamento do constituinte visava a evitar mesmo a criação de uma sociedade totalitária, que se caracteriza pela criação de papéis pré-estipulados para cada pessoa. Cada um está submetido ao projeto de sociedade gerado pela mente de “iluminados”, em um gabinete, sem interferência da sociedade.

Certamente a criminalização das drogas garante uma redução significativa nas medidas de liberdade de que dispõe uma sociedade.

Pois bem. E quanto à sociedade ? E quanto àquelas pessoas que não fazem uso, podem elas criar limites à liberdade de quem pensa de maneira diversa ?

O brocardo jurídico “nulla poena, nullum crimen, nulla expoenallis, sine iniuria”, que, inspirado em fontes clássicas do saber, “vêem no dano causado a terceiros as razões, os critérios e a medida das proibições e das penas”. Sem que dano se verifique, é ilegítima a intervenção criminal, ideia que encontra respaldo do próprio ordenamento que estabelece graduação dos delitos de acordo com seu potencial ofensivo (inc. I do art. 98 da CR), além de prescrever que a existência de crime depende da ocorrência de resultado (art. 13 do CP).
(http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/4740-A-inconstitucionalidade-do-art.-28-da-Lei-de-Drogas)

Trata-se de um dos Princípios básicos do Direito Penal:

Fragmentariedade: O direito penal só deve se ocupar com ofensas realmente graves aos bens jurídicos protegidos. Tem-se, aqui, como variante, a intervenção mínima, que nasce o princípio da insignificância desenvolvido por Claus Roxin. Entende-se que devem ser tidas como atípicas as ofensas mínimas ao bem jurídico. Não há tipicidade material. Há, apenas, tipicidade formal.

Princípio da Lesividade ou da Ofensividade (nullum crimen sine iniuria) no direito penal  exige que do fato praticado ocorra lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado
Princípio da alteridade (ou transcendentalidade) “só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e não seja simplesmente pecaminoso e imoral. A conduta puramente interna, seja pecaminosa, imoral, escandalosa, falta a lesividade que pode legitimar a intervenção penal*”. (Nilo Batista)

Por esse motivo não existem os crimes de Tentativa de Suicídio (ou de autolesão corporal).

Consumir drogas é, antes de qualquer coisa, um exercício das liberdades individuais. Pense: se eu quiser, posso me matar ? O suicídio é ilegal ? Isto é: “pelo menos do ponto de vista do direito criminal, a todos os homens assiste o inalienável direito de irem para o inferno à sua própria maneira, contanto que não lesem diretamente a pessoa ou a propriedade alheias”.

O art. 28 da Lei de Drogas (11.343/2006) dispõe: “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas (...).”

Trata-se, portanto, de ambiente protegido constitucionalmente, sendo objeto de penalização infraconstitucional.  Aproxima-se essa regra da moralidade que sustentava a eugenia, a criação do homem perfeito e livre de todos os vícios – algo risível para quem conhece um pouquinho a história da humanidade ... e seus vizinhos.

Trata-se de regra jurídica teratológica e típica de sociedades submetidas a governos autoritários. Portanto não surpreende que tenha sido adotada com tanto júbilo por parte da comunidade jurídica brasileira ...
Frente à argumentação que defende (acertadamente) a inexistência de direitos absolutos, deve-se notar que a harmonização com o art. 5º, X, deve seguir critérios de norma também constitucional.

Em geral, os julgados que tratam de condenação de pessoas por porte de droga (conduta despenalizada mas não descriminalizada), apelam para a “segurança da sociedade” e para a “paz pública”. Evidentemente esses motivos devem balizar políticas sociais amplas e voltadas, especificamente, à proteção do bem jurídico protegido (esses dois citados ou quaisquer outros). Adotar o posicionamento atual é justificar a expulsão dos judeus da Alemanha para o bem coletivo da sociedade alemã, ou aceitar que pessoas pudessem ser condenadas por defender idéias destoantes da religião majoritária de uma sociedade. Não se pode admitir esse grau de abstração.

A norma que visa à proteção da saúde pública é a que dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. O que garante a paz social é uma sociedade equilibrada, igualitária e que não perpetue injustiças. O direito penal não tem e nunca terá essa função.

Os tribunais que têm decidido de maneira diversa dizem que a conduta criminalizada é o porte (trazer consigo), não o uso (fumar, cheirar, injetar etc).

Porém o argumenta continua não se sustentando, pois a conduta criminalizada deve obedecer oferecer perigo relevante à sociedade. O fato de alguém trazer consigo uma droga para consumo próprio não atinge direitos de terceiros, a menos que se faça um exercício de imaginação que não respeita nem mesmo o bom senso de uma pessoa comum.

A difusão dessas substâncias pela sociedade ocorre em momento bem anterior ao consumo, envolvendo comércio transnacional, divisão especializada do trabalho, cultivo de terras, agentes que atuam no atacado, no varejo ...

Além do mais, pode-se questionar. Mas e quanto à pessoa que vai ao bar e compra álcool e um maço de cigarros ? Não estará planejando fazer mal a si mesmo e não está ajudando na difusão dessas substâncias ? Não deveria o ordenamento jurídico garantir mínima equidade ? Note-se que a própria proibição (aceita de maneira estranha e excessivamente permissiva pelo Poder Judiciário, a quem cabe até mesmo a avaliação na esfera jurídica de leis aprovadas pelo Legislativo) impede a análise científica quanto à real periculosidade das substâncias em foco. Ainda que se argumente que é possível tê-las legalmente, por meio de autorização, o estigma social trazido por normas paleolíticas como essa desestimulam até mesmo a pesquisa.

A criminalização do consumidor final, que visa claramente à sua satisfação pessoal, apenas reflete:
1-      Prevaricação de agentes que deveriam coibir a distribuição da substância.
2-      Falta de atividades de inteligência das diversas polícias.
3-      Falta de capacidade de enfrentar as organizações que se dedicam ao tráfico de drogas (que não fica limitada à realidade de pobreza, favelas, becos em subúrbios etc).
4-      Total falta de bom senso e mesmo uma certa covardia, por liberar as forças da lei de maneira desinibida apenas contra os mais fracos, socialmente falando.

E quanto ao tráfico de drogas ilícitas ? Inicialmente, em nada tal crime se diferencia do contrabando.
Em segundo lugar, trata-se de extensão lógica do uso.
Em terceiro lugar, não obedece ao grau de periculosidade observado em outras substâncias (ou bens) de circulação protegida. O que pode justificar o banimento da circulação interna de substâncias é a mesma regra que vale para as demais (álcool, tabaco ...). É evidente que não se pode tratar substância psicoativas como regulam armas, explosivos etc.
Por fim, todos os danos socieais relacionados à violência estão diretamente relacionados a problemas sociais e à própria proibição, que aumenta preços e os lucros decorrentes.

Pense. Quando você vê uma criança de rua, esfomeada e com “jeito de que vai roubar alguém”, ao tirar o crack de sua mão, a cena torna-se mais feliz ?


O mundo tem feito progressos nesse sentido. Todas as drogas consumidas no Brasil estão presentes em escala global, porém em poucos locais causa tantos danos quanto no Brasil. Diversas punições admitidas no Brasil são consideradas incogitáveis em outras sociedades.

Já passou da hora de se questionar os absurdos com que convivemos.




Rubem L. de F. Auto


Fonte: http://www.leapbrasil.com.br/jurisprudencia

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