Desde o fim do século XX, mas com muito mais ânimo e
impulsionada pelas atitudes do país mais rico do mundo a partir dos anos 1970,
iniciou-se aquela que ficou conhecida como Guerra às Drogas.
O relacionamento dos seres humanos com substâncias que
alteram o estado da mente é milenar. Contudo, no séc. XIX, com o desenvolvimento
das ciências, diversos princípios ativos foram isolados, estudados e
transformados em medicamentos.
Se na Idade Média a química era feita por alquimistas; se no
séc. XVIII estes deram espaço aos boticários; no séc. XIX surgiram as
indústrias farmacêuticas. Cientistas geniais transformavam conhecimentos
milenares acerca dos efeitos de certas plantas sobre o corpo humano em pílulas
e xaropes. O contato do ser humano com os medicamentos na sua forma natural
foram sendo substituídos por produtos comprados em farmácias, cujos efeitos
foram estudados, isolados e eventuais efeitos colaterais ... e não mais
receitado por um xamã, mas por um profissional médico (vou me abster de
comentar sobre as histórias que ouvimos de alguns médicos e certos laboratórios
...).
Nesse contexto teve nascimento a Lei do Ópio e a tentativa
de manter o consumo dessa substância apenas para fins terapêuticos – o ópio é a
matéria prima de diversos analgésicos, da morfina, da heroína etc.
O movimento que visa ao banimento de todas as substâncias
tóxicas teve início bastante tímido. Ficou marcante, nos EUA, com a Lei Seca,
na década de 1920. Nessa época a maconha era descriminalizada, enquanto a
guerra ao álcool deu origem a Al Capone e que tais (como o Joe Kennedy, pai de
John Kennedy e ídolo de Pablo Escobar ...).
A década de 1960 viu protestos e seu símbolo maior, a maconha, sendo
consumida na esquina da Ashbury com a Height, em São Francisco. Também viu
diversos “Jotas”, ídolos do rock, morrendo de overdose. O posicionamento
político era bastante diverso daquele propagado prelos Falcões bebedores de
whiskie.
Enquanto os falcões desejavam manter a hegemonia americana,
somente conquistada após a II GM porque a Europa (e a Ásia) estava totalmente
destruída, movimentos da sociedade se posicionavam cada vez mais contra. A convocação
de jovens universitários para o Vietnã pôs a classe média contra o governo. Os
negros queriam seus direitos civis. O establishment queria acabar com a URSS. A
China estourava sua bomba atômica. A economia americana entrava na estagflação.
Enfim, criou-se o cenário da tempestade perfeita: todos estavam com medo !
O medo serve para criar leis que façam as pessoas se
sentirem mais seguras. Pode ser uma lei anti-imigração. Pode ser uma lei que
tire direitos, ainda que temporariamente.
Nesse caso, quem foi considerado o grande inimigo pelo
Presidente Nixon ? As drogas recreativas !
Parecia que a culpa por todos os percalços por que passavam
os EUA e, em última instância, o mundo ocidental, era culpa de umas substâncias
que causam relaxamento o que ativam o sistema de recompensa do cérebro.
A listagem das drogas proibidas foi feita rapidamente e,
polemicamente, sem bases científicas sólidas. A inclusão da maconha é
considerada uma insanidade em todos os meios científicos até hoje e não foram
poucos os que anteciparam as tragédias que viriam. O Relatório Cohen, da
Holanda, teve a coragem de dizer o que ninguém mais dizia.
No campo da economia,
a década de 1970 viu o início dos programas de liberalização da economia,
inspirados nas idéias propagandeadas por Milton Friedman, já em implantação no
Chile de Pinochet.
A recessão econômica dos EUA e do RU atravessou a década de
1970, levando a inflação e o desemprego a níveis inéditos desde o fim da II GM.
Comunidades que evoluíam bastante, especialmente de negros e latinos, ensaiando
seus primeiros passos nos direitos à educação superior e a poder circular por
suas cidades despreocupadamente, viram-se engolfadas em desemprego, pobreza e
violência.
Nesse cenário tomou corpo uma atividade consideravelmente
nova e bastante lucrativa. Como a criminalização das drogas era bem recente, as
pessoas que adquiriam essas substâncias por outros meios, passaram a recorrer a
pessoas específicas, que tinham acesso a elas: os traficantes. Nos EUA, por
percorrerem o mesmo caminho das drogas, os latinos passaram a executar esse
trabalho. Apenas uma pequena quantidade consigo poderia garantir-lhes o
dinheiro necessário para iniciar sua vida em terras Yankees.
Explorando o trabalho dessas pessoas (as mulas e os pequenos
traficantes de rua) e a produção de tais drogas, ganharam espaço os Pablo Escobar
da vida.
A partir daí o trabalho de análise é aconselhável a
psicólogos: muito dinheiro leva a muito poder ... que vicia e ninguém quer
perdê-lo, ainda que seja necessário mover uma guerra contra nações.
As drogas que viciam mais rapidamente passam a ser o foco do
comércio de drogas pela sua lucratividade. A maconha e o LSD dos anos 1960 eram
muito leves. A cocaína, a heroína e mais tarde o crack passaram a ser as
estrelas dos traficantes e o pesadelo de sociedades dispostas a mover guerras
sanguinárias contra substâncias químicas. Corpos de pessoas mortas e cadeias
superlotadas tornaram-se o triste epíteto dessa insanidade coletiva.
A divisão internacional da riqueza era a mesma: países ricos
eram consumidores – EUA e Europa; países pobres eram produtores (Colômbia,
Peru, Bolívia ...). No caso da heroína, substitua-se a América Latina pela
Ásia.
Esse cenário pode sofrer mudanças, em um processo que se
assemelha ao que ocorre com os países produtores de petróleo do Oriente Médio:
conforme as pessoas forem enriquecendo, ao papel de produtor soma-se o papel de
consumidor importante. Foi o que ocorreu com o Brasil em fins da década dos
anos 2000.
Pois bem. Passemos agora à questão legal.
O marco legal do Brasil é a CF/88. Esta tem uma base
bastante moderna pois busca garantir a liberdade, o poder de escolha, exige que
eventuais proibições legais tenham uma justificativa relevante.
Por exemplo: inc. X do art. 5.º da CF diz que “são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de
sua violação”. Segundo essa norma constitucional, tem o “cidadão o
direito de impedir que intrusos venham intrometer-se na sua esfera particular”.
O que é esfera particular ? É o “ conjunto de modo de ser e viver, o direito
de o indivíduo viver sua própria vida”; legitima “a pretensão de
estar separado de grupos, mantendo-se o indivíduo livre da observação de outras
pessoas”, reconhecendo-se o “direito à liberdade de que cada ser
humano é titular para escolher o seu modo de vida”. (http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/4740-A-inconstitucionalidade-do-art.-28-da-Lei-de-Drogas)
Tal posicionamento do constituinte visava a evitar mesmo a
criação de uma sociedade totalitária, que se caracteriza pela criação de papéis
pré-estipulados para cada pessoa. Cada um está submetido ao projeto de
sociedade gerado pela mente de “iluminados”, em um gabinete, sem interferência
da sociedade.
Certamente a criminalização das drogas garante uma redução
significativa nas medidas de liberdade de que dispõe uma sociedade.
Pois bem. E quanto à sociedade ? E quanto àquelas pessoas
que não fazem uso, podem elas criar limites à liberdade de quem pensa de
maneira diversa ?
O brocardo jurídico “nulla poena, nullum crimen, nulla
expoenallis, sine iniuria”, que, inspirado em fontes clássicas do saber, “vêem
no dano causado a terceiros as razões, os critérios e a medida das proibições e
das penas”. Sem que dano se verifique, é ilegítima a intervenção criminal,
ideia que encontra respaldo do próprio ordenamento que estabelece graduação dos
delitos de acordo com seu potencial ofensivo (inc. I do art. 98 da CR), além de
prescrever que a existência de crime depende da ocorrência de resultado (art.
13 do CP).
(http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/4740-A-inconstitucionalidade-do-art.-28-da-Lei-de-Drogas)
Trata-se de um dos Princípios básicos do Direito Penal:
Fragmentariedade: O direito penal só deve se
ocupar com ofensas realmente graves aos bens jurídicos protegidos. Tem-se,
aqui, como variante, a intervenção mínima, que nasce o princípio da
insignificância desenvolvido por Claus Roxin. Entende-se que devem
ser tidas como atípicas as ofensas mínimas ao bem jurídico. Não há tipicidade
material. Há, apenas, tipicidade formal.
O Princípio da Lesividade ou da
Ofensividade (nullum crimen sine iniuria) no direito penal exige
que do fato praticado ocorra lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado
Princípio da alteridade
(ou transcendentalidade) “só pode
ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e não
seja simplesmente pecaminoso e imoral. A conduta puramente interna, seja
pecaminosa, imoral, escandalosa, falta a lesividade que pode legitimar a
intervenção penal*”. (Nilo Batista)
Por esse motivo não existem os crimes de Tentativa de
Suicídio (ou de autolesão corporal).
Consumir drogas é, antes de qualquer coisa, um exercício das
liberdades individuais. Pense: se eu quiser, posso me matar ? O suicídio é
ilegal ? Isto é: “pelo menos do ponto de vista do direito criminal, a todos
os homens assiste o inalienável direito de irem para o inferno à sua própria
maneira, contanto que não lesem diretamente a pessoa ou a propriedade alheias”.
O art. 28 da Lei de Drogas (11.343/2006) dispõe: “Quem
adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será
submetido às seguintes penas (...).”
Trata-se, portanto, de ambiente protegido
constitucionalmente, sendo objeto de penalização infraconstitucional. Aproxima-se essa regra da moralidade que
sustentava a eugenia, a criação do homem perfeito e livre de todos os vícios –
algo risível para quem conhece um pouquinho a história da humanidade ... e seus
vizinhos.
Trata-se de regra jurídica teratológica e típica de
sociedades submetidas a governos autoritários. Portanto não surpreende que
tenha sido adotada com tanto júbilo por parte da comunidade jurídica brasileira
...
Frente à argumentação que defende (acertadamente) a
inexistência de direitos absolutos, deve-se notar que a harmonização com o art.
5º, X, deve seguir critérios de norma também constitucional.
Em geral, os julgados que tratam de condenação de pessoas
por porte de droga (conduta despenalizada mas não descriminalizada), apelam
para a “segurança da sociedade” e para a “paz pública”. Evidentemente esses
motivos devem balizar políticas sociais amplas e voltadas, especificamente, à
proteção do bem jurídico protegido (esses dois citados ou quaisquer outros).
Adotar o posicionamento atual é justificar a expulsão dos judeus da Alemanha
para o bem coletivo da sociedade alemã, ou aceitar que pessoas pudessem ser
condenadas por defender idéias destoantes da religião majoritária de uma
sociedade. Não se pode admitir esse grau de abstração.
A norma que visa à proteção da saúde pública é a que dispõe
que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. O que garante a paz social
é uma sociedade equilibrada, igualitária e que não perpetue injustiças. O
direito penal não tem e nunca terá essa função.
Os tribunais que têm decidido de maneira diversa dizem que a
conduta criminalizada é o porte (trazer consigo), não o uso (fumar, cheirar,
injetar etc).
Porém o argumenta continua não se sustentando, pois a
conduta criminalizada deve obedecer oferecer perigo relevante à sociedade. O
fato de alguém trazer consigo uma droga para consumo próprio não atinge direitos
de terceiros, a menos que se faça um exercício de imaginação que não respeita
nem mesmo o bom senso de uma pessoa comum.
A difusão dessas substâncias pela sociedade ocorre em
momento bem anterior ao consumo, envolvendo comércio transnacional, divisão especializada
do trabalho, cultivo de terras, agentes que atuam no atacado, no varejo ...
Além do mais, pode-se questionar. Mas e quanto à pessoa que
vai ao bar e compra álcool e um maço de cigarros ? Não estará planejando fazer
mal a si mesmo e não está ajudando na difusão dessas substâncias ? Não deveria
o ordenamento jurídico garantir mínima equidade ? Note-se que a própria
proibição (aceita de maneira estranha e excessivamente permissiva pelo Poder
Judiciário, a quem cabe até mesmo a avaliação na esfera jurídica de leis
aprovadas pelo Legislativo) impede a análise científica quanto à real
periculosidade das substâncias em foco. Ainda que se argumente que é possível
tê-las legalmente, por meio de autorização, o estigma social trazido por normas
paleolíticas como essa desestimulam até mesmo a pesquisa.
A criminalização do consumidor final, que visa claramente à
sua satisfação pessoal, apenas reflete:
1-
Prevaricação de agentes que deveriam coibir a
distribuição da substância.
2-
Falta de atividades de inteligência das diversas
polícias.
3-
Falta de capacidade de enfrentar as organizações
que se dedicam ao tráfico de drogas (que não fica limitada à realidade de
pobreza, favelas, becos em subúrbios etc).
4-
Total falta de bom senso e mesmo uma certa
covardia, por liberar as forças da lei de maneira desinibida apenas contra os
mais fracos, socialmente falando.
E quanto ao tráfico de drogas ilícitas ? Inicialmente, em
nada tal crime se diferencia do contrabando.
Em segundo lugar, trata-se de extensão lógica do uso.
Em terceiro lugar, não obedece ao grau de periculosidade
observado em outras substâncias (ou bens) de circulação protegida. O que pode
justificar o banimento da circulação interna de substâncias é a mesma regra que
vale para as demais (álcool, tabaco ...). É evidente que não se pode tratar
substância psicoativas como regulam armas, explosivos etc.
Por fim, todos os danos socieais relacionados à violência
estão diretamente relacionados a problemas sociais e à própria proibição, que
aumenta preços e os lucros decorrentes.
Pense. Quando você vê uma criança de rua, esfomeada e com “jeito
de que vai roubar alguém”, ao tirar o crack de sua mão, a cena torna-se mais
feliz ?
O mundo tem feito progressos nesse sentido. Todas as drogas
consumidas no Brasil estão presentes em escala global, porém em poucos locais
causa tantos danos quanto no Brasil. Diversas punições admitidas no Brasil são consideradas
incogitáveis em outras sociedades.
Já passou da hora de se questionar os absurdos com que
convivemos.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: http://www.leapbrasil.com.br/jurisprudencia
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