Ao longo dos seus dois Tratados
sobre o Governo Civil, John Locke procura dar uma resposta à obra de Filmer
(Patriarcha), um pouco anterior, que tentava justificar o governo
essencialmente hereditário.
A pedido do conde de Shaftsbury
(Ashley Cooper), então nomeado por Carlos II como líder do governo. Discutia-se
então a conveniência em nomear Jaime II, irmão de Carlos e católico, como
sucessor de Carlos, protestante. Shaftesbury era protestante e discordava de
devolver o poder a monarcas católicos.
Após ser desafiado pela obra de
Filmer, Shaftsbury pede que seu amigo, John Locke, escreva uma resposta, algo
que contraste com o ponto de vista explorado nessa obra.
Locke não escreve uma, mas duas
obras imortais nas quais exploram os muitos meandros que constituem as bases
dos governos.
Ao longo dos dois Tratados, Locke
aborda diversos aspectos relacionados aos governos civis.
Locke abordou também os direitos
inerentes aos seres humanos, aqueles com os quais viemos ao mundo: vida,
liberdade e propriedade.
Embora tenha abordado o estado de
natureza, estado a partir do qual os homens decidiram formar governos, Locke
não se prende a aspectos pacíficos ou de conflitos, mas à necessidade de
defender uma invenção humana: a propriedade privada. Somente para garantir este
instituto existiu a necessidade de criar governos. Sem isso, os homens não
teriam aceitado a idéia de se submeter de bom grado a governantes:
“Todo homem tem
direito de propriedade sobre sua própria pessoa. A ela ninguém tem direito
algum além dele próprio. O trabalho de seu próprio corpo, podemos dizer,
pertence a ele... O grande e principal fim, portanto, pelo qual os homens
unem-se em sociedades e submetem-se a governos é a preservação de sua
propriedade”.
Evidentemente eram necessários
mecanismos que pudessem garantir o alcance desses objetivos: divisão do Poder
em Executivo e Legislativo; leis que se sobreponham ao próprio poder do
governante, criando assim a idéia do Estado de Direito:
“viver segundo
uma lei estável, comum a todos daquela sociedade, e criada pelo Poder
Legislativo da sociedade; Liberdade de seguir minha própria vontade em todas as
coisas sobre as quais a lei não disponha, e não estar sujeito à vontade
inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de outro homem”.
Quando o governante deixa de cumprir
algumas dessas obrigações citadas, torna-se um tirano. Nesse momento nasce o
direito de a população rebelar-se contra tal tirano. Locke vê o direito à
Revolução (e à própria destituição do soberano, quiçá sua morte) como uma
proteção da sociedade contra o uso desmedido (e ilegal) do Poder.
“Sendo todos iguais e
independentes, nenhum homem deve prejudicar outro em sua vida, saúde e posses”,
dizia.
Não apenas reconhecia a igualdade
inerente a todos, como via o povo como o real soberano:
“os governantes
não podem recolher impostos sobre a propriedade do povo sem o consentimento do
povo, expresso por eles mesmos ou seus representantes”.
Ao infringir quaisquer dessas
normas básicas de como um governante deve bem se portar no Poder, devo povo
perceber o exercício arbitrário do Poder, dando aos reais detentores do Poder,
o povo, o direito a rebelar-se:
“Quando os
legisladores tentam tomar e destruir a propriedade do povo, ou reduzi-lo à
escravidão sob poder arbitrário, eles se colocam em estado de guerra com o
povo, que está então desobrigado de qualquer obediência e deixado ao refúgio
comum contra a força e a violência dado por Deus a todos os homens. Portanto,
sempre que o legislativo transgredir esta regra fundamental da sociedade, e,
por ambição, medo, loucura ou corrupção, tentar tomar para si ou pôr nas mãos
de qualquer outro um poder arbitrário sobre as vidas, liberdades e posses do
povo; por essa quebra de confiança ele abre mão do poder que o povo lhe havia
concedido para fins bastante contrários, e ele retorna ao povo, que tem o
direito de retomar sua liberdade original”.
O estado de guerra que o
governante põe em face do povo se assemelha bastante ao estado de natureza de
Hobbes, contudo Locke somente via esse estado de caos quando o governante
subvertia o Poder. Não era o estado de natureza (ou de guerra) que levava ao
estabelecimento de governos, na visão de Locke, mas a necessidade de garantir a
propriedade privada.
A Revolução americana deve muito
às idéias de Locke. Porém o “power trio” de Locke, vida, liberdade e propriedade,
foi substituído na Constituição americana, por influência de Jefferson, por:
vida, liberdade e procura da felicidade. Deve-se aí fazer umas pequenas
observações acerca da visão de Jefferson sobre a propriedade privada.
Proprietário de escravos,
Jefferson não conseguia aceitar a imoralidade contida no instituto da
escravidão por não conseguir reconhecer a igualdade entre brancos e negros.
Entretanto também não compartilhava a visão absoluta de Locke sobre esse
direito. Na Inglaterra de Locke, e até meados do séc. XX, apenas proprietários
tinham direito ao voto (e à candidatura). Portanto esse direito estava bastante
intrincado na sociedade.
Jefferson aceitava bem que há
limites mesmo a esse direito, e esse limite tem a ver com eventuais
externalidades negativas trazidas à sociedade pelo mau uso da propriedade
privada.
Interessante notar que as
Revoluções podem causar grandes mudanças no Poder ou na sociedade. As
Revoluções Inglesa (ou Gloriosa) e Americana mudaram o Poder, alteraram o modo
como os governantes exercem o Poder, mas não alteraram tanto a sociedade.
Contudo, a presença de soldados
franceses nas guerras de independência dos EUA, na época em que o absolutismo
graçava em terras francesas, incentivou bastante a contaminação da sociedade
francesa pelas idéias lockianas. Tal fato se somava ao trabalho de pensadores
como Voltaire e Montesquieu, que traduziam e adaptavam seus trabalhos para a
França.
Dali a alguns anos, tinha início
a Revolução francesa, essa sim capaz de mudar toda a estrutura social, não
apenas o governante da ocasião e seu séquito.
Porém, ao cabo, restou a sensação
de que algo deu errado. A revolução não causou a mudança que prometia, haja
vista o poder ter caído em mão de Napoleão, que adotou o título de cônsul, o
que poderia dar esperanças de um renascimento de uma República romana, mas
exerceu o poder como um César, dando a certeza de tratar-se do renascimento do
Império romano.
Quais motivos levaram a isso ?
Várias são as possíveis respostas: a Inglaterra apoiou os emigré, nobres que
conseguiram fugir para o ilha e de lá iniciaram movimentos para derrotar a
Revolução; Áustria, Prússia, Espanha eram monarquistas e tanto ajudaram aos
contra-revolucionários quanto tentaram se aproveitar da fraqueza do período
revolucionário para invadir o país. Não surpreende que o maior soldado da
história da Europa tenha herdado o Poder.
No séc. XIX, um novo atento
observador francês foi capaz de trazer algumas observações bastante
interessantes relacionadas aos ensinamentos de Locke. Toqueville escreveu que o
Poder absoluto do passado era exercido pelo soberano, sobre o Povo. Contudo
havia uma estrutura, a própria administração pública, no meio. As pessoas que
exerciam cargos na administração eram, antes de tudo, interessados no Poder,
que trocavam favores ou se filiavam a certos grupos. Isso lhes garantia o cargo
e, de certa maneira, limitava o Poder do soberano.
Ao mudar a estrutura do Poder,
adotando-se princípios mais democráticos, poderia deixar de existir essa camada
entre o governante e o Povo, abrindo-se espaço para duas possibilidades:
democracias radicais ou totalitarismo insuportável. Adiantou Tocqueville,
assim, governos nazifascistas com um século de antecedência.
Fica a lição: não devemos
esquecer os pensadores do passado ...
Rubem L. de F. Auto
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