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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

MASTERCHEF, COM ALEXANDRE DUMAS – OS TRÊS COZINHEIROS DE MONTE CRISTO



Por volta de 1850, o imortal escritor francês Alexandre Dumas, autor de obras antológicas como Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo, As Aventuras de Robin Hood, dentre muitos outros (seu filho foi o autor de A Dama das Camélias), estava falido. Construíra um palácio delirante, o Castelo de Monte Cristo, investiu num poço sem fundo, o Teatro Historique, e já estava bastante desiludido com a literatura – a despeito da fortuna que amealhou com o sucesso de seus livros.
Foi então que resolveu mudar o rumo de sua carreira. Passou a se dedicar à coleta de material para uma obra sobre culinária – a cozinha francesa reinava sozinha no mundo da alta gastronomia no século XIX.

Dumas desejava vida perene a sua obra culinária, e de fato assim o fez: o Grande Dicionário de Culinária se tornaria uma das duas maiores obras do gênero escritas na França, consagrando-se ao lado de A Fisiologia do Gosto, de Brillat-Savarin.

A história abaixo abre o livro e se trata de testemunho vivido pelo próprio autor, sob o título: Ao Fogão com Dumas.


“Oh, mar, único a que fui fiel!” Estes versos de Byron poderiam ser minha divisa: gosto do mar como item indispensável ao prazer e mesmo à felicidade de nossa existência. Quando fico sem ver o mar por muito tempo, sou atormentado por um desejo irresistível, e, sob um pretexto qualquer, pego um trem e vou para Trouville, para Dieppe ou para Havre. Naquele dia, fui para Fécamp.

Mal cheguei, vieram convidar-me para uma pescaria no dia seguinte. Conheço essas pescarias, não se pesca nada, em geral compra-se o peixe que compõe a base do jantar posterior à pescaria. Daquela vez, porém, contrariando a rotina, pegamos duas cavalas e um polvo, mas compramos uma lagosta, um linguado e uma centena de camarões. Um catador de mexilhões que encontramos no caminho contribuiu com centenas desses bivalves.

Discutimos longamente para decidir na casa de quem seria o jantar, a escolha recaindo em um grande comerciante de vinhos de Fécamp, que colocara sua adega inteira à nossa disposição. No caminho o sujeito nos garantiu que sua cozinheira já estava preparando um caldo e que na casa dele encontraríamos material para dois ou três pratos, cujos elementos a moça deveria ter reunido.

Ocorre que a cozinheira, por mais cordon bleu pudesse ser, foi exonerada por unanimidade e eu, eleito em seu lugar. Se lhe aprouvesse, que conservasse o título de vice-cozinheira, mas sob a condição de não ousar apor-se ao cozinheiro-em-chefe.

Que agora as donas de casa que desejem acrescentar dois ou três pratos desconhecidos ao seu repertório culinário façam o favor de entrar comigo nessa cozinha admiravelmente aparelhada e não perder nenhum detalhe do que vai acontecer. Como nos haviam prometido, encontramos um caldo de panela desde as 10 da manhã, o que representava quase oito horas de cozimento; com oito horas de cozimento, decerto já atingira a maioridade. Repito sempre que a França é o único país que sabe preparar um caldo, sendo inclusive provável que minha concierge, que não faz nada a não ser viver a vida e puxar a cordinha, tome uma sopa melhor que Mr. Rothschild.

De volta à nossa cozinheira, ela estava então com seu caldo crepitando, duas galinhas ainda com penas aguardando o espeto, um rim de boi ignorando ainda em que molho seria introduzido, um feixe de aspargos começando a germinar e, no fundo de uma cesta, tomates e cebolas brancas.
Espalhei tudo na bancada da cozinha, pedi pena e tinta e montei o seguinte cardápio para aprovação dos meus convidados:

Sopa:
Sopa de tomate com caudas de camarão

Entradas:
Lagosta à americana
Linguado ao molho normando
Cavalas a la maître d`hôtel
Rins salteados no champagne

Assados:
Duas galinhas no barbante
Polvo Frito

Entremets:
Tomates à provençal
Ovos mexidos no suco de camarão
Pontas de aspargos
Corações de alface à espanhola, sem azeite nem vinagre

Sobremesas de frutas
Vinhos
Café:
Bénédictine/Champagne fino

Montei, como ia dizendo, esse cardápio, que foi escolhido com um urra de entusiasmo; apenas me perguntaram quanto tempo esse jantar levaria para ficar pronto. Pedi hora e meia, surpreendentemente concedidas. Achavam que eu precisaria de três.

O grande talento do cozinheiro que quer ser pontual reside em preparar antecipadamente e ter à mão todos os acessórios de seus pratos – coisa de 15 minutos. Porém, como é impossível fazer andar com a pena uma sopa, quatro entradas, dois assados, dois entremets e uma salada, permitam-me explicar-lhes meu serviço prato a prato.

·         Sopa de tomate com caudas de camarão: Acenda 2 bocas do fogão ao mesmo tempo: na primeira, ponha água salgada para os camarões, 1 buquê de ervas (buquet garni), 2 rodelas de limão, ferva e jogue os camarões nessa água em ebulição; na segunda, 12 tomates sem as sementes, 4 cebolas grandes cortadas em rodelas, 1 pedaço de manteiga, 1 dente de alho, 1 buquê de ervas.

Cozidos os camarões, retire-os, escorra-os na peneira, reserve sua água, descasque os camarões e ponha as caudas à parte. Cozidos os tomates e cebolas, passe-os na peneira fina, volte com eles ao fogo enriquecidos com 1 pedaço de glace de viande e 1 pitada de pimenta-vermelha e deixe engrossar até virar um purê.

Adicione o mesmo volume de caldo, bem como ½ copo de água em que os camarões foram cozidos; deixe que tudo se misture ao ferver; na terceira ou quarta fervura, junte as caudas de camarão, e a sopa estará pronta.

Não preciso dizer que, não obstante eu tenha dado a receita individual de cada item, convém fazer tudo ao mesmo tempo.

·         Lagosta à americana: Dentre os diferentes métodos adotados para preparar a lagosta americana, escolhemos o método Vuillemot. Pedimos toda a atenção de nossos leitores e sobretudo de nossas leitoras, por ser o prato bem complicado.
1-      Disponha em uma caçarola 2 cebolas grandes cortadas em quatro, 1 buquê de ervas, 2 pedacinhos de alho, acrescente 1 garrafa de um bom vinho branco, ½ copo de conhaque comum, 1 concha de um bom consomê, sal, pimenta moída grosseiramente e alguns grãos de boa pimenta da Espanha. Introduza as lagostas, ½ hora de cozimento é o bastante. Calma! O mais difícil está por fazer.
2-      Deixe o crustáceo esfriar no caldo de cozimento, se não se estiver com pressa; quanto menos se apresentar, melhor será. Retire a carne da lagosta e corte-a em tiras, incluindo o carnudo das patas; ponha tudo em um prato fundo, regue com um pouco do caldo onde cozinhou a lagosta, cubra com um papel untado de manteiga e reserve aquecido na estufa. Não sirva ainda.
3-      Pegue 8 bonitos tomates, corte-os em dois, extraia a parte aquosa, dispense-a, jogue manteiga na panela e arrume os tomates por cima, temperando com sal, pimenta grosseiramente moída, um pouco de pimenta e manteiga fresca; leve ao forno; depois do cozimento, mantenha-os aquecidos.
4-      Corte 2 cebolas grande em cubos, comprima-as em um pano de prato para extrair o glúten; faça-as saltear em uma panela com um pouco de manteiga, deixe-as alourar, acrescente 1 colher de sopa de farinha; regue com metade do caldo do cozimento da lagosta, deixe apurar o molho em um canto do fogão, reduza-o à metade acrescentando 4 colheres de purê de tomate, reduza, reduza ainda em 1/3 com a glace de viande, depois passe o molho na peneira, acrescente um pouco de suco de limão, uma noz de manteiga fresca, e aguarde.
5-      Pegue então a carapaça da lagosta, ovos, se os há, e pile tudo com um pouco de manteiga; passe na peneira, acrescente 1 grão de pimenta, arrume os filés de lagosta em coroa em uma travessa para legumes, os tomates por cima, despeje a manteiga de lagosta nas cavidades formadas pelos filés, cubra com o suco de carne e sirva.

Este prato, um pouco complicado, não deve ser executado por novatos; para ataca-lo, é preciso ser cozinheiro ou cozinheira com certa tarimba.

·         Linguado ao molho normando: Arrume seu linguado em uma travessa de prata, unte-a com manteiga, tempere com sal, pimenta, 1 copo de vinho branco e leve ao forno. Coloque um pedaço de manteiga na panela, mexa até dourar; um pouco de farinha. Junte a manteiga e o vinho branco do linguado, para o qual você deixou justo o necessário para que não ressecasse; reduza-o à metade.

Cozinhe uns 30 mexilhões, 10 ou 12 champignons. Despeje o suco dos mexilhões no molho; reduza tudo à metade, engrosse com 4 gemas e ½ copo de creme fresco, arrume os mexilhões e os champignons em volta do peixe; cubra com o molho.

Alguns pedacinhos de manteiga aqui e ali, deixe o peixe no forno por uns 2 minutos e sirva.

·         Cavalas e rins: Em relação às cavalas e aos rins, nada tenho a ensinar sobre esses dois pratos. É o ABC da cozinha. Apenas faça o molho dos rins e, maior quantidade e reserve ½ copo à parte, no momento de servir, a fim de que o molho fique o mais completo possível. Você verá por que adiante.

·         Galinhas no barbante: Até o momento de executar minhas galinhas no barbante, fui vítima das observações da minha vice-cozinheira; porém, chegada a hora decisiva, as observações viraram oposição. Sem tempo a perder, ameacei-a com um golpe de Estado que consistiria em indenizá-la e botá-la porta afora. A ameaça fez efeito, ela obedeceu passivamente e, cinco minutos depois, minhas duas galinhas giravam lado a lado, como dois fusos.

Mas como hoje disponho de tempo para lhes dar minhas razões e explicar a superioridade da galinha no barbante sobre a galinha no espeto, ouçam-me. Todo animal tem dois orifícios: o superior e o inferior, e a galinha, sob esse aspecto, é igual ao homem. Diógenes disse-o 2.400 anos antes de mim, no dia em que lançou um galo emplumado na ágora de Atenas, proclamando: “Eis o homem de Platão!”

Você tirou, quando digo você tirou quero dizer sua cozinheira tirou, os intestinos e o fígado, jogou fora os intestinos, picou o fígado com fines herbes, cebolinha e salsa, besuntou tudo com um pedaço de manteiga e, no luar dos intestinos, doravante não apenas inúteis como daninhos, reintroduziu esse picadinho destinado a perfumá-lo.

Qual deve ser agora o objetivo do cozinheiro? Conservar, do animal por ele cozinhado, a maior quantidade de essência possível. Ora, se lhe atravessar um espeto ao comprido e, para firmá-lo, uma brochete lateral, em vez de tampar um dos dois orifícios com que a natureza o aquinhoou, você lhe imporá dois outros pelos quais toda a essência vai escapar. Porém se, ao contrário, pendurá-la verticalmente com esse barbante, deixando o orifício inferior livre e o superior tampado; se, com excelente manteiga fresca, misturada a sal e pimenta, regá-la, tendo o cuidado de introduzir a manteiga no orifício inferior com a colher de regar – então você terá cumprido com todas as condições lógicas para obter uma excelente galinha. Resta-lhe então apenas vigiar o cozimento e cortar o barbante que a sustenta, hora de fazer alguns buraquinhos em sua pele, de onde é expelido um jato de fumaça. Coloque-a então em uma travessa e despeje sobre ela o suco da pingadeira.

Sobretudo, que jamais uma gota de caldo misture-se à manteiga que deve regar sua galinha; toda cozinheira, não canso de repetir, que coloca caldo em sua pingadeira merece ser posta na rua ignominiosamente e sem misericórdia.

·         Polvo frito: Quanto ao polvo frito, é simples como qualquer peixe, badejo ou linguado: corte-o em pedaços, passe-os na farinha, frite no óleo quente, retire na hora certa e você terá algo parecido com orelha de vitela frita, com um ligeiro gosto de almíscar.

·         Ovos mexidos e tomates recheados à provençal: A infância da arte: quebre 12 ovos em uma sopeira, deixando apenas 6 claras para as 12 gemas; acrescente, depois de os ter batido, um pedaço de manteiga, fines herbes, ½ copo de caldo de consomê (de galinha, se tiver) e abandone tudo aos cuidados da cozinheira, que só terá de colocar na panela, levar ao fogo e mexer.

Recomendação capital: servir moles os ovos mexidos, continuando a cozê-los no prato. Quanto aos tomates, corte-os em dois, retire a parte aquosa, descarte as sementes e leve-os ao forno, enfiando, no vão de cada um, uma pirâmide composta de um picadinho de galinha, vitela, caça da véspera, se tiver, e champignons.

Despeje sobre eles 1 copo de azeite, do melhor que puder encontrar; em seguida, polvilhe com sal, pimenta, salsa e alho picados junto; acrescente uma pontinha de pimenta-vermelha; cozinhe entre 2 fogos, regando 3 ou 4 vezes suas pirâmides de carne com o azeite em que os tomates assaram.

·         Salada de corações de alface: Nossa salada de corações de alface, sem azeite ou vinagre, é um souvenir de nossa viagem à Espanha, onde o vinagre não tem gosto de nada, ao passo que o azeite empesteia. Impossível, por conseguinte, comer salada quando o calor do céu e a secura do ar lhe dão apetências violentas de ervas frescas. Bem, remediamos isso substituindo o azeite por gemas e o vinagre por limão. Esta mistura, suficientemente sustentada por sal e pimenta, dava-nos uma salada delicada cujo sabor acabamos preferindo ao das saladas francesas. Ao fim de uma hora e meia, o jantar estava servido; mas quatro horas depois ainda estávamos à mesa! Assim, qual não foi a reputação que deixei em Fécamp, e como fui recebido da última vez!

Permita-me acrescentar ainda uma receita que poderia perfeitamente vir depois destas sem sentir-se deslocada:
·         Ovos mexidos no suco de camarão: Pegue 12 ovos, quebre-os, mas reserve em uma tigela todas as gemas e apenas 8 claras, visto que o excesso de claras tira a delicadeza do prato. Ponha para ferver em uma caçarola à parte os corpos dos camarões com 1 copo de chablis. Dê 2 ou 3 fervuras e despeje tudo em seguida no alguidar para fazer um purê, o qual você passará na peneira fina para retirar o mínimo vestígio de carapaça. Desmanche essa espécie de papa nos ovos previamente temperados com sal e pimenta e ligeiramente incrustados com cebolinha e salsa picadas bem miudinho. Junte as caudas de camarão, bata com os ovos e despeje tudo na frigideira com manteiga fresca; cozinhe e transfira para um prato com muito jeito.



Rubem L. de F. Auto

Fonte: livro “Grande Dicionário de Culinária”

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