Por volta de 1850, o imortal escritor francês Alexandre
Dumas, autor de obras antológicas como Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte
Cristo, As Aventuras de Robin Hood, dentre muitos outros (seu filho foi o autor
de A Dama das Camélias), estava falido. Construíra um palácio delirante, o
Castelo de Monte Cristo, investiu num poço sem fundo, o Teatro Historique, e já
estava bastante desiludido com a literatura – a despeito da fortuna que
amealhou com o sucesso de seus livros.
Foi então que resolveu mudar o rumo de sua carreira. Passou
a se dedicar à coleta de material para uma obra sobre culinária – a cozinha francesa
reinava sozinha no mundo da alta gastronomia no século XIX.
Dumas desejava vida perene a sua obra culinária, e de fato
assim o fez: o Grande Dicionário de Culinária se tornaria uma das duas maiores
obras do gênero escritas na França, consagrando-se ao lado de A Fisiologia do
Gosto, de Brillat-Savarin.
A história abaixo abre o livro e se trata de testemunho
vivido pelo próprio autor, sob o título: Ao Fogão com Dumas.
“Oh, mar, único a que fui fiel!” Estes versos de Byron
poderiam ser minha divisa: gosto do mar como item indispensável ao prazer e
mesmo à felicidade de nossa existência. Quando fico sem ver o mar por muito
tempo, sou atormentado por um desejo irresistível, e, sob um pretexto qualquer,
pego um trem e vou para Trouville, para Dieppe ou para Havre. Naquele dia, fui
para Fécamp.
Mal cheguei, vieram convidar-me para uma pescaria no dia
seguinte. Conheço essas pescarias, não se pesca nada, em geral compra-se o
peixe que compõe a base do jantar posterior à pescaria. Daquela vez, porém,
contrariando a rotina, pegamos duas cavalas e um polvo, mas compramos uma
lagosta, um linguado e uma centena de camarões. Um catador de mexilhões que
encontramos no caminho contribuiu com centenas desses bivalves.
Discutimos longamente para decidir na casa de quem seria o
jantar, a escolha recaindo em um grande comerciante de vinhos de Fécamp, que
colocara sua adega inteira à nossa disposição. No caminho o sujeito nos
garantiu que sua cozinheira já estava preparando um caldo e que na casa dele
encontraríamos material para dois ou três pratos, cujos elementos a moça
deveria ter reunido.
Ocorre que a cozinheira, por mais cordon bleu pudesse ser,
foi exonerada por unanimidade e eu, eleito em seu lugar. Se lhe aprouvesse, que
conservasse o título de vice-cozinheira, mas sob a condição de não ousar apor-se
ao cozinheiro-em-chefe.
Que agora as donas de casa que desejem acrescentar dois ou
três pratos desconhecidos ao seu repertório culinário façam o favor de entrar
comigo nessa cozinha admiravelmente aparelhada e não perder nenhum detalhe do
que vai acontecer. Como nos haviam prometido, encontramos um caldo de panela
desde as 10 da manhã, o que representava quase oito horas de cozimento; com
oito horas de cozimento, decerto já atingira a maioridade. Repito sempre que a
França é o único país que sabe preparar um caldo, sendo inclusive provável que
minha concierge, que não faz nada a não ser viver a vida e puxar a cordinha,
tome uma sopa melhor que Mr. Rothschild.
De volta à nossa cozinheira, ela estava então com seu caldo
crepitando, duas galinhas ainda com penas aguardando o espeto, um rim de boi
ignorando ainda em que molho seria introduzido, um feixe de aspargos começando
a germinar e, no fundo de uma cesta, tomates e cebolas brancas.
Espalhei tudo na bancada da cozinha, pedi pena e tinta e
montei o seguinte cardápio para aprovação dos meus convidados:
Sopa:
Sopa de tomate com caudas de camarão
Entradas:
Lagosta à americana
Linguado ao molho normando
Cavalas a la maître d`hôtel
Rins salteados no champagne
Assados:
Duas galinhas no barbante
Polvo Frito
Entremets:
Tomates à provençal
Ovos mexidos no suco de camarão
Pontas de aspargos
Corações de alface à espanhola, sem azeite nem vinagre
Sobremesas de frutas
Vinhos
Café:
Bénédictine/Champagne fino
Montei, como ia dizendo, esse cardápio, que foi escolhido
com um urra de entusiasmo; apenas me perguntaram quanto tempo esse jantar
levaria para ficar pronto. Pedi hora e meia, surpreendentemente concedidas.
Achavam que eu precisaria de três.
O grande talento do cozinheiro que quer ser pontual reside
em preparar antecipadamente e ter à mão todos os acessórios de seus pratos –
coisa de 15 minutos. Porém, como é impossível fazer andar com a pena uma sopa,
quatro entradas, dois assados, dois entremets e uma salada, permitam-me
explicar-lhes meu serviço prato a prato.
·
Sopa de tomate com caudas de camarão: Acenda 2
bocas do fogão ao mesmo tempo: na primeira, ponha água salgada para os
camarões, 1 buquê de ervas (buquet garni), 2 rodelas de limão, ferva e jogue os
camarões nessa água em ebulição; na segunda, 12 tomates sem as sementes, 4 cebolas
grandes cortadas em rodelas, 1 pedaço de manteiga, 1 dente de alho, 1 buquê de
ervas.
Cozidos os camarões, retire-os, escorra-os
na peneira, reserve sua água, descasque os camarões e ponha as caudas à parte.
Cozidos os tomates e cebolas, passe-os na peneira fina, volte com eles ao fogo
enriquecidos com 1 pedaço de glace de viande e 1 pitada de pimenta-vermelha e
deixe engrossar até virar um purê.
Adicione o mesmo volume de caldo, bem como ½
copo de água em que os camarões foram cozidos; deixe que tudo se misture ao
ferver; na terceira ou quarta fervura, junte as caudas de camarão, e a sopa
estará pronta.
Não preciso dizer que, não obstante eu
tenha dado a receita individual de cada item, convém fazer tudo ao mesmo tempo.
·
Lagosta à americana: Dentre os diferentes
métodos adotados para preparar a lagosta americana, escolhemos o método
Vuillemot. Pedimos toda a atenção de nossos leitores e sobretudo de nossas
leitoras, por ser o prato bem complicado.
1-
Disponha em uma caçarola 2 cebolas grandes
cortadas em quatro, 1 buquê de ervas, 2 pedacinhos de alho, acrescente 1
garrafa de um bom vinho branco, ½ copo de conhaque comum, 1 concha de um bom
consomê, sal, pimenta moída grosseiramente e alguns grãos de boa pimenta da
Espanha. Introduza as lagostas, ½ hora de cozimento é o bastante. Calma! O mais
difícil está por fazer.
2-
Deixe o crustáceo esfriar no caldo de cozimento,
se não se estiver com pressa; quanto menos se apresentar, melhor será. Retire a
carne da lagosta e corte-a em tiras, incluindo o carnudo das patas; ponha tudo
em um prato fundo, regue com um pouco do caldo onde cozinhou a lagosta, cubra
com um papel untado de manteiga e reserve aquecido na estufa. Não sirva ainda.
3-
Pegue 8 bonitos tomates, corte-os em dois,
extraia a parte aquosa, dispense-a, jogue manteiga na panela e arrume os
tomates por cima, temperando com sal, pimenta grosseiramente moída, um pouco de
pimenta e manteiga fresca; leve ao forno; depois do cozimento, mantenha-os
aquecidos.
4-
Corte 2 cebolas grande em cubos, comprima-as em
um pano de prato para extrair o glúten; faça-as saltear em uma panela com um
pouco de manteiga, deixe-as alourar, acrescente 1 colher de sopa de farinha;
regue com metade do caldo do cozimento da lagosta, deixe apurar o molho em um
canto do fogão, reduza-o à metade acrescentando 4 colheres de purê de tomate,
reduza, reduza ainda em 1/3 com a glace de viande, depois passe o molho na peneira,
acrescente um pouco de suco de limão, uma noz de manteiga fresca, e aguarde.
5-
Pegue então a carapaça da lagosta, ovos, se os
há, e pile tudo com um pouco de manteiga; passe na peneira, acrescente 1 grão de
pimenta, arrume os filés de lagosta em coroa em uma travessa para legumes, os
tomates por cima, despeje a manteiga de lagosta nas cavidades formadas pelos
filés, cubra com o suco de carne e sirva.
Este prato, um pouco complicado,
não deve ser executado por novatos; para ataca-lo, é preciso ser cozinheiro ou cozinheira
com certa tarimba.
·
Linguado ao molho normando: Arrume seu linguado
em uma travessa de prata, unte-a com manteiga, tempere com sal, pimenta, 1 copo
de vinho branco e leve ao forno. Coloque um pedaço de manteiga na panela, mexa
até dourar; um pouco de farinha. Junte a manteiga e o vinho branco do linguado,
para o qual você deixou justo o necessário para que não ressecasse; reduza-o à
metade.
Cozinhe uns 30 mexilhões, 10 ou 12
champignons. Despeje o suco dos mexilhões no molho; reduza tudo à metade,
engrosse com 4 gemas e ½ copo de creme fresco, arrume os mexilhões e os
champignons em volta do peixe; cubra com o molho.
Alguns pedacinhos de manteiga aqui e ali,
deixe o peixe no forno por uns 2 minutos e sirva.
·
Cavalas e rins: Em relação às cavalas e aos
rins, nada tenho a ensinar sobre esses dois pratos. É o ABC da cozinha. Apenas
faça o molho dos rins e, maior quantidade e reserve ½ copo à parte, no momento
de servir, a fim de que o molho fique o mais completo possível. Você verá por
que adiante.
·
Galinhas no barbante: Até o momento de executar
minhas galinhas no barbante, fui vítima das observações da minha vice-cozinheira;
porém, chegada a hora decisiva, as observações viraram oposição. Sem tempo a
perder, ameacei-a com um golpe de Estado que consistiria em indenizá-la e
botá-la porta afora. A ameaça fez efeito, ela obedeceu passivamente e, cinco
minutos depois, minhas duas galinhas giravam lado a lado, como dois fusos.
Mas como hoje disponho de tempo para lhes
dar minhas razões e explicar a superioridade da galinha no barbante sobre a
galinha no espeto, ouçam-me. Todo animal tem dois orifícios: o superior e o
inferior, e a galinha, sob esse aspecto, é igual ao homem. Diógenes disse-o
2.400 anos antes de mim, no dia em que lançou um galo emplumado na ágora de
Atenas, proclamando: “Eis o homem de Platão!”
Você tirou, quando digo você tirou quero
dizer sua cozinheira tirou, os intestinos e o fígado, jogou fora os intestinos,
picou o fígado com fines herbes, cebolinha e salsa, besuntou tudo com um pedaço
de manteiga e, no luar dos intestinos, doravante não apenas inúteis como
daninhos, reintroduziu esse picadinho destinado a perfumá-lo.
Qual deve ser agora o objetivo do
cozinheiro? Conservar, do animal por ele cozinhado, a maior quantidade de
essência possível. Ora, se lhe atravessar um espeto ao comprido e, para
firmá-lo, uma brochete lateral, em vez de tampar um dos dois orifícios com que
a natureza o aquinhoou, você lhe imporá dois outros pelos quais toda a essência
vai escapar. Porém se, ao contrário, pendurá-la verticalmente com esse
barbante, deixando o orifício inferior livre e o superior tampado; se, com
excelente manteiga fresca, misturada a sal e pimenta, regá-la, tendo o cuidado
de introduzir a manteiga no orifício inferior com a colher de regar – então você
terá cumprido com todas as condições lógicas para obter uma excelente galinha.
Resta-lhe então apenas vigiar o cozimento e cortar o barbante que a sustenta,
hora de fazer alguns buraquinhos em sua pele, de onde é expelido um jato de
fumaça. Coloque-a então em uma travessa e despeje sobre ela o suco da
pingadeira.
Sobretudo, que jamais uma gota de caldo
misture-se à manteiga que deve regar sua galinha; toda cozinheira, não canso de
repetir, que coloca caldo em sua pingadeira merece ser posta na rua ignominiosamente
e sem misericórdia.
·
Polvo frito: Quanto ao polvo frito, é simples
como qualquer peixe, badejo ou linguado: corte-o em pedaços, passe-os na
farinha, frite no óleo quente, retire na hora certa e você terá algo parecido
com orelha de vitela frita, com um ligeiro gosto de almíscar.
·
Ovos mexidos e tomates recheados à provençal: A
infância da arte: quebre 12 ovos em uma sopeira, deixando apenas 6 claras para
as 12 gemas; acrescente, depois de os ter batido, um pedaço de manteiga, fines
herbes, ½ copo de caldo de consomê (de galinha, se tiver) e abandone tudo aos
cuidados da cozinheira, que só terá de colocar na panela, levar ao fogo e
mexer.
Recomendação capital: servir moles os ovos
mexidos, continuando a cozê-los no prato. Quanto aos tomates, corte-os em dois,
retire a parte aquosa, descarte as sementes e leve-os ao forno, enfiando, no
vão de cada um, uma pirâmide composta de um picadinho de galinha, vitela, caça
da véspera, se tiver, e champignons.
Despeje sobre eles 1 copo de azeite, do
melhor que puder encontrar; em seguida, polvilhe com sal, pimenta, salsa e alho
picados junto; acrescente uma pontinha de pimenta-vermelha; cozinhe entre 2
fogos, regando 3 ou 4 vezes suas pirâmides de carne com o azeite em que os
tomates assaram.
·
Salada de corações de alface: Nossa salada de
corações de alface, sem azeite ou vinagre, é um souvenir de nossa viagem à
Espanha, onde o vinagre não tem gosto de nada, ao passo que o azeite empesteia.
Impossível, por conseguinte, comer salada quando o calor do céu e a secura do
ar lhe dão apetências violentas de ervas frescas. Bem, remediamos isso
substituindo o azeite por gemas e o vinagre por limão. Esta mistura,
suficientemente sustentada por sal e pimenta, dava-nos uma salada delicada cujo
sabor acabamos preferindo ao das saladas francesas. Ao fim de uma hora e meia,
o jantar estava servido; mas quatro horas depois ainda estávamos à mesa! Assim,
qual não foi a reputação que deixei em Fécamp, e como fui recebido da última
vez!
Permita-me acrescentar ainda uma receita
que poderia perfeitamente vir depois destas sem sentir-se deslocada:
·
Ovos mexidos no suco de camarão: Pegue 12 ovos,
quebre-os, mas reserve em uma tigela todas as gemas e apenas 8 claras, visto
que o excesso de claras tira a delicadeza do prato. Ponha para ferver em uma
caçarola à parte os corpos dos camarões com 1 copo de chablis. Dê 2 ou 3
fervuras e despeje tudo em seguida no alguidar para fazer um purê, o qual você
passará na peneira fina para retirar o mínimo vestígio de carapaça. Desmanche
essa espécie de papa nos ovos previamente temperados com sal e pimenta e
ligeiramente incrustados com cebolinha e salsa picadas bem miudinho. Junte as
caudas de camarão, bata com os ovos e despeje tudo na frigideira com manteiga
fresca; cozinhe e transfira para um prato com muito jeito.
Rubem L. de F. Auto
Fonte: livro “Grande Dicionário de
Culinária”
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